sexta-feira, 28 de maio de 2010

O Leão de Münster - 3

Pio XII e Von Galen: um laço estreito

Pio XII conheceu Von Galen pessoalmente? Eugenio Pacelli havia sido núncio na Alemanha durante doze anos. Primeiramente em Munique, de 1917 a 1925, e depois em Berlim, até 1929.

“Foi durante a sua permanência em Berlim que Pacelli teve a oportunidade de conhecer Von Galen”, nos explica o jesuíta alemão Peter Gumpel, um dos maiores especialistas em Pio XII e relator de sua causa de canonização. “Já naquela época ele havia formado uma ótima idéia daquele zeloso e audaz pastor de almas, aberto às necessidades sociais de seu tempo.”

“Von Galen”, explica Gumpel, “era primo de Konrad von Preysing, o homem de confiança de Pio XII na Alemanha. Von Preysing representava certamente a orientação mais firme de oposição ao regime dentro do episcopado alemão. Von Preysing e Von Galen não apenas eram parentes, mas estavam também ligados por uma estreita amizade”. “A consideração e a confiança de Pacelli para com Von Galen, unida às que tinha para com o estimadíssimo Von Preysing”, continua Gumpel, “são, entre outras coisas, testemunhadas também por sua presença em Roma, em janeiro de 1937, para a preparação da encíclica Mit Brennender Sorge. Pacelli, que contribuiu notavelmente para a redação da encíclica de Pio XI, querendo ser amplamente informado da situação alemã, pediu para ouvir o parecer deles, além do dos cardeais alemães”.

Mas a sintonia de Pacelli com o que Von Galen realizava é provada já em 1935, durante a luta contra Rosemberg. Naquela ocasião, o secretário de Estado Pacelli enviou uma severa nota ao Ministério das Relações Exteriores alemão, apelando à base jurídica da Concordata, e o Vaticano apoiou Von Galen em peso, tanto que L’Osservatore Romano, seguindo a vontade do secretário de Estado, tomou abertamente a defesa do bispo de Münster, atacando Rosenberg como “o mais raivoso e sacrílego destruidor do cristianismo”.

Já a respeito dos três famosos sermões, não consta que Von Galen tenha recebido antecipadamente indicações de Pio XII. Von Galen, como atestam os testemunhos do processo, agiu de iniciativa própria, “mas sabia”, afirma Gumpel, “ter o consenso do Papa. Pio XII chegou a explicar sua posição muito claramente, numa carta de 30 de abril de 1943 a Von Preysing. Uma intervenção do Papa, em tempo de guerra, poderia ter sido interpretada como uma tomada de posição contra a Alemanha, com conseqüências negativas para a Igreja, já duramente perseguida, e para o povo alemão. O Papa, portanto, deixava aos pastores locais que avaliassem, nas circunstâncias, a opção e a responsabilidade das decisões. Assim, encorajava os bispos a seguirem a linha assumida pela Santa Sé desde o tempo da encíclica de Pio XI, sem, todavia, impor-lhes que fizessem isso. Até porque não é possível ordenar o martírio”.

Em que medida a intrépida ação do “Leão de Münster” e “a força de seu protesto” tenham sido um consolo para o coração do papa Pacelli é expressado pelo fato de que Pio XII quis ler aqueles famosos sermões pessoalmente até a seus próprios familiares. Isso fica claro nos autos da causa de canonização de Von Galen. Em seu depoimento, o sacerdote Heinrich Portmann, uma das melhores fontes do processo, declara ter tomado consciência desse pormenor por meio de um escrito do bispo de Innsbruck dirigido a Von Galen em 18 de setembro de 1941. Naquele escrito, o bispo de Innsbruck conta que, durante uma audiência no Vaticano, o Papa, manifestando sua profunda veneração pelo bispo de Münster, confidenciou-lhe ter lido suas homilias a seus entes queridos.

Sim, Pio XII o considerava um herói. Ele o diz explicitamente ao receber alguns sacerdotes da Vestefália em dezembro de 1945. Esse testemunho, fornecido pelo sacerdote Eberhard Brand, está também nos autos: “O Santo Padre nos disse: ‘O bispo Von Galen logo virá a Roma. Depois acrescentou em voz alta: é um herói’”.

De resto, o sinal mais eloqüente da alta estima pelos “méritos incalculáveis” adquiridos na forte defesa da Igreja e dos direitos humanos contra a violência do nazismo foi a púrpura cardinalícia, que o próprio Pio XII conferiu a Von Galen em 18 de fevereiro de 1946. Von Galen foi “o verdadeiro herói daquele consistório”, chegou a comentar o arcebispo de Colônia.

A Rádio Vaticana anunciou a nomeação do bispo de Münster a príncipe da Igreja na véspera de Natal de 1945, ao lado de 32 novos purpurados. Entre eles, outros dois prelados alemães também se haviam destacado no enfrentamento do terror nazista: o arcebispo de Colônia, Joseph Frings, e o bispo de Berlim, Konrad von Preysing. Para o episcopado e o povo alemão, aquelas nomeações eram “a demonstração de que o Papa não estava disposto a participar dos murmúrios de ódio que naqueles tempos surgiam em toda parte contra os alemães”, e ao mesmo tempo eram “o sinal de um prêmio justo para a resistência corajosa que homens como esses tinha dado, cabendo o primeiro lugar entre eles, certamente, ao bispo de Münster”. Num relato detalhado da cerimônia solene para a entrega do barrete cardinalício, o sacerdote que fora designado caudatário de Von Galen atesta: “Quando, na entrada dos cardeais em São Pedro, Clemens August apareceu na porta, um murmúrio atravessou a multidão dos presentes: ‘Olha ele aí, é ele’. Sendo que, como caudatário, eu caminhava logo atrás do cardeal, eu podia ouvir o que o povo dizia. Enquanto a sua figura gigantesca atravessava a nave central, elevou-se um furacão de entusiasmo. Os aplausos chegaram ao máximo no momento em que o cardeal subiu para o trono do Santo Padre. ‘Eu o abençôo. Abençôo a sua pátria”, disse-lhe Pio XII. Uma famoso jornal romano escreveu no dia seguinte: ‘Foram particularmente longos e fortes os aplausos ao cardeal Von Galen, o heróico bispo de Münster, propugnador do antinazismo, que o Papa manteve junto si claramente por mais tempo do que os outros’”.

A imprensa, portanto, relatava o que naquele momento era evidente para todos: Von Galen era o símbolo daquela outra Alemanha que não se deixara uniformizar. E reconhecia na conferição da dignidade cardinalícia “uma homenagem àquele defensor viril da verdade cristã e dos direitos inalienáveis do homem que no Estado totalitário tinham de ser estirpados”. Era o que escrevia o semanário alemão Die Zeit no dia seguinte a sua morte, que aconteceu apenas um mês depois do recebimento da púrpura, definindo Von Galen “um combatente pela justiça, um grande benfeitor da humanidade”. Uma multidão de mais de cinqüenta mil pessoas participou de seu funeral em Münster.

Quando o último embaixador do Reich no Vaticano, Ernst von Weizsäcker - que, tendo-se retirado da vida política, ainda vivia em Roma em 1946 -, enviou à Santa Sé as condolências pela morte de Von Galen, o então substituto na Secretaria de Estado, Giovanni Battista Montini, em 28 de março de 1946 agradeceu a ele em nome de Pio XII com estas palavras: “Com a morte desse prelado, seu país perdeu uma das maiores personalidades de nosso tempo”.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

O Leão de Münster - 2

“Eu grito: exigimos justiça!”

Sábado, 12 de julho de 1941: o bispo é comunicado da ocupação das casas dos jesuítas que se encontravam na Königstrasse e em Haus Sentmaring. Com o avanço da guerra, os chefes supremos do partido intensificaram o seqüestro de bens das confissões cristãs, e, bem nos dias em que Münster sofrera graves danos em razão dos bombardeios, a Gestapo começou a deportar sistematicamente religiosos e a ocupar e confiscar conventos. Até os conventos das irmãs de clausura foram seqüestrados. Os religiosos e as religiosas, insultados e expulsos. O bispo agiu imediatamente. Enfrentou pessoalmente os homens da Gestapo, dizendo a eles que estavam exercendo “um papel infame e vergonhoso”, e chamou-os com muita clareza e franqueza de “ladrões e bandoleiros”. Considerou, então, que chegara o momento de se expressar publicamente. Estava pronto a assumir tudo sobre si, por Deus e pela Igreja, mesmo que isso pudesse custar sua vida. No dia seguinte, depois de preparar a homilia com cuidado, subiu ao púlpito decidido a chamar as coisas pelo nome. “Nenhum de nós está seguro. Mesmo que em sua consciência seja o cidadão mais honesto, ne­nhum de nós está seguro de não ser um dia levado de sua residência, espoliado de sua liberdade, remetido aos campos de concentração da polícia secreta de Estado. Estou consciente de que isso pode acontecer hoje até mesmo a mim...”. E não hesitou em desmascarar diante de todos as vis intenções da Gestapo, considerando-a responsável por todas as violações da mais elementar justiça social: “O comportamento da Gestapo traz graves prejuízos a partes muito grandes da população alemã. [...] Em nome do povo alemão honesto, em nome da majestade da justiça, no interesse da paz, [...] eu elevo minha voz na qualidade de homem alemão, de cidadão honrado, de ministro da religião católica, de bispo católico, e grito: exigimos justiça!”. Com força e segurança, as frases saíam como trovões da sua boca. Denunciou, com ardor indômito, um por um os “atos infames” e os abusos de que tomou conhecimento. “Os homens e as mulheres”, lembra uma testemunha, “puseram-se de pé, ouviram-se vozes de consenso e até de horror e de indignação, coisa que geralmente é impensável aqui entre nós, na igreja. Vi pessoas romperem em lágrimas”.

