domingo, 30 de novembro de 2008

I Domingo do Advento


O Verbo eterno do Pai, da luz do Pai emanado, nascendo, eleva história caída pelo pecado. E assim libertas das culpas, frutos de nossas malicias, no céu possamos gozar vossas eternas delícias.[1] Por causa da dureza de nossos corações e do não reconhecimento de Deus como nosso Senhor e Redentor, nos distanciamos de seus caminhos e assim, nos afastamos de Deus, como diz a Escritura: criei e fiz crescer meus filhos, mas eles me desprezaram...Israel não me conhece, meu povo não quer entender...[2] No entanto, Tu, Senhor, estás no meio de nós, e Teu nome foi invocado sobre nós; não nos abandone, Senhor e nosso Deus.[3] E eis que Ele vem ao encontro de quem é justo, pois Ele é bom, clemente e fiel, é perdão para quem o invoca.[4]
Desnorteados, por nos desviar dos caminhos de Deus e, conseqüentemente, ficando sem esperança, nos deparamos com uma absurda pergunta: qual o sentido de nossa existência? Que, muitas vezes, permanece sem resposta por imaturidade espiritual e pelo afastamento de Deus. Mas, em Cristo, existimos, nos movemos e somos. E Nele somos cumulados de todas as riquezas, todas as palavras e todo conhecimento[5] Eis a verdadeira e única resposta, nosso Senhor Jesus Cristo. E Ele disse, Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim.
Meus irmãos, eis que Cristo virá e manifestará a coroa de sua glória cercado de uma multidão de anjos para julgar os vivos e os mortos e renovar toda a criação. Eis que faço nova todas as coisas. Dessa forma, na fé de que Cristo virá, O obedeçamos; E Ele disse: vigiai, portanto, pois, não sabeis quando o Senhor desta casa voltará, para que, vindo de repente, não vos encontre dormindo. E o que vos digo, digo a todos.[6]
Amados irmãos, movidos pelo Espírito Santo, na esperança da vinda de Cristo e, certos de seu justo julgamento, peçamos a Deus Pai que nos conceda o ardente desejo de possuir o reino celeste, para que, acorrendo com nossas boas obras ao encontro de Cristo que vem, sejamos reunidos a sua direita na comunidade dos justos.[7]


[1] Hino do Ofício das Leituras do Tempo do Advento;
[2] Is 1, 2-3;
[3] Jr 14, 9;
[4] Sl 85 – 86, 5;
[5] 1 Cor 1, 5;
[6] Mt 13, 35;
[7] Oração Coleta do 1º Doingo do Advento – Ano B.

sábado, 29 de novembro de 2008

O Advento: tempo de espera do Senhor


Roráte Caeli désuper,
Et núbes pluant iústum.
Orvalhai lá do alto, ó céus,
E as nuvens chovam o Justo!


Terminado o ano litúrgico da Igreja com a semana da Solenidade de Cristo Rei, chegamos mais uma vez ao maravilhoso tempo do Advento, que nos prepara para acolher a chegada do Natal do Senhor Jesus.
Há dois mil anos atrás o anjo Gabriel, cumprindo as antigas profecias, anunciou a uma jovenzinha de uma aldeia perdida no meio do mundo chamada Nazaré, naquela obscura província do Império Romano, que ela seria agraciada com um grande dom de Deus e chamada a participar ativamente de seu plano salvífico. Deus viria pessoalmente salvar seu povo e o fez ao encarnar-se no seio de Maria.
Desde as primeiras gerações cristãs até os dias de hoje, os redimidos celebram este grande mistério da Encarnação do Verbo de Deus crentes de que, na força do Espírito Santo, este mistério torna-se atual. Em outras palavras, a salvação oferecida aos judeus de dois mil anos atrás foi oferecida às pessoas de toda a história e o é ainda hoje. De fato, celebrando a liturgia como comunidade dos filhos de Deus, congregados pelo Espírito de Cristo, possuídos por esse mesmo Espírito, os cristãos vivem no hoje de suas vidas a salvação do Messias.
Mas, para celebrar de maneira pura e jubilosa este grande evento salvífico, desde cedo a Igreja instituiu um tempo oportuno para a preparação devida dos fiéis. Assim surgiu o Advento. Neste tempo, os cristãos procuram unir-se mais ao Senhor na expectativa de sua vinda gloriosa. Por isso, o tempo do Advento é um tempo de maior oração e meditação na Palavra de Deus, sobretudo nos textos que nos falam da promessa de libertação feita por Deus e da esperança de seu povo na vinda do Messias. Para isso, é particularmente útil a leitura do Livro do Profeta Isaías, que a Igreja faz seus filhos escutarem neste tempo santo. Também é tempo de conversão interior para acolher o Menino-Deus que virá no Natal. É tempo de graça, de reconciliação, tempo de espera ansiosa e vigilante pela renovação que virá.
O Natal, tempo de uma graça incomensurável, não poderá ser bem vivido sem uma adequada preparação, sem uma vivência profunda e atenta do tempo do Advento. Por isso, despojemo-nos de todo aquilo de ruim que ficou pregado em nosso ser ao passarmos pelas estradas deste mundo durante este ano que passou e revistamo-nos de um novo sentimento, de um novo ânimo, de um novo modo de vida; revistamo-nos de Cristo (cf. Rm 13,14; Ef 4,24), vivamos aquilo que já somos: filhos de Deus e esperemos confiantes os bens que nenhum coração jamais pressentiu e que nos foram prometidos.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

I - A Amizade: o que é


Caros leitores, apresento a partir de hoje uma série de meditações a respeito da amizade. É meu desejo, de coração, que vocês também possam descobrir, através destes textos, a beleza e o grande dom que é a amizade.

Ao longo da história da humanidade, centenas de teólogos, filósofos, poetas e escritores falaram da amizade como sendo indispensável para uma vida verdadeiramente humana e feliz. Infinitas são as páginas dos incontáveis livros que louvam o encanto, a beleza e a maravilha da amizade. Para utilizar as palavras do escritor Machado de Assis, podemos definir a amizade como "o que há de grande e belo, o que há de nobre e puro"; e o poeta Mário Quintana completa: "Amizade... Mistério de graça, sem farsa, fruto do nosso bem querer".
De fato, entre todos os bens do mundo, entre todas as relações humanas, a amizade ocupa o primeiro lugar. Nada há de mais gratificante e enriquecedor do que sua posse. O que mais encanta na amizade é este mistério de amar desinteressadamente (sem segundas intenções), de amar o outro não por aquilo que ele tem, mas unicamente por aquilo que é e representa como pessoa. A amizade nos faz compreender que, para além de nossos defeitos e nossas diferenças, existe alguém que nos ama, aceitando-nos como somos. Nada há de mais próprio no ser humano do que o desejo de ser estimado, querido e amado, de se tornar importante e insubstituível para o outro.
A amizade não somente é indispensável para uma vida feliz, mas também dá força para viver com alegria, entusiasmo e confiança. Seria triste imaginar uma vida sem amizade. "O mundo é tão vazio quando pensamos apenas nas montanhas, rios e cidades; mas saber que cá e lá existe alguém que comunga conosco, com o qual também nós convivemos tacitamente, isto faz deste globo terrestre para nós um jardim habitado", escreveu certa vez Goethe, poeta alemão, falando da importância e necessidade da amizade. Já Cícero, filósofo romano, no seu celebérrimo livro Da Amizade, vai mais além, dizendo: "Os que suprimem a amizade da vida parecem-me privar o mundo de sol".
Na amizade não há egoísmo, nem ciúme, nem falsidade, nem desrespeito. Amizade é bondade, gratuidade, liberdade. A amizade é sempre verdadeira. "A amizade é a sabedoria dos homens livres", como bem afirmou Albert Camus, filósofo francês. A amizade é um dom de Deus que envolve, misteriosamente, todo o nosso ser.
Finalmente, todos os homens são capazes de construir amizades, mas poucos conseguem. Amizade pede renúncia, exige um constante comprometimento com a vida e a felicidade do amigo. Por isso, Cícero exclamou no Da Amizade: "só entre os bons pode haver amizade". Portanto, somente os melhores homens se tornam amigos uns dos outros. Toda amizade é verdadeira e guarda em si um gosto de eternidade. Ainda no Da Amizade, Cícero proclama para o mundo inteiro ouvir: "amizades são eternas". A amizade é um imperativo para a vida humana!

