Pio XII e Von Galen: um laço estreito
Pio XII conheceu Von Galen pessoalmente? Eugenio Pacelli havia sido núncio na Alemanha durante doze anos. Primeiramente em Munique, de 1917 a 1925, e depois em Berlim, até 1929.
“Foi durante a sua permanência em Berlim que Pacelli teve a oportunidade de conhecer Von Galen”, nos explica o jesuíta alemão Peter Gumpel, um dos maiores especialistas em Pio XII e relator de sua causa de canonização. “Já naquela época ele havia formado uma ótima idéia daquele zeloso e audaz pastor de almas, aberto às necessidades sociais de seu tempo.”
“Von Galen”, explica Gumpel, “era primo de Konrad von Preysing, o homem de confiança de Pio XII na Alemanha. Von Preysing representava certamente a orientação mais firme de oposição ao regime dentro do episcopado alemão. Von Preysing e Von Galen não apenas eram parentes, mas estavam também ligados por uma estreita amizade”. “A consideração e a confiança de Pacelli para com Von Galen, unida às que tinha para com o estimadíssimo Von Preysing”, continua Gumpel, “são, entre outras coisas, testemunhadas também por sua presença em Roma, em janeiro de 1937, para a preparação da encíclica Mit Brennender Sorge. Pacelli, que contribuiu notavelmente para a redação da encíclica de Pio XI, querendo ser amplamente informado da situação alemã, pediu para ouvir o parecer deles, além do dos cardeais alemães”.
Mas a sintonia de Pacelli com o que Von Galen realizava é provada já em 1935, durante a luta contra Rosemberg. Naquela ocasião, o secretário de Estado Pacelli enviou uma severa nota ao Ministério das Relações Exteriores alemão, apelando à base jurídica da Concordata, e o Vaticano apoiou Von Galen em peso, tanto que L’Osservatore Romano, seguindo a vontade do secretário de Estado, tomou abertamente a defesa do bispo de Münster, atacando Rosenberg como “o mais raivoso e sacrílego destruidor do cristianismo”.
Já a respeito dos três famosos sermões, não consta que Von Galen tenha recebido antecipadamente indicações de Pio XII. Von Galen, como atestam os testemunhos do processo, agiu de iniciativa própria, “mas sabia”, afirma Gumpel, “ter o consenso do Papa. Pio XII chegou a explicar sua posição muito claramente, numa carta de 30 de abril de 1943 a Von Preysing. Uma intervenção do Papa, em tempo de guerra, poderia ter sido interpretada como uma tomada de posição contra a Alemanha, com conseqüências negativas para a Igreja, já duramente perseguida, e para o povo alemão. O Papa, portanto, deixava aos pastores locais que avaliassem, nas circunstâncias, a opção e a responsabilidade das decisões. Assim, encorajava os bispos a seguirem a linha assumida pela Santa Sé desde o tempo da encíclica de Pio XI, sem, todavia, impor-lhes que fizessem isso. Até porque não é possível ordenar o martírio”.
Em que medida a intrépida ação do “Leão de Münster” e “a força de seu protesto” tenham sido um consolo para o coração do papa Pacelli é expressado pelo fato de que Pio XII quis ler aqueles famosos sermões pessoalmente até a seus próprios familiares. Isso fica claro nos autos da causa de canonização de Von Galen. Em seu depoimento, o sacerdote Heinrich Portmann, uma das melhores fontes do processo, declara ter tomado consciência desse pormenor por meio de um escrito do bispo de Innsbruck dirigido a Von Galen em 18 de setembro de 1941. Naquele escrito, o bispo de Innsbruck conta que, durante uma audiência no Vaticano, o Papa, manifestando sua profunda veneração pelo bispo de Münster, confidenciou-lhe ter lido suas homilias a seus entes queridos.
Sim, Pio XII o considerava um herói. Ele o diz explicitamente ao receber alguns sacerdotes da Vestefália em dezembro de 1945. Esse testemunho, fornecido pelo sacerdote Eberhard Brand, está também nos autos: “O Santo Padre nos disse: ‘O bispo Von Galen logo virá a Roma. Depois acrescentou em voz alta: é um herói’”.
De resto, o sinal mais eloqüente da alta estima pelos “méritos incalculáveis” adquiridos na forte defesa da Igreja e dos direitos humanos contra a violência do nazismo foi a púrpura cardinalícia, que o próprio Pio XII conferiu a Von Galen em 18 de fevereiro de 1946. Von Galen foi “o verdadeiro herói daquele consistório”, chegou a comentar o arcebispo de Colônia.
A Rádio Vaticana anunciou a nomeação do bispo de Münster a príncipe da Igreja na véspera de Natal de 1945, ao lado de 32 novos purpurados. Entre eles, outros dois prelados alemães também se haviam destacado no enfrentamento do terror nazista: o arcebispo de Colônia, Joseph Frings, e o bispo de Berlim, Konrad von Preysing. Para o episcopado e o povo alemão, aquelas nomeações eram “a demonstração de que o Papa não estava disposto a participar dos murmúrios de ódio que naqueles tempos surgiam em toda parte contra os alemães”, e ao mesmo tempo eram “o sinal de um prêmio justo para a resistência corajosa que homens como esses tinha dado, cabendo o primeiro lugar entre eles, certamente, ao bispo de Münster”. Num relato detalhado da cerimônia solene para a entrega do barrete cardinalício, o sacerdote que fora designado caudatário de Von Galen atesta: “Quando, na entrada dos cardeais em São Pedro, Clemens August apareceu na porta, um murmúrio atravessou a multidão dos presentes: ‘Olha ele aí, é ele’. Sendo que, como caudatário, eu caminhava logo atrás do cardeal, eu podia ouvir o que o povo dizia. Enquanto a sua figura gigantesca atravessava a nave central, elevou-se um furacão de entusiasmo. Os aplausos chegaram ao máximo no momento em que o cardeal subiu para o trono do Santo Padre. ‘Eu o abençôo. Abençôo a sua pátria”, disse-lhe Pio XII. Uma famoso jornal romano escreveu no dia seguinte: ‘Foram particularmente longos e fortes os aplausos ao cardeal Von Galen, o heróico bispo de Münster, propugnador do antinazismo, que o Papa manteve junto si claramente por mais tempo do que os outros’”.
A imprensa, portanto, relatava o que naquele momento era evidente para todos: Von Galen era o símbolo daquela outra Alemanha que não se deixara uniformizar. E reconhecia na conferição da dignidade cardinalícia “uma homenagem àquele defensor viril da verdade cristã e dos direitos inalienáveis do homem que no Estado totalitário tinham de ser estirpados”. Era o que escrevia o semanário alemão Die Zeit no dia seguinte a sua morte, que aconteceu apenas um mês depois do recebimento da púrpura, definindo Von Galen “um combatente pela justiça, um grande benfeitor da humanidade”. Uma multidão de mais de cinqüenta mil pessoas participou de seu funeral em Münster.
Quando o último embaixador do Reich no Vaticano, Ernst von Weizsäcker - que, tendo-se retirado da vida política, ainda vivia em Roma em 1946 -, enviou à Santa Sé as condolências pela morte de Von Galen, o então substituto na Secretaria de Estado, Giovanni Battista Montini, em 28 de março de 1946 agradeceu a ele em nome de Pio XII com estas palavras: “Com a morte desse prelado, seu país perdeu uma das maiores personalidades de nosso tempo”.