O efeito desse primeiro sermão foi avassalador. No segundo sermão, em 20 de julho, a igreja estava mais que lotada. As pessoas vinham de longe para ouvi-lo. Von Galen, mais uma vez, abriu os olhos para a loucura do projeto buscado pelo poder, que levaria o país à miséria e à ruína, e trovejou outra vez “contra a iníqua, intolerável ação que aprisiona os sacerdotes, expulsa como animais nossos religiosos e nossas queridas irmãs [...], que persegue homens e mulheres ino­centes...”. Declara vãs todas as ini­ciativas e súplicas lançadas em favor de tantos cidadãos injustamente ofendidos: “Hoje nós vemos e experimentamos claramente o que está por trás da nova doutrina que há anos nos é imposta: ódio! Ódio profundo, como um abismo, para com o cristianismo, para com o gênero humano...”. Mas foi o terceiro sermão, de 3 de agosto, sobre o quinto mandamento, que, pela virulência das palavras, foi julgado pelo Ministério da Propaganda “o ataque frontal mais forte desferido contra o nazismo em todos os anos de sua existência”. O bispo tomara conhecimento pessoalmente do plano de extermínio dos deficientes, dos velhos, dos doentes mentais e das crianças paralíticas nos sanatórios da Vestefália. O plano era mantido em segredo pelos nazistas. Comenta uma testemu­nha: “Só quem experimentou o tempo da ditadura nazista pode medir o significado das seguintes palavras que um bispo ousou pronunciar: ‘Hoje são assassinados, barbaramente assassinados inocentes indefesos; pessoas de outras raças e de proveniências diferentes também são suprimidas. [...] Estamos diante de uma loucura homicida sem igual. [...] Com gente como essa, com esses assassinos que pisam orgulhosos sobre as nossas vidas, eu não posso mais ter comunhão de povo!’. E aplicava às autoridades do nazismo as palavras do apóstolo Paulo: ‘O Deus deles é o ventre’”.

Os sermões tiveram enorme difusão e logo deram a volta ao mundo. Foram impressos e lidos em toda parte. Chegaram até aos soldados no front. Basta dizer que as pessoas cobiçavam a tal ponto possuí-los que os sermões se apresentavam como moeda de troca por mercadorias. O povo alemão, cristão e não cristão, os ouvia com enorme gratidão. Pela documentação encontrada entre os destroços de Berlim, vê-se que no inverno de 1941-1942 muitos judeus foram presos pela Gestapo pela difusão dos “sermões subversivos” do bispo de Münster. Por esses discursos, todos pensavam, inclusive o bispo, que dentro em pouco ele viria a ser justiçado. O chefe das organizações juvenis da SS publicou esta declaração: “Eu o chamo o porco C. A., ou seja, Clemens August. Esse alto traidor e traidor do País, esse porco está livre e usa a liberdade para falar contra o Führer. Deve ser enforcado”. No entanto, isso não aconteceu.

O “caso Von Galen” foi minuciosamente discutido pelo Ministério da Propaganda e na Chancelaria do partido. Até o “delfim” de Hitler, Martin Bormann, queria enforcá-lo. Mas o ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, aconselhou o Führer que adiasse sua execução, por cálculos de oportunidade política. A tática do regime era não fazer dele um mártir, e matá-lo significaria perder o consenso de parte da população, particularmente dos soldados no front. Os nacionalistas adiavam, assim, “o acerto de contas” com Von Galen para depois da “vitória final”. Só então, declarou Hitler em 4 de julho de 1942, se acertariam as contas com ele, “até o último centavo”.

O irmão de Von Galen, conde Franz, dá este testemunho: “Mesmo que não tenha sido preso, meu irmão continuava a ser exposto aos ataques, aos abusos e às injúrias dos inimigos da Igreja. Conservou, apesar disso, sua postura ereta e continuou a anunciar a verdade intrepidamente. Um dia, eu lhe perguntei o que tínhamos de fazer caso ele fosse preso. ‘Nada’, foi sua resposta. ‘São Paulo também ficou preso por muitos anos e o Senhor não ti­nha medo de que os pagãos não se convertessem por algum tempo.’ Ele me dizia que as forças diabólicas haviam entrado em ação, mas lembrava também as palavras confortadoras do Senhor: ‘As portas do inferno não prevalecerão sobre a Igreja’” .

Em outubro de 1956 foi aberto o processo de canonização de Clement August von Galen. Em 20 de dezembro do ano passado, foi promulgado o decreto da heroicidade de suas virtudes, e a causa avança a passos largos para a beatificação.

“A luta que o bispo Von Galen travou contra aqueles que considerava verdadeiros inimigos da Igreja”, afirma o dominicano alemão Ambrogio Eszer, relator da causa de canonização de Von Galen, “demonstra univocamente que o servo de Deus considerava a defesa da fé como seu mais alto objetivo e dever. Diante do espírito do regime totalitário da época, o bispo Von Galen mostrou uma fortaleza heróica, mas também uma prudência heróica”.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O Leão de Münster - 1


O New York Times definiu o bispo Von Galen “o adversário mais obstinado do programa nacional-socialista anticristão”. Sua coragem e seus duros sermões contra Hitler, pronunciados do púlpito da catedral de Münster, deram a volta ao mundo. E Pio XII escreveu a ele para manifestar seu pleno apoio e sua gratidão

Por Stefania Falasca, em http://www.30giorni.it/br/articolo.asp?id=4220

“Os três sermões do bispo Von Galen proporcionam a nós também, na via dolorosa que percorremos ao lado dos católicos alemães, um conforto e uma satisfação que há muito tempo não experimentávamos. O bispo escolheu bem o momento para dar um passo à frente com tanta coragem”. Com essas palavras de gratidão e plena aprovação, Pio XII, escrevendo em 30 de setembro de 1941 ao bispo de Berlim, Konrad von Preysing, comentava o ataque frontal desferido contra o regime de Hitler do púlpito da catedral de Münster naquele verão de 1941 por Clemens August von Galen. E não apenas isso. Pio XII concluía a carta ao prelado de Berlim manifestando todo o seu apoio: “Nem é preciso, portanto, que asseguremos expressamente a ti e a teus confrades que bispos que, como o bispo Von Galen, se manifestarem com tamanha coragem e irrepreensibilidade encontrarão sempre apoio em nós”. A carta do Papa recebeu resposta imediata do bispo de Berlim. Em 17 de outubro, Von Preysing pegou papel e caneta e não hesitou em responder a Pio XII desta forma: “Enche-me de verdadeira alegria o fato de que a ação do bispo Von Galen tenha servido de consolo para o coração de Vossa Santidade”.

Mas, afinal, qual foi a ação desse bispo ao qual Pio XII envia seu encorajamento e seus aplausos? Quem era Clemens August von Galen? O New York Times, em 1942, em plena guerra, publicou uma série de artigos sobre homens de Igreja que se opunham a Hitler. Em 8 de junho daquele ano, o jornal americano abria a seção intitulada Churchmen who defy Hitler com um artigo sobre o bispo Von Galen, definindo-o assim: “O adversário mais obstinado do programa nacional-socialista anticristão”.

O primeiro biógrafo de Von Galen, o sacerdote alemão Heinrich Portmann, que foi seu secretário particular de 1938 a 1946, chamou a atenção para uma coincidência: “Von Galen governou como bispo por um período de tempo igual ao de Adolf Hitler. Foi consagrado bispo nove meses depois de Hitler subir ao poder e morreu cerca de nove meses depois da morte do Führer”.

Nascido em 1878 no castelo de Dinklage, nos arredores de Münster, Clemens August, conde de Galen, filho de uma família nobre extremamente católica da Vestefália, antes de ser consagrado bispo por Pio XI passou vinte e três anos de seu sacerdócio numa paróquia de Berlim. Mas quando, em 5 de setembro de 1933, Pio XI o nomeou sucessor da cátedra de São Ludgero, os capacetes de aço com as cruzes gancheadas do Terceiro Reich presentes à cerimônia solene de sua posse ainda não imaginavam quanto pano para manga aquele prelado de origem nobre e arraigados sentimentos patrióticos daria a eles. Von Galen foi o primeiro bispo eleito depois da Concordata do Reich, assinada com a Santa Sé em 20 de julho de 1933, e foi um dos primeiros bispos alemães não apenas a intuir e desmascarar com extrema lucidez e firmeza o perigo da ideologia neopagã do nazismo, mas também a denunciar com força e publicamente as violências e as barbáries do terror nazista.