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Celebrar a Liturgia: cumprir o mandato do Senhor


Com a reforma conciliar do Vaticano II, a liturgia católica de rito latino voltou a ser fonte de vida espiritual para a Igreja em toda a sua plenitude. No entanto, no bojo das várias compreensões errôneas das propostas conciliares, a liturgia na sua forma celebrativa sofreu e ainda sofre deturpações aberrantes. Essas distorções se devem principalmente ao fato de que a liturgia ainda é vista tão somente como conjunto de rubricas adaptáveis e sujeitas a uma ilegítima inculturação (há uma inculturação legítima), e não como ação do próprio Deus, por Jesus, no seu Santo Espírito, sob o véu dos sinais.
Recordemos que a liturgia é o culto público da Igreja. Nesse culto, o novo Israel, a Igreja, prolonga, através dos tempos, a recordação das maravilhas que Deus realizou na história.
Mas, o que de fato celebramos nesse culto? O Verbo Eterno do Pai, ao se fazer homem, assumiu todo o ritual da Antiga Lei e o levou à plenitude. O sacrifício do templo, seu rito de expiação, no sacrifício da cruz, encontra seu pleno sentido.
No entanto, o próprio Cristo também ritualizou esse sacrifício irrepetível e único. Na última ceia, deixou-nos o mandato de fazer memória da sua oferta na cruz. Não se tratava de repetir, através dos tempos, a sua oblação no Calvário, mas tornar presente, na potência do Espírito Santo e nos gestos e nas palavras por Ele instituídas, o mistério pascal.
Assim, na liturgia, não celebramos algo criado por nós, mas cumprimos um mandato, algo que nos foi transmitido; primeiramente pelo próprio Jesus aos doze, e deles para nós. Tal missão a Igreja cumpre, como fiel esposa, todas as vezes que torna o mistério pascal acessível aos homens e mulheres de todos os tempos, nos sacramentos, principalmente na Eucaristia.
Celebrar a liturgia é adentrar no espaço de Deus, no seu ritmo. Tal acesso nos foi dado por seu filho Jesus, que ao se encarnar assumiu os gestos, as palavras e os ritos humanos. Prestar o culto litúrgico é estar como a sabedoria, diante de Deus, como o seu encanto, brincando todos os dias na sua presença (cf. Pr 8,30).
Celebrar a liturgia é obedecer à ordem do Senhor, que a confiou à sua Igreja. Não é, portanto, lícito modificar a liturgia a bel prazer de quem quer que seja. A Eucaristia e os demais sacramentos não são de determinado ministro ordenado, comunidade ou movimento. São da Igreja; e desrespeitá-los é acreditar que essa Igreja é uma realidade que pode ser reinventada por nós.

sábado, 22 de novembro de 2008

Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo


Quando o Filho do Homem voltar na sua glória e todos os anjos com ele, sentar-se-á no seu trono glorioso. (Mt 25,31) No fim dos tempos o Rei do universo virá para reinar e estender o seu domínio de mar a mar (Zc 9,10). Veio uma vez, pequenino na manjedoura de Belém, na vida simples de Nazaré, na fadiga da missão, na agonia do horto, no tormento da cruz, no silêncio do sepulcro; virá ainda uma vez, no fim da história, grandioso entre as nuvens, cheio da Vida gloriosa e irradiadora para as nações, com mão forte e braço estendido para salvar aqueles que deixaram o Reino acontecer em suas existências.
Mas entre as suas duas vindas, a de dois mil anos atrás e a do fim dos tempos, Jesus já reina neste mundo. Não, porém, de um modo claro, grandioso, pomposo; o seu Reino não é reino como os reinos deste mundo; seu Reino é Reino de verdade e vida, santidade e graça, justiça, amor e paz (cf. Prefácio da missa de Cristo Rei). O Rei deste Reino é aquele que veio não para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate de muitos (Mt 20,28). O Rei deste mundo é o Bom Pastor, não como aqueles maus pastores de Israel que deixavam as ovelhas à míngua (cf. Ez 34), mas o Verdadeiro Pastor, o Bom e Belo Pastor, aquele que dá a vida pelas ovelhas (Jo 10,11) e as faz repousar em verdes pastagens, junto às águas refrescantes (cf. Sl 22,2). Mas ele também é o Juiz justo e verdadeiro que vem para governar a terra: julgará o mundo com justiça, e os povos segundo a sua verdade (Sl 95,13); e este seu julgamento é discriminatório: separará as ovelhas dos cabritos, os justos dos injustos (cf. Ez 34,17; Mt 25,32-33.46) e o critério para isto é a caridade: aquele que socorre o pobre e o necessitado de todos os tipos, este ficará à direita do juiz e participará da glória do seu Reino (cf. Mt 25,34-36).
Sim, exulta de alegria, filha de Sião, solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém; eis que vem a ti o teu rei, justo e vitorioso. (Zc 9,9) Vem agora, no hoje deste mundo, na força do seu Santo Espírito: por isso, alegra-te, Mãe Igreja! Entregai sua vida pura e imaculada nas mãos daquele que é o Senhor e Dominador dos séculos, ele que, pelo preço do seu sangue adquiriu gentes de todas as tribos e línguas, dos povos da terra e nações, e fez de nós para Deus um povo de sacerdotes e reis, que irão reinar sobre a terra (cf. Ap 5,9-10). Sim, não nos enganemos: toda a criação, tudo o que vemos e observamos, tudo, enfim, está nas suas mãos. Portanto, ergamos ao nosso grande Deus e Salvador um hino do mais fundo dos nossos corações e o aclamemos:

Cristo Rei, sois dos séculos Príncipe,
Soberano e Senhor das nações!
Ó Juiz, só a vós é devido
Julgar mentes, julgar corações.

Multidões reverentes, no céu,
vos adoram e cantam louvores.
Nós também proclamamos que sois
Rei dos reis e Senhor dos senhores.

Rei da paz, imperai sobre as mentes,
desfazei seus desígnios perversos.
Por amor, reuni num rebanho
os errantes que andavam dispersos.

Para isso, de braços abertos,
vós pendeis do madeiro sagrado
e mostrais vosso bom coração
a sangrar, pela lança rasgado.

Para isso, no altar escondido
sob as formas de vinho e de pão,
através desse lado ferido,
para os filhos trazeis salvação.

