quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

As bem-aventuranças – XIII

Apresentamos a última parte do comentário sobre as bem-aventuranças, retirado do livro Jesus de Nazaré do papa Bento XVI. Apresentaremos mais tarde outros textos deste belíssimo livro do Santo Padre que iluminam enormemente a nossa compreensão acerca da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. É um livro precioso: todos os cristãos deveriam lê-lo para conhecer mais Aquele que amam e, assim, amá-Lo cada vez mais. Rezemos para que o Santo Padre nos brinde logo com o segundo volume deste grande tesouro que oferece à Igreja e àquelas pessoas de boa vontade.

Resta ainda o Macarismo “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8). O órgão com o qual o homem pode ver a Deus é o coração; o simples entendimento não basta; para que o homem se torne capaz de conhecer Deus, devem agir conjuntamente as forças da sua existência. A vontade deve ser pura e, portanto, também a base afetiva da alma, o entendimento e o querer que oferece a direção. Por “coração” entende-se precisamente este jogo de relações das capacidades e percepção do homem, no qual também está em jogo a correta interligação entre corpo e alma, que pertence à totalidade desta “criatura” “homem”. A fundamental determinação afetiva do homem depende precisamente também que o homem aceite ser ao mesmo tempo corporal e espiritual; que coloque o corpo na cultura do espírito, mas que não isole nem o entendimento nem a vontade, mas que a si mesmo se aceite a partir de Deus e assim reconheça e viva a corporeidade da sua existência como riqueza para o espírito. O coração – a totalidade do homem – deve ser puro, interiormente aberto e livre, para que o homem possa ver Deus. Teófilo de Antioquia (†180) expressou isto uma vez em disputa com o homem que se questiona deste modo: “Se tu me dizes: mostra-me o teu Deus, eu respondo-te assim: mostra-me o teu homem... Deus é nomeadamente percebido pelos homens que são capazes e o verem, que têm abertos os olhos do espírito... Como um espelho deve estar limpo, assim também deve estar puro o interior do homem...”

Surge então a pergunta: como é que o olhar interior do homem se torna puro? Como é que pode a estrela ser desligada, que turva o seu olhar ou em última análise o pode cegar totalmente? A tradição mística da “via ascendente da purificação” até a “união” tentou dar uma resposta a esta pergunta. No entanto, as bem-aventuranças devem ser lidas antes de mais nada no contexto bíblico. Aí encontramos o tema sobretudo no salmo 23(24), o qual é a expressão de uma antiga liturgia de entrada: “Quem é que pode subir para a montanha do Senhor, quem pode permanecer no seu lugar santo? Quem tem as mãos limpas e um coração puro, quem não mente nem faz um juramento falso” (v. 3s). Diante da porta do templo surge a pergunta sobre quem pode estar na proximidade do Deus vivo: “mãos limpas e coração puro” são a condição.
O salmo explica de múltiplos modos o conteúdo desta condição para o acesso à habitação de Deus. Uma condição fundamental é que o homem que quer aceder junto de Deus pergunte por Ele, procure o seu rosto (Sl 23(24),6). Como condição fundamental aparece de novo a mesma atitude que já encontramos descrita nas palavras-chave “fome e sede de justiça”. Perguntar por Deus, procurar o seu rosto – aqui está a primeira e fundamental condição para a subida, que conduz ao encontro com Deus. Mas antes é dada a informação sobre o conteúdo das mãos limpas e do coração puro, que consiste em que o homem não engane nem fala falsos juramentos: portanto a honestidade, a veracidade, a justiça para com os outros homens e para com a comunidade – o que podemos designar como a ética social, mas que realmente atinge o mais profundo do coração.
O salmo 14(15) desenvolve isto ainda mais, de tal modo que se pode dizer simplesmente que o conteúdo essencial do Decálogo é a condição de acesso a Deus – com a acentuação da íntima busca de Deus, do estar a caminho em direção a Ele (Primeira tábua do Decálogo) e para o amor ao próximo, para a justiça a respeito de cada um e a respeito da comunidade (Segunda tábua). Não são de todo especificamente nomeadas condições respeitantes ao conhecimento da revelação, mas apenas a “pergunta sobre Deus” e as indicações fundamentais da justiça, que diz para cada um uma consciência desperta – precisamente abanada pela busca de Deus. O que antes refletimos sobre a questão da salvação confirma-se de novo e mais uma vez aqui.

Mas, na boca de Jesus, a palavra adquire uma nova profundidade. A essência da sua figura consiste precisamente em que Ele vê Deus, em que Ele está face a face com Deus, num intercâmbio interior permanente com Ele – no qual Ele vive a sua existência filial. Assim, esta é uma palavra profundamente cristológica. Veremos Deus se entrarmos no “pensamento de Cristo” (Fl 2,5). A pureza do coração acontece no seguir os passos de Cristo, no ser um com Ele. “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo quem vive em mim...” (Gl 2,20). E aqui aparece agora algo de novo: a subida para Deus acontece precisamente na descida ao serviço humilde, a descida ao amor, que é a essência de Deus e, portanto, a verdadeira força purificadora, que capacita o homem para conhecer Deus e para vê-lo. Em Jesus Cristo, Deus se revelou na descida: “Ele era igual a Deus, mas não reivindicou o direito de ser equiparado a Deus, mas despojou-se de si mesmo, tomando a condição de servo, tornando-se semelhante ao homem... Humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte, até a morte na cruz. Por isso Deus O exaltou acima de todas as coisas...” (Fl 2,6-9).
Estas palavras assinalam uma decisiva virada na história da mística. Mostram o que é novo na mística cristã, que vem da novidade da revelação em Jesus Cristo. Deus desce até a morte na cruz. É precisamente deste modo que se revela na sua verdadeira divindade. A subida para Deus acontece ao ir com Ele nesta descida. A liturgia da entrada do salmo 23(24) alcança assim um novo significado: o coração puro é o coração que ama, o que acontece na comunidade do serviço e da obediência com Jesus Cristo. O amor é o fogo que purifica e que une o entendimento, a vontade, o sentimento, que une o homem consigo mesmo, na medida em que o une a partir de Deus, de tal modo que ele se torna servidor da unidade dos que andam separados: é assim que o homem entra na habitação de Deus e pode vê-lo. E isto significa precisamente ser bem-aventurado.

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