A condenação do “catecismo do sangue”

Nec laudibus nec timor. Esse foi o mote episcopal escolhido pelo imponente prelado alemão. E a intrepidez daquele nec timore logo se demonstrou.

Já dois meses depois de sua consagração, em novembro de 1933, ficou sabendo que o pacto que acabara de ser firmado com o governo não era respeitado e protestou energicamente contra as violações da Concordata. E quando, no início de 1934, Alfred Rosenberg, o principal teórico do nacional-socialismo, nomeado substituto do Führer para a direção espiritual e ideológica do partido, fez com que se difundisse maciçamente seu Mito do século XX, Von Galen, em sua primeira carta pastoral diocesana da Páscoa de 1934, condenou sem reservas a Weltanschauung neopagã do nazismo, evidenciando claramente o caráter religioso dessa ideologia: “Uma nova e nefasta doutrina totalitária que põe a raça acima da moralidade, põe o sangue acima da lei, [...] repudia a revelação, visa a destruir os fundamentos do cristianismo [...]. É um engano religioso. Às vezes esse novo paganismo se esconde até mesmo sob nomes cristãos [...]. Esse ataque anticristão que estamos experimentando em nossos dias supera, enquanto violência destruidora, a todos os outros de que temos conhecimento desde os tempos mais distantes”. A carta termina com uma admoestação aos fiéis para que não se deixem seduzir por semelhante “veneno das consciências” e convida os pais cristãos a velarem sobre seus filhos. A mensagem pascal caiu como uma bomba e teve um efeito libertador sobre o clero e sobre o povo, dando origem a um eco não apenas na Alemanha mas também no exterior.

Na Páscoa de 1935, outro contragolpe. A teoria racial e o “catecismo do sangue” de Rosemberg estavam de novo na mira do bispo. Von Galen, não podendo se calar perante aberrações tão perigosas para os fiéis, manda anexar ao boletim diocesano um estudo contra O mito do século XX e trabalha para desfavorecer sua difusão. A resposta do regime não se fez esperar. O chefe da Gestapo, Hermann Göring, envia uma circular na qual pede a exclusão do clero do ensino nas escolas. Rosemberg despenca em Münster e pronuncia palavras de fogo contra o bispo, na tentativa de incitar o povo contra ele e liquidá-lo. Mas o povo da Vestefália, na maioria católico, forma uma corrente ao redor de seu bispo; em 8 de julho, as manifestações de solidariedade culminam numa procissão maciça dos fiéis. Os acontecimentos de Münster cruzam de novo as fronteiras nacionais e a imprensa estrangeira registra a batalha louvando o comportamento corajoso do bispo alemão: “Se os católicos são acusados de se ocuparem de política, na realidade é o nacional-socialismo que se ocupa de religião”, comenta laconicamente, de Paris, o jornal Le Figaro.

Von Galen não era certamente o único prelado alemão a reagir claramente contra a doutrina do nazismo; já a partir de 1932 os bispos haviam se expressado também colegialmente. Tornaram-se famosos as sermões de 1933 do cardeal Michael von Faulhaber, arcebispo de Munique. Mas, com a ascensão de Hitler ao poder, a Igreja alemã viu-se a enfrentar um regime que, cada vez mais insidiosa e descaradamente, se atribuía o predomínio total no campo religioso e eclesiástico, anulando os direitos civis e humanos. Assim, em poucos anos a Igreja teve de arcar com uma violenta perseguição. Perseguição que se acirrou depois da publicação, solicitada pelos próprios bispos alemães, da encíclica pontifícia Mit Brennender Sorge, em 1937. A encíclica de Pio XI, “uma das mais severas condenações de um regime nacional que o Vaticano já havia pronunciado”, foi declarada pelas autoridades nazistas “um ato de alta traição contra o Estado”. Prisões e seqüestros se seguiram a sua difusão. Von Galen, em sua diocese, mandou imprimir 120 mil cópias do texto. Os atos intimidatórios dirigidos contra a sua pessoa aumentaram, mas ao mesmo tempo cresceu o seu prestígio e a grande autoridade moral que fazia dele um ponto de referência reco­nhecido por todos, até pelos judeus. E, às vésperas da guerra, o bispo de Münster, por ter “atacado fortemente as bases e os efeitos do nacional-socialismo”, era registrado na Chancelaria do Reich como um dos mais perigosos adversários do regime.

Mas foi com os sermões de meados de 1941 que o bispo se tornou famoso em todo o mundo. Ganhando o apelido de “Leão de Münster”.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Convertidos do século XX: Edith Stein – 4

O Carmelo

No dia seguinte, pela manhã, Edith Stein partiu para Colônia, e, dois dias depois, encontrava-se diante da clausura que há tanto tempo desejava transpor.

A 15 de outubro de 1933, aos 42 anos de idade, Edith Stein terminava o surpreendente itinerário que a conduzira “de Husserl ao Carmelo”. Daí em diante, começava a nova estrada. A estrada da Irmã Teresa Benedita da Cruz. Esse foi o nome religioso que tomou, a 15 de abril de 1934, ao receber o hábito. No dia seguinte a essa cerimônia que atraíra grande número de amigos e conhecidos, o provincial dos Carmelitas pediu-lhe que retomasse, a partir de então, durante o tempo livre, seu trabalho científico de filosofia.

Assim, logo se encontrou ela na cela, entre seus livros. Aí comporia a principal obra de sua vida, O ser finito e o ser eterno, explicação da filosofia moderna, de Descartes a Heidegger. Essa obra, em dois volumes, não pôde ser publicada na época, em face dos decretos que impediam toda literatura não ariana.

Apesar do isolamento do claustro, continuava a comunicar-se com a família. Cada semana, por permissão especial, enviava uma carta à mãe. Por muito tempo suas cartas não tiveram resposta. Afinal, recebeu uma carta, testemunha do amor materno enfim vencedor. A partir desse momento, as cartas de sua irmã Rosa traziam-lhe sempre algumas palavras da mãe. Durante o verão de 1936, a admirável mulher, com 87 anos de idade, caiu doente, e seu estado logo se agravou. A 14 de setembro, na festa de Exaltação da Santa Cruz, realizava-se no Carmelo a cerimônia de renovação dos votos. Quando chegou a vez da Irmã Teresa da Cruz, ela teve de súbito a clara intuição: Minha mãe esta ao meu lado. No mesmo dia, um telegrama trouxe-lhe a noticia do falecimento. A mãe expirara na hora da renovação dos votos.

No Advento de 1936, Edith Stein teve a alegria de acolher sua irmã Rosa, que recebeu afinal o batismo, tanto tempo retardado para não magoar ainda mais a velha mãe.

O céu cobria-se de nuvens cada vez mais sombrias. A perseguição nazista, longe de diminuir, redobrava de violência. Era uma pérfida campanha contra a religião em geral, e contra as ordens religiosas em particular. A Irmã Teresa da Cruz temia que sua presença expusesse o Carmelo de Colônia a represálias. Assim, decidiu partir para a Holanda.

Durante a noite de São Silvestre, em 1938, atravessou clandestinamente a fronteira e dirigiu-se ao Carmelo de Echt, no Limburgo holandês. Rapidamente adaptou-se. Às seis línguas que já dominava, acrescentou o flamengo. Prosseguindo também nos trabalhos intelectuais, acabou seu estudo sobre São João da Cruz: A ciência da cruz.

Nessa época, sua irmã Rosa foi visitá-la no Carmelo de Echt, como carmelita da Ordem Terceira.

O Holocausto

10 de maio de 1940. Em meio ao fragor das explosões e ao rugir dos motores, a possante máquina de guerra nazista põe-se em marcha. A Holanda é rapidamente ocupada. As perseguições antissemitas desenvolvem-se com violência.

Um perigo imediato pesa, de novo, sobre a Irmã Teresa da Cruz. Por isso decide-se que deve partir novamente, dessa vez para o Carmelo Le Pâquier, perto de Friburgo, na Suíça.

Foi no começo de 1942. As formalidades burocráticas, infelizmente, alongavam-se. Uma convocação da Gestapo já chamara a religiosa a Maestricht e depois a Amsterdam. Sua presença não escapara à sinistra polícia. As ameaças se faziam cada vez mais temíveis. Felizmente, tudo estava pronto para a partida... Mas não eram esses os desígnios de Deus.

A 2 de agosto de 1942, a comunidade de Echt dirigiu-se ao coro, como de costume, para a oração matinal. Bateram na porta do convento. Dois oficiais apareceram e solicitaram a presença das irmãs Stein. Essas, supondo que lhes traziam o passaporte para a Suíça, deixaram a capela.

Ao entrar no parlatório, empalideceram. Os SS as esperavam. Tiveram ordem de aprontar-se para deixar o Carmelo em dez minutos.

Edith Stein voltou ao coro, ajoelhou-se uma última vez diante do Santíssimo Sacramento e deixou a comunidade, que se achava reunida, com estas palavras: Por favor, irmãs, rezem por nós.