Glória a vós, ó Senhor Jesus Cristo,
que no amor governais todo ser.
Seja a vós, com o Pai e o Espírito,
honra eterna, louvor e poder.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

As bem-aventuranças – VII


Do Livro Jesus de Nazaré, de Bento XVI


Saltemos por um instante a segunda bem-aventurança do Evangelho de S. Mateus e avancemos para a terceira, que está intimamente ligada com a primeira: Felizes os simples (mansos), porque terão a terra como herança (5,5). A tradução alemã (Einheitsübersetzung) da Sagrada Escritura traduziu aqui a palavra grega que está subjacente, praus: que não emprega nenhuma violência. É um estreitamento da palavra grega, que leva em si uma rica carga na tradição. A bem-aventurança é praticamente a citação de um salmo: Os mansos (simples) herdarão a terra (Sl 36(37),11). A expressão os mansos – simples é na Bíblia grega a tradução da palavra hebraica anawin, com que os pobres de Deus são caracterizados, dos quais falamos a respeito da primeira bem-aventurança. Assim, a primeira e a terceira bem-aventuranças transitam consideravelmente uma para a outra. A terceira elucida ainda um aspecto essencial do que se entende com a pobreza vivida a partir de Deus e para Deus.
Mas o espectro alarga-se ainda quando consideramos outros textos, nos quais a mesma expressão ocorre. Em Números, diz-se: Moisés era um homem muito humilde, mais do que nenhum homem sobre a face da terra (Nm 12,3). Quem não haveria aqui de pensar na palavra de Jesus: Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração (Mt 11,29)? Cristo é o novo, o verdadeiro Moisés (este é o pensamento contínuo do Sermão da Montanha) – n’Ele torna-se presente aquela pura bondade que é própria de quem é maior, do soberano.
Mais profundamente seremos ainda conduzidos se considerarmos outros elementos de ligação entre o Antigo e o Novo Testamento, em cujo centro se encontra outra vez a palavra praus: – manso – humilde. No profeta Zacarias encontra-se a seguinte promessa de salvação: Exulta de alegria, filha de Sião! Enche-te de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem ter contigo, justo e salvador, humilde, montado num jumento, no potrinho de uma jumenta. Ele exterminará os carros de guerra... o arco de guerra será quebrado. E ele proclamará a paz entre as nações; o seu império estender-se-á de um mar a outro mar... (Zc 9,9s). Aqui é anunciado um rei pobre, um rei que não domina por meio do poder político e militar. O seu ser íntimo é a humildade, a mansidão perante Deus e perante os homens. Este seu ser, pelo qual ele está em contraste com os grandes reis do mundo, torna-se visível no fato de ele vir montado num jumento – a cavalgadura dos pobres, que é o oposto dos carros de guerra, que ele põe em desuso. Ele é o rei da paz – e o é a partir do poder de Deus, não a partir do seu próprio poder.
Mas a isso se acrescenta mais um elemento: o seu império é universal, envolve a terra. De um mar a outro mar – a imagem do globo terrestre envolvido por água em toda a sua volta está aqui subjacente e deixa antever a extensão mundial do seu domínio. Assim, pode com razão dizer Karl Elliger que, para nós, se torna visível de um modo notavelmente claro a figura daquele que agora realmente trouxe a paz para todo o mundo, que está acima de toda a razão, na medida em que ele em obediência filial renunciou a todo o uso de violência e sofre até ser pelo Pai liberto do sofrimento, e que edifica o seu reino simplesmente através da palavra da paz... Só então compreendemos toda a amplitude do relato do Domingo de Ramos, compreendemos o que significa, quando S. Lucas (cf. 19,30) (e de um modo semelhante S. João) nos conta que Jesus manda que os discípulos lhe arranjem uma jumenta em vez do seu potro: Isso aconteceu para que assim se cumprisse o que fora dito pelos profetas: dizei à filha de Sião: eis que o teu rei vem ter contigo. Ele é manso e vem montado sobre uma jumenta (Mt 21,4s; Jo 12,15).
Infelizmente, a tradução alemã tornou irreconhecível esta relação, na medida em que para praus utiliza para cada caso outras palavras. No vasto arco destes textos – de Números, capítulo 12, passando por Zacarias, capítulo 9, até as bem-aventuranças e o relato do Domingo de Ramos –, torna-se reconhecível a visão de Jesus como rei da paz, de um mar a outro mar. Por meio da sua obediência, chama-nos para esta paz, implanta-a em nós. A palavra manso – humilde pertence, por um lado, ao vocabulário do povo de Deus, ao Israel que em Cristo envolve todo o mundo, mas é ao mesmo tempo uma palavra real, que nos revela a essência do novo Reino de Cristo. Neste sentido podemos dizer que é uma palavra tanto cristológica como eclesiológica; em todo caso, chama-nos para o seguimento daquele cuja entrada em Jerusalém montado sobre uma jumenta permite tornar visível toda a essência do seu império.

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Sobre o sentido da vida


Viktor Frankl, psiquiatra e fundador da logoterapia, na sua obra A presença Ignorada de Deus, nos diz que qualquer situação na vida faz uma exigência a nós, colocando-nos uma pergunta, à qual damos uma resposta através de algo que fazemos, como se fosse um desafio.
Essa afirmação de Frankl revela o cerne de seu pensamento: a busca de sentido. E é sobre esse tema que refletiremos nas próximas linhas.
Para Frankl, o sentido da vida, do amor, da amizade, do sofrimento e da morte, é algo concreto, consiste em uma atitude decidida diante das situações com as quais nos deparamos no cotidiano.
À primeira vista, essa concepção de sentido pode parecer simples, mas não é. O homem tem, diante de si, duas escolhas: viver como se a vida não tivesse sentido ou dizer “assim seja”, fazendo a opção por agir como se a vida tivesse um sentido infinito, para além de sua capacidade de compreensão. É aquilo que Frankl chama de optar por um “supra-sentido”.
Não será a falta de sentido a razão que nos leva a amar menos ou amar de forma neurótica? Não será a falta de sentido a causa da falta de lealdade às nossas amizades, o motivo pelo qual nos desesperamos diante da doença inevitável ou da morte daqueles a quem amamos?
Quase sempre cremos no sentido da vida – ou ao menos afirmamos isso. No entanto, na prática diária, comportamo-nos como “ateus”. Não temos muito que dizer sobre amor, dor, amizade, porque a nossa vida individual parece um amontoado de cenas de um filme que não se viu por completo, e, consequentemente, não faz o menor sentido. E isso se torna mais grave quando se trata dos cristãos. Deveríamos ser os peritos nesses assuntos, visto que a nós foi revelada a plenitude de todo o sentido: Cristo Jesus.
O homem, afinal, diz Frankl, tem a necessidade de projetar algo ou alguém para dentro do nada diante do qual se encontra. Em outras palavras: o homem sente-se chamado a agir concretamente: diante do amor, doar-se; diante da amizade, confiar e dedicar-se; diante do sofrimento, encontrar rotas compensadoras para a sua dor; e, diante da morte, compreender que ali se depara com o sentido final de sua existência, que dependerá da realização de sentido em cada situação particular nesta vida.
Optemos, portanto, em viver como se a vida tivesse um sentido. E aqui terminamos com os caminhos apontados pelo próprio Frankl: pratiquemos ações humanizantes, vivenciemos as situações e as pessoas em plenitude, e, diante de uma situação que não podemos modificar, mudemos nossa atitude diante dela, mudando a nós mesmos, amadurecendo e crescendo para além de nós. Somente assim seremos homens e mulheres da esperança.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Cantemos ao Senhor um canto novo


Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo


Cantai ao Senhor Deus um canto novo, e o seu louvor na assembléia dos fiéis (Sl 149,1).
Somos convidados a cantar um canto novo ao Senhor. O homem novo conhece o canto novo. O canto novo é uma manifestação de alegria e, se examinarmos bem, é uma expressão de amor. Quem, portanto, aprendeu a amar a vida nova, aprendeu também a cantar o canto novo. É, pois, pelo canto novo que devemos reconhecer o que é a vida nova. Tudo isso pertence ao mesmo Reino: o homem novo, o canto novo, a aliança nova.
Não há ninguém que não ame. A questão é saber o que se deve amar. Não somos, por conseguinte, convidados a não amar, mas sim a escolhermos o que havemos de amar. Mas o que podemos escolher, se antes não formos escolhidos? Porque não conseguiremos amar, se antes não formos amados. Escutai o apóstolo João: Nós amamos porque ele nos amou primeiro (cf 1Jo 4,10). Procura saber como o homem pode amar a Deus; não encontrarás resposta, a não ser esta: Deus o amou primeiro. Deu-se a si mesmo aquele que amamos, deu-nos a capacidade de amar. Como ele nos deu esta capacidade, ouvi o apóstolo Paulo que diz claramente: O amor de Deus foi derramado em nossos corações. Por quem? Por nós, talvez? Não. Então por quem? Pelo Espírito Santo que nos foi dado (Rm 5,5).
Tendo, portanto, uma tão grande certeza, amemos a Deus com o amor que vem de Deus. Escutai ainda mais claramente o mesmo São João: Deus é amor: quem permanece no amor, permanece com Deus, e Deus permanece com ele (1Jo 4,16). É bem pouco afirmar: O amor vem de Deus (1Jo 4,7). Quem de nós se atreveria a dizer: Deus é amor? Disse-o quem sabia o que possuía.
Deus se oferece a nós pelo caminho mais curto. Clama para cada um de nós: Amai-me e me possuireis; porque não podeis amar-me se não me possuirdes.
Ó irmãos, ó filhos, ó novos rebentos da Igreja católica, ó geração santa e celestial, que renascestes em Cristo para uma vida nova! Ouvi-me, ou melhor, ouvi através do meu convite: Cantai ao Senhor Deus um canto novo. Já estou cantando, respondes. Tu cantas, cantas bem, estou escutando. Mas Oxalá a tua vida não dê testemunho contra as tuas palavras.
Cantai com a voz, cantai com o coração, cantai com os lábios, cantai com a vida: Cantai ao Senhor Deus um canto novo. Queres saber o que cantar a respeito daquele a quem amas? Sem dúvida, é acerca daquele a quem amas que desejas cantar. Queres saber então que louvores irás cantar? Já o ouviste: Cantai ao Senhor Deus um canto novo. Que louvores? Seu louvor na assembléia dos fiéis. O louvor de quem canta é o próprio cantor.
Quereis cantar louvores a Deus? Sede vós mesmos o canto que ides cantar. Vós sereis o seu maior louvor, se viverdes santamente.

domingo, 16 de novembro de 2008

As bem-aventuranças – VI


Do Livro Jesus de Nazaré, de Bento XVI


Com tudo isto consideramos até agora apenas a primeira metade da primeira bem-aventurança: “Felizes os pobres em espírito”. Em S. Mateus e em S. Lucas, a promessa correspondente diz assim: deles (vosso) é o Reino de Deus (o Reino dos céus) (Mt 5,3; Lc 6,20). “Reino de Deus” é a categoria fundamental da mensagem de Jesus; ela aparece aqui nas bem-aventuranças; para a correta compreensão deste conceito muito debatido, é importante esta relação. Teremos de nos recordar disto quando nos aproximarmos mais do significado da expressão “Reino de Deus”.
Mas talvez seja bom, antes de prosseguirmos na meditação sobre o texto, voltarmos os olhos para a figura da história da fé na qual esta bem-aventurança foi mais intensamente traduzida na existência humana: S. Francisco de Assis. Os santos são os verdadeiros intérpretes da Sagrada Escritura. O que uma palavra significa torna-se principalmente compreensível naqueles homens que foram totalmente tomados por ela e a viveram. A interpretação da Escritura não pode ser uma simples questão acadêmica e não pode ser convertida apenas para o domínio histórico. A Escritura carrega em si, do começo ao fim, um potencial de futuro que apenas se abre no viver e no sofrer até o fim as suas palavras. S. Francisco de Assis agarrou na promessa desta palavra em toda a sua extrema radicalidade. Até o ponto de se despojar das suas vestes e se deixar revestir pelo bispo como o representante da bondade paterna de Deus, que veste os lírios do campo com mais beleza do que a de Salomão (Mt 6,28). Esta extrema humildade foi para ele antes de mais nada liberdade de serviço, liberdade para a missão; em última análise, confiança em Deus, que cuida não apenas das flores do campo, mas também dos seus filhos e dos homens; corretivo para a Igreja, a qual, com o sistema feudal, tinha perdido a liberdade e a dinâmica da itinerância missionária; íntima abertura para Cristo, com o qual na ferida dos estigmas de tal modo se configura que já não é ele quem realmente vive, mas, como renascido, existe totalmente a partir de Cristo e em Cristo. Ele não queria fundar nenhuma Ordem, mas apenas congregar de novo o povo de Deus para escutar a Palavra, que não se furta com comentários eruditos à seriedade do chamado. No entanto, com a criação da Terceira Ordem, aceita a distinção entre a missão radical e a necessária vida no mundo. Terceira Ordem significa precisamente aceitar com humildade a missão da vocação secular e as suas exigências, no próprio lugar em que cada qual se encontra, e aí viver em comunhão com Cristo, na qual Ele nos precede. “Ter como se não tivesse” (1Cor 7,29ss), aprender esta tensão interior como talvez a mais difícil das exigências e poder realmente revivê-la sempre e de novo entre os homens, levando com eles o peso do radical seguimento: este é o sentido da Terceira Ordem, e assim se torna conhecido o que a bem-aventurança pode significar para todos. Sobretudo em S. Francisco torna-se também claro o que quer dizer “Reino de Deus”. S. Francisco permaneceu totalmente na Igreja, e ao mesmo tempo em tais figuras a Igreja cresce no seu objetivo final e todavia já presente: o Reino de Deus está próximo...

sábado, 15 de novembro de 2008

Viver como filhos da luz responsáveis – Reflexão das leituras do 33º Domingo do Tempo Comum