Os enérgicos protestos da Madre Superiora não tiveram evidentemente o menor efeito. Depressa, as duas religiosas arrecadaram o que lhes era permitido levar: uma coberta, uma caneca, uma colher e algumas provisões.

Na rua, onde grande multidão se reunira para protestar, esperava-as um grupo da SS. Fizeram entrar as duas irmãs em um carro que partiu com destino ignorado.

Em Echt, onde a angústia reinava, recebeu-se um telegrama do campo de concentração de Amersfort. Edith Stein pedia algumas roupas quentes e o breviário.

As irmãs enviaram rapidamente a encomenda, por intermédio de jovens holandeses que puderam entrar em comunicação com as duas religiosas. Encontraram-nas muito calmas, sem a menor queixa, mas na incerteza total do futuro. Uma carta recebida pouco depois anunciava a sua partida iminente para o Leste. Veio ainda outra palavra, última confidência que brilhou como derradeira chama na noite: “A ciência da Cruz não se pode adquirir sem que ela nos pese realmente sobre os ombros. Desde o primeiro instante, eu estava convencida disso, e dizia comigo mesma: Ave crux, spes única...”

Seguiu-se o silêncio total. Soube-se que a 6 de agosto, primeira sexta-feira do mês, um comboio de judeus, quase todos convertidos, partira em direção à Polônia.

A última notícia que se tem dessa eminente religiosa é um bilhetinho a lápis, remetido por mão desconhecida a uma religiosa de Friburgo.

“A caminho da Polônia. Lembranças da Irmã Teresa Benedita da Cruz.”

Depois veio a noite.

Ignoramos onde terminou seu calvário. Não se sabe em que sítio o olhar profundo, que perscrutara sempre os enigmas do homem e do universo, encontrou a Luz sem sombras.

Disseram alguns com certo fundamento ao que parece, que foi nas câmaras de gás do sinistro campo de extermínio de Auschwitz, na Polônia. Nada, entretanto, foi confirmado oficialmente. Que adiantaria, aliás, agora, apurar tais coisas?

“Nós não a procuramos mais na terra – escreveram as Carmelitas de Colônia – mas perto de Deus, que aceitou seu sacrifício e dará a recompensa ao povo pelo qual ela sofreu e morreu.”

Ante a notícia de sua morte, numerosos testemunhos de admiração e de veneração chegaram de todos os lugares da Alemanha. Por sugestão do professor Grabmann, o círculo cada vez mais numeroso de seus amigos, antigos alunos e admiradores, fez votos de que, “por sua beatificação e canonização, ela se transformasse em exemplo luminoso do conhecimento e do amor a Deus”.

Sua irradiação não pára de estender-se aos meios intelectuais e universitários. Como escreveu o jesuíta alemão Frans Hillig: “É preciso que, graças aos jovens cristãos de toda a Europa, o exemplo dessa vida seja arrancado ao passado para que continue neles cada vez mais vivo e atuante.”

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Convertidos do século XX: Edith Stein – 3

Seu renome se estende

Levada pelo desejo de conhecimento mais profundo de sua fé, Edith Stein retomou o trabalho filosófico durante as horas vagas. Pela primeira vez abordava o pensamento de Santo Tomás de Aquino.

Entretanto, permanecia profundamente ligada ao mestre eminente que dirigira seus primeiros passos nos caminhos do espírito. Assim, foi para ela uma alegria oferecer-lhe, em 1929, um trabalho erudito, intitulado A fenomenologia de Husserl e a Filosofia de Santo Tomás de Aquino.

Aliás, apesar de sua semi-reclusão, o mundo católico erudito tinha a atenção voltada para ela. Cada vez mais, era solicitada para conferências filosóficas, pedagógicas e religiosas. Pronunciou-se inicialmente em algumas cidades próximas: Heidelberg, Friburgo, Colônia, etc. A forte impressão que deixava dilatou o seu renome, e logo teve que falar em Viena, Zurique e Praga.

Sua própria celebridade poderia constituir um perigo para ela. Deus, porém, a conduzia. Depois de cada conferência, tinha pressa em voltar à sua amada solidão de Spire e em mergulhar de novo nas obras de Santo Tomás.

Assim passavam os anos. Desde 1928, Edith Stein seguia os ofícios da Semana Santa na célebre Abadia de Beuron. Esse mosteiro viria a tornar-se para ela uma pátria espiritual. O abade de Beuron, Dom Rafael Walzer, era o seu diretor espiritual. Eis o julgamento que nos deixou sobre ela:

“Raramente encontrei uma alma que reunisse tantas e tão altas qualidades. E com uma simplicidade e naturalidade extremas. Permaneceu inteiramente mulher, com uma sensibilidade fina e maternal. Mostrava-se simples com os simples, culta com os intelectuais, inquieta com aqueles que se inquietavam.”

O prelado conseguiu convencê-la de que suas funções de professora no Instituto Santa Madalena, de Spire, não correspondiam a seu valor intelectual, e que seu dever era de levar avante o trabalho científico. Rendendo-se à evidência, ela reconheceu que em Spire não poderia dedicar-se a uma obra filosófica de importância. Por isso, decidiu deixar Spire em março de 1931, e fixar-se inicialmente em sua casa de Breslau.

O grande trabalho filosófico que iniciava era a tradução para o alemão das Quaestiones disputatae de Veritate, de Santo Tomás. A tradução, primeira em língua alemã da importante obra do Doutor Angélico, apareceu em 1932, e impressionou os meios científicos pelo vocabulário filosófico moderno, e elegante clareza de estilo.

A reputação de Edith já a precedera, aliás, em Breslau. Logo se tornou centro de atração de numeroso grupo de jovens intelectuais, na maioria judeus, interessados na doutrina católica. Muitos se converteram, e Edith Stein foi a madrinha. Na família, teve a felicidade de ver sua irmã Rosa reunir-se a ela no catolicismo. Mas sua velha mãe, octogenária, permanecia inabalavelmente refratária.

Vários estabelecimentos de ensino superior apelaram para a eminente filósofa, e ela aceitou enfim uma cadeira de pedagogia na Universidade de Munster, na Vestfália. Sem dificuldade, conquistou a estima de todos. Brilhante carreira universitária parecia abrir-se novamente diante dela.

Mas, Deus tem caminhos que não são os nossos. Ele escolhera, no seio de seu povo, essa alma privilegiada. Queria-a totalmente para Si.


A sombra da cruz

O ano de 1933 se iniciava sob inquietantes presságios: o advento brutal do nacional-socialismo fazia antever imediatas perseguições contra os judeus.

Uma tarde, durante a Quaresma, Edith Stein teve pela primeira vez notícia dessas ameaças. A partir daí, a dolorosa apreensão de tantos sofrimentos reservados à sua raça jamais a abandonaria. No começo de abril, de passagem em Colônia, assistiu a uma Hora Santa na capela do Carmelo de Lindenthal. Nesta tarde, firmou-se entre o Mestre e a discípula um compromisso secreto que deveria orientar daí por diante todo o destino de Edith. Eis o que esta nos conta:

“Dirigi-me ao Senhor, e Lhe disse saber perfeitamente que sua Cruz pesaria, daí por diante, sobre o povo de Israel. Estava pronta a percorrer esse caminho. Que o Senhor me indicasse apenas o que devia fazer. Quando terminou o ofício, tinha a certeza interior de haver sido atendida. Mas não sabia ainda qual seria a minha Cruz.”

Ela o saberia bem cedo. De retorno a Munster, a 9 de abril seguinte, avisaram-na de que todo ensino e toda publicação estavam proibidos aos não arianos. Compreendeu imediatamente que sua carreira universitária estava terminada. Recebeu vários convites do estrangeiro, especialmente da América do Sul. Já tomara, porém, uma decisão irrevogável. Há doze anos aspirava com toda a alma à vida contemplativa. Não chegara a hora de realizar enfim seu desejo íntimo? Não se lhe poderia mais objetar com a necessidade de sua atuação no mundo, uma vez que toda atividade pública lhe era interdita.

O abade de Beuron aquiesceu afinal ao pedido. Imediatamente, Edith Stein deu os passos necessários para sua admissão no Carmelo de Colônia. Deixou Munster, em junho de 1933, e passou um mês em Colônia. Dirigiu-se enfim a Breslau, para despedir-se definitivamente dos seus.

Lá, tudo se ignorava de sua decisão. Sua irmã Rosa, a quem se confiou em primeiro lugar, ficou surpreendida, mas compreendeu e calou. Pouco a pouco, ela se abriu com os irmãos e irmãs, pedindo-lhes que nada revelassem à mãe. Como outrora, passava os dias de espera na intimidade com a mãe venerada. Esta, aos 84 anos de idade, sentava-se à mesa de trabalho e lhe confiava tudo o que tinha no coração. Jamais indagou dos projetos futuros da filha. Por sua vez, Edith não desejava apressar a hora da penosa revelação.

O momento, porém, devia chegar. Devemos consignar aqui a emocionante descrição que Edith nos deixou:

“No primeiro domingo de setembro, estava só em casa com mamãe. Ela estava sentada, tricotando perto da janela. Eu, a seu lado. De repente, fez-me a pergunta esperada há tanto tempo:

– Que é que você vai fazer em Colônia, com as religiosas?

– Viver com elas.

Mamãe não parou de tricotar. Seu novelo de lã se desenrolou. Com as mãos trêmulas, procurou enrolá-lo. Ajudei-a, enquanto a conversa continuava. A partir de então, terminou a paz. Sobre a casa, pairava uma densa opressão. De vez em quando, mamãe me fazia uma ou outra pergunta. Seguia-se o silêncio. Meus irmãos pensavam igual à mamãe, mas não desejavam aumentar-lhe o sofrimento. Um de seus genros, contudo, mostrou-lhe que minha decisão consumaria minha ruptura com o povo judeu, justamente quando ele estava exposto a terríveis provações. Como esta alusão a minha infidelidade deve ter feito mamãe sofrer!

Ela, que aceitara de boa vontade a Cruz que se abatia sobre sua raça, e que desejava carregar diante de Deus!

A separação me foi tão cruel, que ninguém poderia me dizer com certeza se tal ou qual maneira de agir teria sido a melhor. Eu tinha que dar esse passo por entre os mistérios da fé. Muitas vezes, durante esses dias, pensei: Qual de nós duas, mamãe ou eu, não poderia mais resistir?

Mas ambas aguentamos até o último dia.”

A 12 de outubro, aniversário de Edith e, ao mesmo tempo, festa judia dos Tabernáculos, a jovem acompanhou, pela última vez, a mãe à sinagoga. Durante o longo trajeto de volta que queria fazer a pé, a fim de abrir o coração com a filha, a mãe perguntou-lhe:

– Gostou do sermão?

– Claro, mamãe.

– Então também se pode ser piedosa entre os judeus?

– Sem dúvida, quando a gente não aprendeu a conhecer outra coisa.

A mãe fez esta dolorida reflexão:

– Por que então você aprendeu outra coisa? Não quero censurar nada a Jesus. Ele pode ter sido uma criatura muito bondosa. Mas, por que quis ser Deus?

“Nesse dia, nossa casa estava cheia. Um após outro, os hóspedes se despediram. Por fim fiquei só, no quarto com mamãe. Levando as mãos ao rosto, ela começou a chorar. Coloquei-me atrás de sua cadeira e apertei docemente a venerável cabeça grisalha. Ficamos assim muito tempo, até que ela quis deitar-se. Nessa noite, não fechamos os olhos nem por um momento.”

sábado, 8 de maio de 2010

Utilidade pública católica!

Recentemente o site do Vaticano (www.vatican.va/phome_po.htm) disponibilizou os Acta Sanctis Sedis e os Acta Apostolicae Sedis, que são os documentos oficiais anuais da Santa Sé, com todos os documentos emitidos pela Igreja. Os primeiros são concernentes ao período de 1865-1908 e os Acta Apostolicae Sedis desde 1909 até os dias de hoje. São instrumentos valiosíssimos para a pesquisa histórica sobre a Igreja, já que são fontes primárias. Vocês podem vê-los nestes links: http://www.vatican.va/archive/ass/index_po.htm e http://www.vatican.va/archive/aas/index_po.htm .

Além disso, também foi disponibilizado os Atos e Documentos da Santa Sé Relativos à Segunda Guerra Mundial, uma obra monumental em 13 volumes organizada e publicada nas décadas de 1960 e 1970 pelos padres Pierre Blet, Angelo Martini, Robert Graham e Burkhart Schneider, contendo os documentos e toda a correspondência trocada entre o Papa Pio XII e os bispos, núncios, personalidades mundiais e toda a correspondência diplomática da Santa Sé na
época da Guerra (1939-1945). Vale a pena conferir em http://www.vatican.va/archive/actes/index_po.htm . Aos poucos devo estar traduzindo alguns documentos e a introdução da obra e colocando no blog Pastor Angelicus (http://www.papapio12.blogspot.com/).

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Convertidos do século XX: Edith Stein – 2

A hora de Deus

No outono de 1921, Edith Stein passou alguns dias de férias na casa de amigos íntimos, os Conrad Martius, na encantadora casa de campo de Bergzabern, na Baviera. De bom grado a estudante ali repousava. Na ausência dos donos da casa, usava largamente a biblioteca. Era aí, nesse domínio dos livros, a que era particularmente afeiçoada, que a Providência deveria esperá-la no dia escolhido. Escutemos o que diz Edith Stein:

“Um dia, peguei ao acaso uma obra bastante imponente. Intitulava-se: Vida de Santa Teresa, escrita por ela mesma. Comecei a ler. Imediatamente senti-me cativada, e não interrompi mais a leitura até o fim. Quando fechei o livro, pensei comigo mesma: esta é a verdade!”

Lá fora despontava a madrugada. Edith Stein tinha passado a noite inteira lendo. Bruscamente, irrompia a luz de Deus na sua alma.

Sua primeira providência, nessa manhã, foi ir à cidade comprar um catecismo católico e um missal. Começou logo a estudá-los com todo o cuidado, e rapidamente assimilou-os. Em seguida resolveu assistir à missa paroquial em Bergzabern.

Pela primeira vez penetrava em uma igreja católica. Vejamos suas impressões: “Nada me pareceu estranho: graças ao estudo que fizera, podia compreender as cerimônias em todos os seus detalhes. Um padre venerável subindo ao altar celebrou o Santo Sacrifício com profundo fervor. Acabada a missa, esperei que o celebrante concluísse a ação de graças.

“Acompanhei-o ao presbitério e pedi-lhe o batismo. Atônito, respondeu-me que a recepção na Igreja Católica exigia uma preparação. Ele desejava saber durante quanto tempo em recebera instrução e quem a ministrara. Como resposta, disse-lhe: Por favor, interrogue-me!”

O padre começou então o exame. As respostas foram perfeitas. Toda a doutrina católica foi passada em revista. Cheio de admiração, o sacerdote não pôde mais recusar o batismo.

A 1º de janeiro de 1922, Edith Stein foi batizada. Escolheu, em sinal de reconhecimento, o prenome Teresa. Comungando nesse mesmo dia, permaneceu, daí por diante, fiel à prática da comunhão diária.

A 2 de fevereiro seguinte, recebeu das mãos do bispo de Spire, Monsenhor Sebastião, o sacramento da crisma.

Sobre a luz radiosa desses dias de graça, pairava uma sombra: a mãe.

Desde pequena, Edith Stein ligara-se vivamente a essa mãe admirável, cujos sentimentos mais íntimos partilhava. O trabalho mais urgente não interrompia a correspondência semanal entre elas. Qual seria a reação dessa mãe crente, israelita exemplar, ao conhecer a decisão da filha? Poderia ver na conversão de Edith ao catolicismo outra coisa além de uma suprema infidelidade? Expulsaria a filha de casa?

Edith desejava dar-lhe, pessoalmente, a notícia. Partiu para Breslau. Encontro patético, o da mãe com a neófita. Caindo de joelhos diante dela, Edith confessou:

“Mamãe, sou católica!” Não houve briga. Mas pela primeira vez na vida, Edith Stein viu a mãe chorar. Diante de tal notícia, a velha, forte, sentiu que as forças a abandonavam. Contudo, apesar do profundo dilaceramento que as separaria daí em diante, mãe e filha sentiram que seus corações permaneciam profundamente unidos.

Certa amiga da família assim descreveu a nova situação:

“Estou convencida de que a transformação que se operou em Edith, irradiando-se de todo o seu ser como uma força sobrenatural, desarmou pouco a pouco a senhora Stein. Mulher de piedade profunda, sentia, sem compreender, a santidade que emanava da filha e, apesar de sua dor, reconhecia claramente a impossibilidade de lutar contra o mistério da graça. Contudo, antes como depois da conversão, permanecia profundamente unida aos seus, e fazia o impossível para não modificar coisa alguma das relações familiares.”

A pedido de sua velha mãe, Edith Stein permaneceu seis meses com a família. Por piedade filial, continuava a acompanhá-la à sinagoga. Em vez de renegar o Antigo Testamento, considerava-o agora o lento caminho para o Evangelho, que ele representava no plano de Deus. Seu recolhimento profundo arrancou da mãe esta reflexão: “Nunca vi ninguém rezar como Edith.”

O apelo do silêncio

A conversão tinha operado em Edith Stein uma evolução profunda. Agora, procurava seu lugar no campo do Senhor. Renunciando de início às suas funções na Universidade de Friburgo, foi para Spiro, onde ficou sob a direção do cônego Schwind. A graça trabalhava em sua alma. Pouco a pouco, uma atração profunda a conduziu ao sacrifício total. O claustro a atraía. Entretanto, os diretores dissuadiam-na vivamente, considerando que seus dons excepcionais a indicavam para a vida ativa no mundo.