Mais um ano litúrgico está prestes a encerrar - o ano da Igreja não coincide com o ano civil. E, à medida que o término se aproxima, os textos litúrgicos propõem voltarmos o olhar para o nosso destino final: a participação na alegria do Senhor (cf. Mt 25,21b). Um dia Senhor virá ao nosso encontro. Nós caminhamos para Ele!
O 33º Domingo do Tempo Comum - penúltimo do ano da Igreja - celebrado hoje nos recorda essa verdade, ao mesmo tempo em que nos adverte para o critério de participação na alegria da vida divina: a responsabilidade dos filhos da luz.
S. Paulo, na 2ª leitura, chama-nos à atenção, afirmando não nos importar saber o dia e a hora em que o Senhor virá (cf. 1Ts 5,1). O importante é viver vigilante e sóbrio, longe das trevas (cf. 1Ts 5,6), na responsabilidade da vida nova recebida no batismo.
Viktor Frankl, fundador da logoterapia, postulou-nos que o ser-responsável é elemento estruturante do psiquismo humano, é uma realidade ontológica. O homem integrado não pode ser o homem vitimizado por suas paixões e impulsos, mas aquele que assume sua condição de ser sob a égide da própria responsabilidade. O homem não pode fugir da responsabilidade se sua existência; fazê-lo é alienação de si mesmo.
Para nós cristãos a condição de ser responsável é iluminada pelo Espírito de Cristo. Ele nos coloca na luz de Deus, na qual devemos permanecer. Afinal, retomando S. Paulo, viver nas trevas é viver alijado da própria condição de ser homem, uma vez que não assumimos a responsabilidade por nossa própria vida nova.
O Evangelho de hoje exemplifica bem a realidade da responsabilidade de viver como filhos da luz. Todos nós, pelo batismo, fomos chamados das trevas à luz admirável da vida divina. (cf. 1Pd 2,9). Todos nós, desde então, recebemos o dinamismo do Espírito de Cristo em nós. Ele e somente Ele pode nos auxiliar a sermos responsáveis por essa vida e fazê-la multiplicar em dons.
Por isso, a quem muito foi dócil à ação de Deus, muito receberá no dia do encontro com o Senhor (cf. Mt 25,29a). E a quem, diante o medo, preferiu a indiferença, mesmo reconhecendo que Deus pode tirar tudo do nada (cf. Mt 25,24s), esse até o gozo da vida divina, cuja as primícias recebera no batismo, perderá (cf. Mt 25, 29b).
A 1ª leitura, extraída do livro dos Provérbios, acrescenta à nossa reflexão o fato de que, diante da virtude de quem é fiel e responsável diante de Deus, o encanto e a beleza são fugazes e enganadores (cf. Pr 31,30). A dignidade e o valor dos filhos da luz responsáveis superam o encanto e a beleza das mais profundas e admiráveis realidades transitórias.
Ser cristão é viver na certeza de que o Senhor é a nossa meta final. Um dia viveremos para sempre com Ele. No entanto, a certeza da vida divina não nos aliena. Pelo contrário, faz-nos assumir a vida presente com responsabilidade, pois esta é condição, passaporte para a eternidade. Felizes são aqueles que temem o Senhor e trilham seus caminhos! Será abençoado cada dia da vida (cf. Sl 127, 1.5); e, ao término do caminho da vida, receberá o prêmio da participação na alegria do Senhor. Amém.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

O sacerdócio: o céu na terra


Das Homilias de S. João Crisóstomo, bispo e doutor da Igreja


O sacerdócio se exerce sobre a terra, mas seu lugar está entre as coisas do céu. E com razão. Não foi homem, anjo, arcanjo, ou qualquer outra potência criada, foi o próprio divino Paráclito que assim dispôs: que seres ainda permanecendo na carne exercessem esse ministério de anjos. Seria preciso que o sacerdote fosse tão puro como se estivesse no céu, colocado entre os anjos. Recorde-se a majestade das cerimônias no sacerdócio hebraico, o temor reverencial, o santo terror que inspirava todo aquele conjunto de campainhas de ouro, romãs de púrpura, pedras preciosas a brilharem sobre o peito e espáduas do sumo sacerdote, sua mitra, sua diadema, a longa túnica, a lâmina de ouro enfim o Santo dos santos e o silêncio profundo que lá havia. Todas essas exterioridades eram poucas em comparação aos mistérios da lei da graça, e o apóstolo disse justamente que o brilho do primeiro sacerdócio nada era ao da glória supereminente do segundo (2Cor 3, 10).
Realmente, quando vês o Senhor imolado sobre o altar, e o sacerdote a inclinar-se sobre a vítima, em profunda oração, e os circunstantes com os lábios enrubescidos pelo precioso sangue, pensas ainda estar ainda entre os homens e sobre a terra? Não te parece antes teres sido transportados subitamente pelo céu e ali, banido os pensamentos carnais, contemplares com a alma pura as coisas celestes? Ó prodígio! Ó bondade de Deus! Aquele que se assenta junto ao Pai, nesse momento se deixa segurar pelas mãos dos circunstantes e se doa aos que desejam recebê-lo e abraçá-lo. Eis o que percebem os olhos da fé! Tais grandezas acaso te parecem dignas de desprezo ou aptas para revoltar nosso orgulho?
Será preciso apelar para comparação com outro prodígio para se demonstrar a excelência de nossos santos mistérios? Imagina o profeta Elias, cercado de imensa multidão, no momento em que estendia vítimas sobre as pedras do altar. Os assistentes ali estão imóveis e no maior silêncio. Só o profeta fala, e para orar. Súbito desce fogo de céu e abrasa a vítima. Que cena admirável, própria para extasiar a alma!
Volta os olhos agora para os nossos altares e verás um prodígio ainda maior. Lá também o sacerdote está de pé. Invocando sobre a terra, não o fogo extinguível, mas o Espírito Santo. Se ficas algum tempo em oração, não é para pedir que uma chama desça do céu e devore a vítima, mas para que a graça, descendo sobre a vítima, abrase através dela almas ali presentes, tornando-as mais puras e mais refulgentes que a prata ao fulgor do sol. Quem, portanto, sem ser insensato ou pobre de espírito, desprezará tais mistérios terríveis?
E o ardor desse fogo espiritual – não o ignoras – jamais haveria alma humana capaz de o suportar: ela seria aniquilada se a graça divina não a viesse socorrer.
Jesus Cristo se humilha nas mãos dos sacerdotes; as mãos do sacerdote são como o útero da Virgem Maria que gera para o mundo o Filho de Deus.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Deus é Devagar

Do Livro Deus é Devagar,
de Hilário Dick.
Deus entra devagar na vida da gente. Não que Deus seja devagar. Ele é eterno e vive em outra geografia. Mas porque nós somos devagar. Nós amamos devagar, nós crescemos devagar, nós aceitamos a vida devagar, nós aceitamos o outro devagar. Devagar porque vemos e, contudo, não vemos; acreditamos e, contudo, não acreditamos. DEUS NÃO FAZ BARULHO; Ele pisa devagar porque nos respeita além do nosso horizonte. Mais do que ninguém, Ele não nos força. Ele sabe o que é a nossa liberdade: mais do que ninguém, porque só ELE É AMOR.
[...]
Quanto mais perto se está do amor, da alegria, da paz, da felicidade, de tudo aquilo pelo qual o homem sonha da manhã à noite, quanto mais perto se está de tudo isso, invade-nos um silêncio estranho. É o silêncio do viver, o silêncio do fazer, o silêncio de ver tudo. Quanto mais o amor é amor, mais calado fica.
O homem tem medo do silêncio porque está, provavelmente, longe dele mesmo. A própria oração, quando é mais oração, fica mais calada. O homem aprende a se comunicar com olhares, com desejos, com fantasias... No silêncio e na bondade que quer brotar dele.
Faltam hinos ao silêncio? Ou será que o homem está tão mergulhado na balbúrdia que não é capaz de ouvir os hinos que as almas silenciosas entoam?
O silêncio que dói, não é silêncio. O silêncio não é solidão: é comunicação. Só quem sabe da fonte do silêncio é capaz de ficar quieto. O silêncio verdadeiro sempre está dentro de outro silêncio...