Assim, viu seu desejo realizar-se pela metade, quando lhe permitiram recolher-se à calma de um liceu de religiosas dominicanas, para ensinar a moças. Ao mesmo tempo, obteve permissão de partilhar completamente a vida da comunidade religiosa. Grande lição para tantos espíritos superficiais! Na hora mesma em que esta mulher extraordinariamente dotada podia aspirar às mais famosas cátedras das universidades europeias, fechava-se no silêncio de um horizonte aparentemente limitado. Mas aí encontrava Deus e a Verdade, que durante tanto tempo procurara através de caminhos ásperos. Que mais poderia desejar?

Eis o testemunho que dela nos oferecem:

“Rezava durante horas. Quando as Irmãs chegavam à capela, às quatro ou cinco horas da manhã, a ‘doutora’ já estava ajoelhada em seu lugar. Nunca procurava sobressair; pelo contrário, apagava-se em tudo. E apesar disso, desde o primeiro contato, todos se sentiam subjugados pela grande santidade que irradiava silenciosamente de sua pessoa.”

Suas funções de professora a encantavam. Encontrava nelas a possibilidade de abrir os jovens espíritos às riquezas de seu próprio mundo interior, de fortificar-lhes a fé e de encaminhá-los a uma vida verdadeiramente cristã. Possuía ideia elevada de sua missão de ensino, como se percebe através da confidência feita a uma religiosa:

“O importante é que aqueles que ensinam possuam verdadeiramente o espírito de Cristo, e O encarnem em si mesmos. Além disso, porém, lhes incumbe outro dever: conhecer bem a vida que levarão mais tarde aqueles que lhe são confiados. A geração jovem de nossos dias atravessou muitas crises. Não saberia mais compreender-nos. Cabe-nos, portanto, tentar compreendê-la. Só então poderemos, talvez, fazer-lhes um pouco de bem.”

Os antigos alunos de Edith Stein são unânimes em proclamar a inesquecível lembrança que conservam de sua professora. De um punhado de testemunho, escolhemos apenas um depoimento. É de uma das mais jovens alunas de Edith Stein: “Eu estava no Instituto Santa Madalena havia apenas um ano. Tinha 17 anos. A Senhora Stein nos ensinava literatura alemã. Para dizer a verdade, ela nos ensinava tudo. Éramos ainda muito jovens, mas jamais esqueceremos o encanto de sua personalidade. Todos os dias, podíamos vê-la ajoelhada à nossa frente, em seu genuflexório, durante a Santa Missa. Assim nos mostrava o que pode ser uma fé profunda, perfeitamente harmonizada com uma atitude de vida. Para nós que estávamos na fase da indecisão, ela era um exemplo pela simples conduta. Nunca encontrei falha alguma em suas decisões, sem dúvida porque era uma pessoa suave e calma, que se dirigia a nós mais pela maneira pessoal de agir, do que por palavras. Em suas críticas, a bondade se aliava à justiça. Sempre a vimos serena e pura. Com espírito esclarecido, soube levar-nos, pela primeira vez, a um espetáculo teatral. Coisa rara na época, para meninas de colégio. Representava-se Hamlet. Vimos a peça pelos olhos dela, tão bem nos tinha introduzido no universo de Shakespeare. E que coração aberto a todas as belezas do mundo! Assim ficará para sempre gravada em nossa memória.”

terça-feira, 4 de maio de 2010

Convertidos do século XX: Edith Stein – 1

Findava o inverno de 1945.

A pequena cidade de Echt, no Limburgo holandês, encolhida de frio, ansiava pela primavera próxima, para curar suas feridas. Pouca gente nas ruas. Trânsito quase nenhum, nessa manhã após a libertação.

Um automóvel militar que atravessava a cidade atraiu a atenção dos habitantes. Nele estava o Padre Superior do Carmelo de Geleen, acompanhado do Padre van Bréda, professor da Universidade de Lovaina.

O carro parou diante de um edifício em ruínas, o antigo Carmelo, destruído pelos bombardeios. Os moradores ficaram surpresos ao ver os dois eclesiásticos descerem, abrirem caminho penosamente nos escombros, e iniciarem a procura de papéis esparsos e sujos.

Quando tiveram a certeza de não encontrar mais nenhum fragmento de papel, recolheram com todo o cuidado o fruto de suas pesquisas e partiram.

Que interesse poderia ter essa papelada?

Tratava-se de folhas manuscritas de uma importante obra de filosofia, abandonada na cela por uma carmelita, bruscamente deportada para o Leste em agosto de 1942. O Ser finito e o Ser eterno, assim se chamava essa obra filosófica, a mais importante da vida da irmã Teresa Benedita da Cruz.

Esse nome religioso era o de Edith Stein. Judia convertida, discípula predileta do grande filósofo Edmund Husserl, célebre no mundo intelectual germânico antes de abraçar a religião, ela foi, segundo o testemunho de Dom Walzer, abade de Beuron, uma das mulheres mais eminentes de nossa época.

Sua vida e sua conversão constituem admirável cântico de fidelidade à luz da graça. Tudo parecia afastá-la do cristianismo: seu meio natal, a educação judia que recebeu, o estudo junto a um mestre eminente, cuja filosofia devia seduzir fortemente sua grande inteligência, a perspectiva de uma carreira universitária que se prenunciava das mais brilhantes. Passo a passo, soube responder ao chamado de Deus, triunfando sucessivamente de todos os obstáculos que a separavam d’Ele.


Filha de Israel

12 de outubro de 1891. Havia festa na família Stein. A casa da rua São Miguel, em Breslau, de aspecto geralmente severo, parecia sorrir naquele dia. Aos seis filhos do casal Stein se acrescentava uma menina, que se chamaria Edith.

Para termos uma ideia da atmosfera deste lar israelita modelo, seria necessário contemplar certas gravuras de Rembrandt, em que o artista nos transmitiu, com fidelidade, a fisionomia dos interiores judeus do gueto de Amsterdam.

Desde os primeiros passos, a pequena Edith estava mergulhada em um clima de Antigo Testamento. Tudo lhe falava do Povo de Deus. As imagens da Bíblia nas paredes da casa, os motivos esculpidos nas arcas de carvalho, as preces tradicionais recitadas em hebraico, os ritos do Talmude fielmente observados, e sobretudo o admirável exemplo de uma mãe profundamente religiosa, mulher forte da Escritura Sagrada, cuja extraordinária energia e zelo infatigável iriam desenvolver-se sem descanso, a partir da morte do esposo.

Edith Stein tinha três anos quando o pai morreu de repente, em uma viagem de negócios. Sem hesitação, a mãe chamou tudo a si: o importante comércio de madeiras e a educação das sete crianças. Fez prosperar a ambos.

Preocupada antes de tudo com a educação dos filhos, jamais deixou de conduzi-los à sinagoga, nos dias de Sabá. Conservou sempre aos olhos de seus filhos a autoridade indiscutível, diante da qual se inclinavam com amor e respeito. Edith Stein escreveu mais tarde a seu propósito:

“Quando crianças, podíamos ler, no exemplo de nossa mãe, a verdadeira maneira de nos comportar. Se ela dizia: isto é pecado, – sabíamos que se referia a algo de detestável e indigno.”

Edith era-lhe particularmente cara. Não raro a mãe sonhava com um grande futuro para sua filha predileta. Seu desejo deveria realizar-se, mas de maneira tão diferente!

Graciosa e delicada, Edith era tratada com carinho pelos irmãos, que viam nela uma criança singularmente dotada.

Espírito receptivo, inteligência viva e precoce, foi para ela uma alegria entrar na escola primária, no outono de 1897. Assim começava uma vida de estudos que não abandonaria até a morte.


Os caminhos da verdade

Escola primária, ginásio, universidade: Edith Stein seguiu primeiro o curso normal dos estudos, na sua cidade natal de Breslau. Bem cedo revelou talento excepcional.

Uma de sua colegas de ginásio nos diz:

“Embora muitas alunas fossem bem dotadas, Edith Stein eclipsava todas pela inteligência e pelos conhecimentos. Aplicada, não mostrava nenhum empenho ambicioso; sua imagem que ficou é a de uma moça silenciosa, introspectiva e muito cativante... Fora dos estudos, tomava parte em todas as nossas reuniões e jamais era desmancha-prazeres. Podíamos nos dirigir a ela em todas as dificuldades. Sempre pronta aprestar serviço e a dar conselho, seu julgamento era refletido e seguro”.

O interesse vivo que Edith mostrava pelos estudos inquietou logo a vigilância materna. Inquietação bem fundada, aliás. Os estudos de filosofia prejudicavam a piedade da moça. Sempre acompanhando sua mãe à sinagoga, seu espírito se abria a outros horizontes. Pouco a pouco, desligava-se de toda crença profunda em um Deus pessoal. Não devemos, entretanto, aceitar sem reservas o que ela disse um dia: Até vinte e um anos, não acreditava em Deus. Como se não tivesse também escrito:

“A sede da verdade era a minha única oração.”

Esta lúcida paixão da verdade não seria já homenagem inconsciente ao verdadeiro Deus?

Deixando Breslau, seguiu em Gottingen os notáveis ensinamentos do grande pensador da época, Edmund Husserl. Ali deu livre curso à paixão dos estudos e se mostrou de imediato uma das adeptas mais brilhantes de fenomenologia husserliana. Essa nova escola filosófica, com a sua volta à objetividade, sua lógica precisa, sua aspiração à pureza integral das coisas, correspondia bem ao temperamento da jovem judia.

Logo se tornou figura se primeiro plano, no pequeno grupo de discípulos de Husserl, alguns dos quais adquiriram mais tarde renome mundial, como Dietrich Von Hildebrand, Hans Lipps (morto na última guerra), o russo Alexandre Koyre, o canadense John Bell, o francês Jean Hering etc. O professor Adolphe Reinach, israelita como Husserl e muitos de seus alunos, reunia-os em casa. Os debates, por vezes apaixonados, prolongavam-se até altas horas da noite. Nessa época, passa por Gottingen o professor Max Scheler. A série de conferências religiosas que proferiu teve profunda repercussão. Todo um movimento de conversões se delineou. Dietrich Von Hildebrand entrou para a Ordem Terceira de São Francisco. Koyre e sua mulher se aproximaram sensivelmente da Igreja Católica. Adolphe Reinach abraçou o cristianismo durante a guerra de 1914-1918. Só Edith Stein permanecia inabalável. No seu quarto de estudante, os livros se empilhavam. Mais inflexível que nunca, ela encarniçava-se na procura de seu único ideal: a verdade na ciência. Mas, sempre interessada pelos problemas do próximo, continuava sendo a companheira encantadora e devotada a quem todos podiam recorrer com êxito.

Agosto de 1914: guerra. Nem por um instante, Edith Stein hesitou em interromper seus queridos estudos e inscrever-se na Cruz Vermelha. Durante dois anos devotou-se ao tratamento de feridos, no hospital militar de Mahrisch-Weisskirchen. Nesse meio tempo, em 1916, o professor Husserl foi nomeado para a Universidade de Friburgo, em Brisgau. Considerando Edith Stein como discípula predileta, convidou-a para assistente particular. Encarregada de classificar e organizar os manuscritos do mestre, ela adquiriu dessa maneira um conhecimento profundo de sua doutrina. Em 1917, doutorou-se com a maior distinção, defendendo tese sobre o problema da imanência.

Mais premente se tornava a sua busca de Deus. O culto intransigente da verdade encaminhava-a pouco a pouco para a claridade total. Um estudo publicado pouco depois da guerra, Sobre a alma das plantas, a alma dos animais, a alma dos homens, revelava um singular aprofundamento e talvez já uma conversão interior.

Magnífico exemplo de itinerário rigorosamente filosófico, que, em vez de afastar a alma de Deus como alguns pensam, a conduz infalivelmente para a Ele!


Por René Courtouis, S.J., em Convertidos do Século XX, Agir, 1966.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

São Filipe e São Tiago Menor, apóstolos

Filipe, o quinto na lista dos apóstolos, originário de Betsaida, provavelmente falava grego. É ele o apóstolo a que se dirige Jesus no milagre da primeira multiplicação dos pães e dos peixes (Jo 6, 5-13); e esse episódio ficará como sua característica iconográfica nas representações artísticas de sua figura (alternando com a cruz, que indica a forma de seu martírio). A tradição literária mais segura atribui-lhe a evangelização da Frígia, enquanto o Breviário Romano e alguns martirológios lhe acrescentam também a da Cítia e da Lídia. Na Frígia, viveu os últimos anos de sua vida, em Hierápolis, onde foi sepultado. Polícrates, bispo de Éfeso na segunda metade do século II, dá um testemunho preciso disso numa passagem da carta que escreve ao papa Vítor: “Filipe, um dos doze apóstolos, repousa em Hierápolis com duas filhas suas, que se conservaram virgens a vida inteira, enquanto uma terceira, que viveu no Espírito Santo, está sepultada em Éfeso” (a passagem é citada por Eusébio, História eclesiástica, III, 31, 3). Em apoio a essa notícia, dados arqueológicos mostraram que há nessa cidade indícios de seu culto desde a primeira era cristã: uma inscrição da antiga necrópole de Hierápolis menciona uma igreja dedicada ao apóstolo Filipe. Sua morte se deu por martírio, no tempo do imperador Domiciano (81-96), pela mesma pena a que tinha sido condenado Pedro muitos anos antes, a crucifixão inverso capite (de cabeça para baixo), em idade certamente muito avançada, que fontes mais tarde fixam em oitenta e sete anos. Desde o século VI, aparece como data de seu martírio, como também do apóstolo Tiago Menor, o dia 1º de maio; mas esse, na realidade, é o dia da dedicação da igreja dos Santos Doze Apóstolos, em Roma, cuja construção foi iniciada pelo papa Pelágio I (556-561) por ocasião da trasladação dos corpos dos dois apóstolos (ou, ao menos, de uma parte significativa deles), vindos de Constantinopla, presumivelmente em 560, e que o papa João III (561-574) concluiu, talvez com a ajuda financeira do vice-rei bizantino Narsete. Devemos inferir, portanto, uma trasladação anterior das relíquias de Filipe, de Hierápolis para Constantinopla, da qual, porém, não nos restou nenhuma documentação. A tradição da presença de despojos significativos de Filipe em Roma foi confirmada por uma identificação realizada em 1873. Até essa data, conservou-se na Basílica dos Santos Doze Apóstolos um relicário que continha, quase intacto, o seu pé direito (enquanto outro relicário continha o fêmur de Tiago Menor); já os corpos dos apóstolos eram venerados sob o altar central. Ao escavarem debaixo deste, em janeiro de 1873, veio à luz um aglomerado de cal e tijolos: demolido este, apareceram na horizontal duas lajes de mármore frígio, unidas de modo preciso entre si, que traziam esculpida em relevo uma cruz grega (com os braços iguais); debaixo dessas lajes, perpendicularmente sob o altar, havia um lóculo, no qual se encontrava uma caixinha com alguns ossos, a maior parte dos quais reduzida a fragmentos ou lascas, alguns dentes e muitas substâncias misturadas, formadas por decomposição de material ósseo; além disso, havia resíduos de tecido, que, analisados mais tarde, revelaram ser de lã, com uma preciosa coloração púrpura. As análises dos achados foram realizadas por uma comissão científica, da qual faziam parte anatomopatologistas, físicos, químicos e arqueólogos (entre outros, Angelo Secchi, Giovanni Battista De Rossi e Pietro Ercole Visconti); um relatório detalhado foi também elaborado e publicado em seguida. Os especialistas puderam constatar que as relíquias pertenciam a dois indivíduos adultos distintos de sexo masculino: as de um, de compleição mais diminuta, cujos ossos se conservaram íntegros (particularmente partes de uma escápula, de um fêmur e do crânio), como também o pé conservado no relicário, foram atribuídas a Filipe; as do segundo, de compleição mais robusta, eram constituídas substancialmente de um molar (ver, mais adiante, o que escrevemos sobre Tiago Menor). Não foi possível identificar a qual dos dois indivíduos pertencia todo o resto dos fragmentos, em razão de seu estado de decomposição. O contexto arqueológico remetia sem dúvida ao século VI, e, por conseguinte, ao edifício construído por Pelágio I e João III; pela identificação, ficou confirmada a exatidão da notícia relativa à trasladação de 560. A quantidade de relíquias leva a considerar que parte delas tenha-se disperso nas trasladações do Oriente para Roma (no mínimo duas para cada apóstolo). Em 1879, depois de um período de exposição à veneração dos fiéis, as relíquias encontradas sob o altar foram depositadas numa arca de bronze, dentro de um sarcófago de mármore, colocado na cripta da igreja, debaixo do lugar em que tinham sido encontradas. Já a relíquia do pé foi deixada de fora, dentro de um relicário, atualmente não exposto aos fiéis.