terça-feira, 11 de novembro de 2008

Nós somos cidadãos do céu


O celibato sacerdotal continua sendo contestado, incompreendido e, muitas vezes, ridicularizado, principalmente no contexto pansexual em que vivemos. No entanto, a reflexão que se segue não é uma apologia ao celibato diante de um mundo hostil, mas uma meditação da riqueza desse dom dado por Deus à sua Igreja.
Na nossa Igreja latina o celibato sacerdotal é uma norma. Aquele que possui vocação ao ministério presbiteral mas está cônscio de não ter recebido o dom de renunciar à vida conjugal não pode ser padre. Essa compreensão do celibato como um cânon causou e ainda causa prejuízos à vivência dos já ordenados - e candidatos ao sacerdócio - e ao despertar vocacional dos jovens cristãos de hoje.
O celibato não é uma norma fria, canônica tão somente. Não se trata de simplesmente não casar. O celibato é um dom que manifesta ao mundo uma das realidades da vida futura.
Nós, porém, somos cidadãos do céu, nos diz São Paulo em Fl 3,20. Eis a melhor definição do que é ser padre celibatário: habitante do céu. E como serão as relações dos habitantes do céu? O próprio Jesus nos responde: Na ressurreição, nem eles se casam e nem elas se dão em casamento, mas são todos como os anjos do céu (Mt 22, 30).
Pode-se objetar: mas Jesus fala da ressurreição e não do tempo presente. A refutação é legítima. Mas é exatamente aqui que está a riqueza do celibato: entre o “já e o ainda não” do tempo da Igreja, ele antecipa para o “já” aquilo que seremos no futuro. O padre deve apresentar já agora para o mundo a face do homem novo, ressuscitado, liberto dos laços humanos.
O celibato torna concreto aquele desejo de todo coração verdadeiramente humano: amar de um jeito novo, amar com o coração de Cristo e no compasso do seu sentir. Jesus, o Habitante do céu, trouxe para esta terra de exílio a experiência de ter um coração dilacerado de amor, e ao mesmo tempo livre de um amor em particular, a dois.
O padre renuncia a ser marido e pai biológico. No entanto, essa renúncia permite-o ser não somente esposo e pai, mas irmão, filho, à medida que o seu coração vai se entranhando de amor e misericórdia pelos que lhes são confiados; ao passo que ele vai sofrendo com os que sofrem e se alegrando com os que se alegram.
O cristão deve desejar o céu. Se não o faz, é um meio-cristão. Muito mais o sacerdote; ele não somente deseja o céu, como já vive aqui uma das realidades eternas. Evidentemente, como o Cristo ressuscitado traz as marcas da sua imolação, o celibatário manifesta o homem novo com as marcas das tentações e desafios próprios de seu tempo.
Ser celibatário é o dom de um jeito novo de amar. Dom que é um dos frutos do Espírito em nós: a castidade. Essa graça deve ser tão marcante nos padres que, ao olhá-los, as pessoas aspirem às realidades eternas, desejem serem também habitantes do céu.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Sobre a transitoriedade da beleza e dos prazeres

Cristo: Fonte da beleza e do Prazer


A pergunta que cala no coração daquele que pensa em se converter ou que está começando a se encantar por Deus e mesmo nos corações dos crentes que já servem a Ele é invariavelmente esta: vale a pena trocar as belezas e prazeres deste mundo por Deus? Vale a pena renunciar aos prazeres da carne e aos encantos dos olhos sempre que estes se manifestam contra a vontade divina? Façamos um pequeno esboço de solução para este questionamento existencial.
A beleza que nos encanta os olhos e deleita o nosso coração, na verdade, não é efêmera? Ela não passa com facilidade e rapidez? Sim, a beleza é igual à erva verde pelos campos: de manhã ela floresce vicejante, e é nesse amanhecer que nos encantamos com ela, mas à tarde é cortada e logo seca (Sl 89,6). A beleza em si não é ilícita, mas sempre efêmera; por que não sabemos aproveitá-la da maneira correta, deleitar-nos nela sem peso na consciência? É porque não percebemos que esta beleza não passa apenas de uma pequena fagulha de uma Beleza muito maior e é melhor não tomar posse da beleza transitória e sim da Beleza permanente. Assim, passando esta vida em meio às belezas e alegrando-nos nelas, mas não deleitando-nos demais, para não perdermos a meta da Beleza maior que está no termo do caminho, assim aproveitaremos digna e licitamente os pequenos encantos da vida. Não está aqui a sabedoria? Sim, na verdade a sabedoria está em dar o valor devido às coisas, nem mais nem menos. A correta hierarquia dos valores é a chave que abre o castelo divino da sabedoria.
O mesmo vale para os prazeres. De que adianta aprazer-se desmesuradamente nas coisas sensíveis e mesmo intelectivas se estas coisas não constituem um fim em si mesmas e no fim das contas continua o vazio que tentamos preencher loucamente com os prazeres? Sim, os prazeres, de per si não são nem lícitos nem ilícitos; é o uso e o valor que deles fazemos e a eles damos que os transformará em bons ou maus. O melhor, portanto, é buscar o Prazer verdadeiro, do qual os prazeres deste mundo não são senão a entrada em comparação com o prato principal. Cumpre que não nos saciemos já na entrada e não possamos digerir o melhor que está por vir.
É verdade que dar os devidos valores à beleza e aos prazeres não é fácil; os deleites imediatos não são deliciosos? E não é muito mais fácil falar em castidade, pureza, obediência, perdão, enfim, não é muito mais fácil falar em santidade do que vivê-la? Sem dúvida. Mas é preciso um esforço para não sucumbir à tentação. Pensemos naqueles grandes e verdadeiros heróis que souberam vencer a si próprios e chegaram a uma humanidade mais plena já neste mundo porque conformada com Aquele que é o Homem perfeito: a multidão de testemunhas, que chamamos santos, do céu torcem por nós e nos ajudam com suas preces e exemplo: sim, é possível. Sobretudo, fixemos o olhar n’Aquele que é a Beleza verdadeira e a fonte de todo o prazer pleno. No tempo devido comeremos os deliciosos frutos, contanto que não os colhamos antes do tempo.

Festa da Dedicação da Basílica de S. João de Latrão


Hoje, a Liturgia da Igreja comemora a Festa da Dedicação da Basílica do Latrão, que foi a primeira igreja construída em Roma e consagrada no dia 9 de novembro do ano de 324. Foi dedicada ao Santíssimo Redentor, ao qual mais tarde foram associados São João Batista e São João Evangelista como patronos. Por esse motivo, chama-se também de Basílica de São João do Latrão. A finalidade dessa festa é honrar a basílica que é chamada de mãe e cabeça de todas as igrejas da Cidade e do Mundo, como sinal de amor e unidade para com a Cátedra de Pedro que, como escreveu Santo Inácio de Antioquia no século II, "preside a assembléia universal da caridade". Como este ano o dia 9 de novembro coincidiu com o domingo, essa festa, por ser uma Festa do Senhor, substitui o XXXII Domingo do Tempo Comum, na Liturgia da Igreja.
Cristo ressuscitado não somente está presente em sua Igreja, mas também é dela Fundamento e Cabeça. As igrejas construídas de pedras e tijolos são um sinal vivo dessa presença de Cristo. É Ele quem reúne a comunidade, celebra, fala, dá-se como alimento, abençoa e permanece conosco. De fato, são nos templos construídos por mãos humanas que nós nos reunimos, diariamente ou no Dia do Senhor, para participarmos da Santa Missa, para sermos cristãos – e ninguém é cristão sozinho nem tampouco celebra sua fé isoladamente – e vivenciarmos a nossa fé. Esses templos são lugares privilegiados de oração. São a Casa de Deus. São a nossa casa. Nesses lugares, ou seja, nas nossas igrejas, dispomos de tudo aquilo que é necessário para um verdadeiro encontro com Deus.
A Liturgia da Missa de hoje, no entanto, dá maior atenção não tanto aos templos construídos por mãos humanas, mas aos membros da Comunidade que, individualmente, são os templos vivos de Deus, são a construção de Deus. "Nós, porém, é que temos de ser o verdadeiro templo vivo de Deus", dizia São Cesário de Arles, bispo do século VI. Já no século V, Santo Agostinho afirmava: "a casa de Deus somos nós". Essa construção é alicerçada em Jesus Cristo, único e verdadeiro fundamento da nossa existência. "Pois nele vivemos, nos movemos e existimos" (At 17,28). É Ele quem nos acompanha pelas estradas da vida, dando sentido ao nosso dia-a-dia. Não temos outro alicerce. Como templos de Deus que somos, precisamos cuidar bem de todo nosso ser, evitar as várias ocasiões de pecado e sentir vergonha dos pecados que cometemos, para não ferir a dignidade de morada do Espírito Santo que somos. É necessário, para tanto, seguir a recomendação de São Pedro: "Do mesmo modo, também vós, como pedras vivas, prestai-vos à construção de um edifício espiritual, para um sacerdócio santo, a fim de oferecerdes sacrifícios espirituais a Deus por Jesus Cristo" (1Pd 2,5). E São Paulo arremata: "Portanto, já não sois estrangeiros e adventícios, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus. Estais edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, do qual é Cristo Jesus a pedra angular. Nele bem articulado, todo o edifício se ergue como santuário santo, no Senhor, e vós, também, nele sois co-edificados para serdes habitação de Deus, no Espírito" (Ef 2, 19-22).

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

As bem-aventuranças – V

Santo Antão
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Do Livro Jesus de Nazaré, de Bento XVI

Por tudo isso, também não se dá nenhuma oposição entre S. Mateus, que fala dos pobres segundo o espírito, e S. Lucas, segundo o qual o Senhor se dirige simplesmente aos “pobres”. Foi dito que S. Mateus teria espiritualizado o conceito de pobreza que segundo S. Lucas seria originariamente entendido de um modo material e real, e assim tê-lo-ia despojado da sua radicalidade. Quem lê o Evangelho de S. Lucas sabe perfeitamente que precisamente este evangelista nos apresenta os “pobres em espírito”, que eram por assim dizer os grupos sociológicos nos quais o caminho terreno de Jesus e da sua mensagem podia tomar o seu início. E é inversamente claro que S. Mateus permanece totalmente na tradição da piedade dos salmos e, assim, na visão do verdadeiro Israel, que nela encontrou expressão.
A pobreza de que aqui se trata não é um fenômeno simplesmente material. A simples pobreza material não redime, ainda que certamente os preteridos deste mundo possam contar, de um modo muito especial, com a bondade de Deus. Mas o coração daqueles que nada possuem pode estar endurecido, envenenado, ser mau – interiormente cheio de cobiça pela posse das coisas, esquecendo-se de Deus e cobiçando as propriedades externas.
Por outro lado, a pobreza de que lá se fala também não é uma simples atitude espiritual. É evidente que a atitude radical que nos foi e nos é apresentada por tantos verdadeiros cristãos, desde o pai do monaquismo Sto. Antão até S. Francisco de Assis e até os exemplarmente pobres do nosso século, não é obrigatória para todos. Mas a Igreja precisa sempre, para estar em comunhão com os pobres de Jesus, dos grandes renunciadores; ela precisa das comunidades que os seguem, que vivem na pobreza e na simplicidade e que assim nos mostram a verdade das bem-aventuranças, para sacudir a todos para que estejam despertos, para compreenderem a propriedade apenas como serviço, para contraporem à cultura do ter uma cultura da liberdade interior e assim criarem os pressupostos para a justiça social.
O Sermão da Montanha com tal não é nenhum programa social, isto é verdade. No entanto, somente onde estiver viva no pensar e no agir a grande orientação que ele nos dá, somente aí onde a força da renúncia e da responsabilidade para com o próximo e para com tudo vier da fé, somente aí pode crescer a justiça social. E a Igreja como um todo deve manter-se consciente de que deve permanecer reconhecível como a comunidade dos pobres de Deus. Como o Antigo Testamento se abriu a partir dos pobres de Deus para a renovação da nova aliança, assim também toda a renovação da Igreja deve partir daqueles nos quais vive a mesma decisiva humildade e a mesma bondade disponível para o serviço.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

A Natureza como Criação de Deus: um Ato de Fé em um Mundo Ameaçado


O chamado homem moderno tornou a natureza sem sentido. De preservada e apreciada, ela passou a ser explorada e utilizada para fins lucrativos. Diante disso, a Teologia da Criação procura dar um novo significado à relação homem-natureza.
Na situação atual, em que homem e natureza são constantemente ameaçados pelo fator econômico, esta atitude de revalorização da natureza como Criação de Deus, e, por isso, sagrada e digna, é um ato de fé em um Mundo descrente e desprovido de valores morais e religiosos. Isso constitui, conseqüentemente, um desafio para o Cristianismo, que é a religião do amor, do compromisso com o próximo e com o Mundo.
Perante essa crise da relação homem-natureza, a Teologia da Criação assume, entretanto, uma postura esperançosa: o homem, que é um ser para Deus (Cf. Catecismo da Igreja Católica, n. 27), é também capaz de modificar sua conduta e o seu agir. De fato, há uma forte consciência de que, com relação à natureza, o homem pode redirecionar a sua atividade, orientando-a pela fé. A Teologia da Criação dá à natureza o seu verdadeiro significado: o de Criação de Deus. Por isso, deve ser cuidada pelas mãos humanas, segundo a recomendação do Livro do Gênesis (Cf. Gn 1,28). Essa natureza é repleta de dignidade porque traz consigo as marcas profundas de Deus, seu Criador, que a fez surgir do “nada” (Cf. Gn 1,1).
Para a resolução de tão grave crise, portanto, a Teologia da Criação precisa do auxílio da Filosofia (não somente da Cosmologia, mas também da Ética, da Moral, da Metafísica etc.) para encontrar um caminho de equilíbrio entre homem e natureza. É um ato de fé, de esperança e de amor, em que a própria Teologia também é convidada a repensar e reavaliar sua posição em relação à natureza e ao Mundo. Finalmente, a Teologia da Criação é um ato de fé em um Mundo totalmente ameaçado pelo consumismo, capitalismo e materialismo.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

O artista vive em sua obra-prima


O sermão que se segue é de autoria de Dom Bernardo Bonowitz, monge trapista. Observem que, de forma poética, o autor apresenta aquilo que é central na fé cristã: somos chamados a sermos amigos de Deus no seu Santo Espírito! É isso a salvação: viver na amizade divina. O texto integral, juntamente com outros sermões, encontra-se no livro “A Alegria que vem da trapa”, da editora Edições Lumen Christi.