* * *

Provavelmente, são a mesma pessoa o Tiago irmão do apóstolo Judas Tadeu, que os Evangelhos e os Atos relacionam entre os doze apóstolos, chamando-o filho de Alfeu, e o Tiago que, em outras partes dos mesmos Evangelhos, é chamado “irmão” (ou seja, primo, pela correta interpretação do termo hebraico) do Senhor, filho de Maria, uma das mulheres presentes aos pés da cruz de Jesus, mulher de Cléofas, “irmã” (ou seja, cunhada) de Nossa Senhora. Cléofas e Alfeu poderiam ser dois nomes da mesma pessoa, ou melhor, duas formas do mesmo nome aramaico. O Tiago “irmão” de Jesus é citado por Paulo como uma das “colunas” da Igreja, com Pedro e João, em Jerusalém, onde foi bispo desde a partida de Pedro para Roma (no ano 44) até o martírio, ocorrido durante a Páscoa de 62. A Igreja do Oriente distingue até hoje o apóstolo e o bispo de Jerusalém, com base numa tradição introduzida pelos escritos pseudoclementinos (Hipotiposes, VI) entre o final do século II e o início do III e, mais adiante, particularmente por Eusébio de Cesareia e João Crisóstomo, mas não por muitos outros Padres gregos; já para a Igreja do Ocidente, o Concílio de Trento afirmou a identidade das duas pessoas.
O martírio de Tiago, conhecido por notícia de Flávio Josefo (Antiguidades judaicas, XX, 197.199-203), desde o fim do século I, nos é descrito em detalhes por Eusébio de Cesareia, que cita por extenso, principalmente, uma narrativa anterior de Hegésipo (Memórias, 5). Tendo morrido Festo, prefeito da Judeia, e enquanto seu sucessor, Albino, encontrava-se ainda em viagem, vindo de Roma, o sumo sacerdote Ananos, o Jovem, aproveitou o momento para convocar o sinédrio e condenar Tiago à lapidação. Estamos no ano 62. Tiago foi lançado do pináculo do Templo e, não tendo morrido, foi em seguida lapidado; uma vez que, pondo-se de joelhos, rezava por aqueles que o estavam lapidando, “um deles, um pisoeiro, tomando o pau com que batia os panos, golpeou na cabeça o Justo, que morreu mártir desse modo. Foi, então, sepultado no lugar, perto do Templo, em que se encontra seu monumento” (Hegésipo, em Eusébio, História eclesiástica, II, 23, 18). Seu cipo sepulcral, segundo o testemunho de Jerônimo, permaneceu no local até o tempo do imperador Adriano (117-138); depois, seu rastro deve ter-se perdido, já que temos a notícia da invenção do corpo de Tiago (ou seja, de sua descoberta), por volta da metade do século IV, ao lado dos corpos dos mártires Simeão e Zacarias, por obra de um heremita, Epifânio. O corpo de Tiago foi temporariamente trasladado para dentro de Jerusalém pelo bispo Cirilo, em 1º de dezembro de 351, e depois levado de volta à igreja construída no lugar da invenção; por fim, há notícias de uma trasladação – no mesmo dia 1º de dezembro – para outra igreja de Jerusalém, construída sob o imperador bizantino Justino II (565-578) e dedicada a Tiago. Mas a partir daqui as várias notícias dificilmente combinam. Deve estar ligada a uma trasladação de parte das relíquias, de Jerusalém (ou talvez de Constantinopla?) a Roma, o início da construção, na época do papa Pelágio I (556-561), de uma basílica dedicada aos apóstolos Tiago e Filipe, cuja festa litúrgica, a partir daí, cai no Ocidente no dia 1º de maio (hoje passada para 3 de maio); essa basílica foi concluída pelo papa João III (561-574) e atualmente é intitulada aos Santos Doze Apóstolos.
Em janeiro de 1873, como dissemos antes a propósito do apóstolo Filipe, uma comissão científica fez um reconhecimento da área sob o altar da igreja dos Santos Doze Apóstolos, em Roma. As relíquias pertenciam a dois indivíduos distintos. O de compleição mais robusta, do qual estão conservadas apenas lascas e fragmentos ósseos, embora em quantidade consistente, além de um fêmur presente ab immemorabili na basílica, foi identificado como Tiago Menor. Em 1879, as relíquias foram depostas numa arca de bronze, dentro de um sarcófago de mármore, colocado na cripta da igreja, sob o altar central e no lugar em que tinham sido encontradas; e lá estão até hoje. Já a relíquia do fêmur foi posta num relicário especialmente fabricado, hoje não exposto aos fiéis.
Em Santiago de Compostela é venerada a relíquia da cabeça de Tiago Menor; segundo uma tradição, o crânio foi levado para o Ocidente por Maurício Burdino, bispo de Braga, depois de tê-lo retirado de Jerusalém durante sua peregrinação à Terra Santa, em 1104. Em 1116, Urraca, rainha de Castela e Leão, apossou-se da cabeça e a doou à igreja de Santiago, onde ainda hoje está preservada num busto-relicário na capela dedicada ao apóstolo. Mas outro crânio, também atribuído a Tiago Menor, é conhecido desde a Idade Média em Ancona, na Itália, e hoje guardado no museu diocesano anexo à catedral de São Ciríaco: examinado depois da identificação das relíquias conservadas em Roma, mostrou-se compatível com estas.

Amai-vos uns aos outros como eu vos amei –V Domingo da Páscoa


Neste quinto Domingo da Páscoa, a Sagrada Liturgia nos faz contemplar o céu, destino de todos os santos, e o caminho para se chegar até ele.

Céu, o que significa esta palavra tão enigmática, a que realidades ela se refere? Seria uma realidade puramente física, material, seria o céu aquilo que vemos ao olhar para o alto, lugar onde ficam as estrelas e os elementos espaciais? O astronauta russo Yuri Gagarin, primeiro homem a chegar ao espaço sideral, disse: “Fui ao céu e não vi Deus”. Não, não é, definitivamente, a primeira coisa que nos vêm à mente quando falamos de céu. A primeira delas é Deus. Não é a Ele que nos referimos quando falamos às crianças sobre o “Papai do céu”? De fato. Na consciente coletivo, a palavra céu está ligada diretamente a Deus e às realidades divinas. O céu, assim nos foi ensinado, é o lugar para onde vão as almas justas após a morte – enquanto as más vão para o inferno. No entanto, quando falamos de céu, efetivamente, a que nos referimos? A segunda leitura, do Livro do Apocalipse, nos mostra esta realidade de forma belíssima: em primeiro lugar, após a consumação dos séculos e o julgamento escatológico, o mundo será inteiramente renovado: “Um céu novo e uma nova terra” (Ap 21,1), conforme diz o Senhor: “Eis que eu faço novas todas as coisas” (Ap 21,5). Neste mundo renovado, o mar, símbolo da violência, do pecado e do mal, já não existirá; assim como o Mar Vermelho foi aberto para que o povo santo de Deus rumasse para a libertação, assim o mar do mundo, no fim dos tempos, será definitivamente varrido da face da terra, para que o povo eleito, o povo santo de Deus, passe, triunfante, vitorioso, para a Terra Prometida e definitiva que é Deus mesmo. Eis aqui, o céu: o povo eleito de Deus habitando junto com Ele, o Deus conosco, o “‘Deus-com-eles’ [que] será o seu Deus. Ele enxugará toda lágrima dos seus olhos, pois nunca mais haverá morte, nem luto, nem clamor, e nem dor haverá mais. Sim! As coisas antigas se foram!” (Ap 21,3-4). Que palavras consoladoras! Tudo pelo que o nosso coração almeja será dado de presente àqueles que guardarem a Palavra fielmente até o fim e alvejarem suas vestes no sangue do Cordeiro imaculado, que tira o pecado do mundo (cf. Ap. 7,14; Jo 1, 29).

Mas há uma outra coisa importante: o “lugar” dessa salvação de Deus, o “lugar” no qual Deus habita junto de seu povo é a Jerusalém Celeste, a Cidade Santa, que desce do céu de junto de Deus, pronta como uma esposa que se enfeitou para o marido (cf. Ap. 21,2). Esta Jerusalém Celeste é a Igreja, Una, Santa, Católica e Apostólica, o novo Povo de Deus, Povo da Nova e Eterna Aliança firmada no sangue de Cristo, do qual ela se alimenta cotidianamente na Eucaristia e que será, para ela, penhor da salvação futura.

O que fazer, pois, para ganhar a salvação, o que fazer para participar do banquete das núpcias do Cordeiro, o que fazer para tornar-se cidadão da Cidade Santa? O Senhor Jesus nos diz no Evangelho de hoje, em seu discurso de despedida após a Última Ceia, ao dar a seus discípulos o seu novo mandamento: “Que vos ameis uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros.” (Jo 13,34). É novo este mandamento? Já não existia na Lei Antiga, quando se dizia: “Amarás o Senhor teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, com toda a tua força e de todo o teu entendimento; e ao teu próximo como a ti mesmo” (Lc 10,27; cf. Dt 6,5; Lv 19,18)? Não: a medida do amor ao próximo, que na Antiga Lei era o amor a si mesmo, é mudada: a medida agora é o amor de Cristo. E o amor de Cristo foi a sua entrega total ao serviço da humanidade, desde sua Bendita Encarnação, passando por toda a sua existência humana, e culminando com a sua Paixão, Morte e Ressurreição. Sim, a medida é outra, o amor é muito mais exigente! O Senhor dirá mais adiante: “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos” (Jo 15,13). É preciso que meditemos profundamente sobre esta realidade: será que estamos amando, por Cristo, ao nosso próximo, independentemente de quem ele seja? É grave a palavra do Senhor: “Nisto reconhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns pelos outros”. Por que será que muitos se escandalizam com os cristãos e não creem por causa deles? Não será porque nós não nos amamos e, ao contrário, estamos em constante contenda uns com os outros? Não foi à toa que o Evangelista João destacou um capítulo inteiro, o décimo sétimo de seu Evangelho, para a oração sacerdotal de Jesus, que implorava do Pai a unidade para seus irmãos: “Não rogo somente por eles, mas pelos que, por meio de sua palavra, crerão em mim: a fim de que todos sejam um. Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que eles estejam em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste.” (Jo 17,20-21) Portanto, “amados, amemo-nos uns aos outros, pois o amor vem de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus”, porque “Deus é amor: aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus permanece nele” (1Jo 4,7.16), assim Deus se torna “Deus-conosco”.