Qual é a obra prima de Deus? Paremos uns segundos, fechemos os olhos e imaginemos. Qual é a sua resposta?
Um homem bom, eis minha resposta.
A meu ver, esta resposta se manifesta em toda a Bíblia, desde as primeiras páginas do Gênesis. Lá contemplamos o Senhor Deus criando, e ao mesmo tempo ensaiando. Em primeiro lugar, faz coisas simples e grandes, com formas fáceis de desenhar: água, céu, sol, lua – as mesmas coisas que os meninos escolhem desenhar na creche.
Em seguida, passa às coisas que exigem um pouco mais de concentração e habilidade: árvores, peixes, cavalos. Finalmente, depois de muita prática, e agora com dedos de artista consagrado, ele faz o homem.
E depois? Depois, Deus cochila um pouco, porque realmente fazer um homem é trabalho delicado e cansativo e o término do projeto merece um feriado.
Ora, uma obra prima é uma obra na qual o artista coloca a si mesmo, mas um “si mesmo” traduzido em termos de arte...
Assim agiu Deus no dia em que criou o homem. Com efeito, segundo os grandes teólogos, o próprio corpo humano é uma revelação da beleza e da sublimidade divina...
Mas, minha resposta é que a obra prima de Deus é o homem bom, e até agora tenho falado somente do homem. Então, como prosseguir do “homem feito” para o “homem feito bom”?
Depois do primeiro sábado do mundo, quando Deus despertou do seu sono, dedicou-se a realizar este movimento, passando do “homem feito”, para o “homem feito bom”. E, em sua sabedoria, decidiu “bonificar” o homem da maneira mais linda possível: pela amizade. Convidaria o homem a desfrutar da amizade divina com cada uma das pessoas da Trindade...
Sabemos que, nos séculos do Antigo Testamento, Deus e o homem andavam juntos como pai e filho. Naquela época, Deus ia educando o homem, instruindo-o na disciplina moral, na reverência para com o próprio Deus, na fraternidade para com o próximo...
Assim o homem começou a tornar-se bom! Chegou o tempo da segunda amizade, uma intimidade maior: Deus moraria como homem com o homem. Isto não foi sofrimento algum para Deus.
Desde o início, sempre tinha amado o homem. E, instruído pela lei e pelos profetas, o homem ia se tornando mais e mais amável. Agora, Deus e homem andavam juntos como mestre e discípulo, como irmão mais velho e irmão mais novo.
Nos caminhos de Judéia e Galiléia, Jesus continuava o ensinamento do Pai (...). O homem que recebia a aprendizagem de Cristo foi ficando tão bom que o terceiro amigo, o Espírito Santo não via a hora de iniciar a amizade.
Jesus apenas partira e o Espírito precipitou-se do céu (...), não só para acompanhar o homem, mas para habitar nele. Esta era a essência da terceira amizade: Deus morando no homem, como a alma de sua alma, como hóspede, dono, esposo, luz...
Na amizade com o Espírito, amizade que continua até hoje, o homem tornou-se, e continua ainda a tornar-se divinamente bom. Sem parar, o Espírito nele produz seus frutos: caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, fidelidade...
Sua presença infinitamente dinâmica aperfeiçoa, ilumina e glorifica a obra. A intimidade vai tão longe que o Espírito e o homem se encontram como xarás: Santo Espírito... Sant’Agostinho, Sant’Antão, Sant’Ambrósio. Sim, todos os amigos do Espírito têm o próprio nome dele: Santo.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

XI - A Amizade na Vida Comunitária


É um grande desafio viver a amizade na vida comunitária. O grande número de pessoas, os diferentes gostos, maneiras de pensar, de se comportar e o constante clima de desconfiança que há nas casas de formação religiosa são obstáculos que a pessoa deve enfrentar para construir os seus relacionamentos amistosos.
Muitos caem no erro de dizer que são amigos de todos, que vivem bem com todos, e não enfrentam dificuldades em seus relacionamentos interpessoais. Outros dizem: “A comunidade é meu melhor amigo”, “Jesus é meu único amigo”. São frases perigosas, que mostram o quanto se está distante de compreender o verdadeiro sentido da amizade.
É impossível ser amigo de todas as pessoas de uma mesma comunidade. Mas é obrigação cumprir o mandamento do Senhor: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei" (Jo 15,12). Cada um é chamado a viver a fraternidade. Na amizade, no entanto, não se é forçado a ser amigo de todos. Amizade não é fraternidade. Amizade é um amor que se escolhe, com liberdade e identificação. Amizade é, antes de tudo, um relacionamento que se é vivido na intimidade. Portanto, como diz o sacerdote jesuíta Carlos G. Vallés: "O grupo nunca pode substituir a pessoa".
Na vida comunitária existem os extremos quando se fala de amizade: há aqueles que são amigos de todos e aqueles que não têm amigos. Para os últimos, há defeito em tudo: na casa, na comida, nas pessoas, nas aulas, na liturgia e em outras coisas. São pessoas azedas, que vivem espalhando infelicidade na comunidade e na vida dos outros. Vivem angustiadas e insatisfeitas. Com muita razão, sentencia Santo Agostinho: "Sem amigo, nada é agradável". De fato, nada é agradável ao homem que não tem amigo.
A amizade não é uma bobagem, como pensam os insensatos e recalcados. A amizade é o sentimento dos grandes corações, dos homens nobres, dos homens que sabem amar verdadeiramente. 'A amizade é um amor que nunca morre", como rezou tão bonito o poeta Mário Quintana. Por isso, somente os homens virtuosos são capazes de vivê-la.
Carlos G. Vallés falou da importância dos amigos, com estas lindas palavras: "O melhor de meu ser se manifesta na amizade; minha alegria, meu humor, minha ternura, meu lado ridículo, meu interesse pelos outros e minha coragem de ser eu mesmo, tudo isso floresce de maneira espontânea e irreprimível quando me encontro na presença de um amigo a quem amo". É o amigo como um “espelho”...
Um amigo é uma riqueza. Sem amizade, a vida do homem seria pouca coisa ou quase nada. A amizade é, realmente, o maior bem da vida. É indispensável para uma vida boa e reta. Não obstante todas as imperfeições do homem, todas as decepções, vale a pena acreditar na amizade. Foi pelos seus amigos que Jesus entregou a sua vida, amando-os até o fim (cf. Jo 15,13).

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

As bem-aventuranças - IV


Do Livro Jesus de Nazaré, de Bento XVI


Consideremos agora mais de perto cada um dos membros da série das bem-aventuranças. Encontramos logo em primeiro lugar a palavra extremamente enigmática acerca dos “pobres em espírito”. Esta palavra aparece nos documentos de Qumran, nos quais está a autocaracterização daquela comunidade. Os seus membros também se autodenominam “os pobres da graça”, “os pobres da tua redenção” ou simplesmente “os pobres”. A comunidade de Qumran exprime com esta autocaracterização a sua consciência de ser o verdadeiro Israel; ela se agarra assim na realidade a tradições que estão profundamente enraizadas na fé de Israel. No tempo da dominação da Judéia pela Babilônia, 90% dos judeus deviam ser contados entre os pobres; por causa da política dos impostos seguida pelos persas, depois do exílio ocorreu de novo uma dramática situação de pobreza. A antiga visão segundo a qual tudo corre bem para o justo, sendo a pobreza então conseqüência de uma má vida (a relação de causalidade entre ação e condição), deixou de se manter. Agora Israel se reconhece precisamente na sua pobreza como próximo de Deus, reconhece que justamente os pobres na sua humildade estão próximos do coração de Deus em oposição à soberba dos ricos, que apenas confiam em si mesmos.
Em muitos salmos exprime-se a piedade dos pobres, que assim cresceu; eles se reconhecem como o verdadeiro Israel. Na piedade destes salmos, na profunda orientação para a bondade de Deus, na humana bondade e humildade, que assim se modela, na procura esperançosa do amor redentor de Deus desenvolveu-se aquela abertura dos corações que abriu a porta para Cristo. Maria e José, Simeão e Ana, Zacarias e Isabel, os pastores de Belém, os doze chamados pelo Senhor para o mais íntimo discipulado: todos pertencem a estes círculos que se distinguem dos fariseus e dos saduceus, mas também, apesar de muita proximidade espiritual, de Qumran. São estes nos quais começa o Novo Testamento, que se sabe totalmente em união com a mais pura e mais madura fé de Israel.
Aqui, em surdina, amadureceu também aquela atitude perante Deus que S. Paulo desenvolveu na sua Teologia da justificação: são homens que não brilham com as suas capacidades. Não se apresentam diante de Deus como uma espécie de parceiros de negócios em pé de igualdade, que elevam os seus atos à pretensão de uma recompensa correspondente. São homens que se sabem também interiormente pobres, homens que amam, que simplesmente querem deixar-se oferecer por Deus e precisamente assim viver em interior concordância com o ser e a palavra de Deus. A palavra de Sta. Teresa de Lisieux – ela estaria perante Deus de mãos vazias e mantê-las-ia abertas para Ele – descreve o espírito destes pobres de Deus: eles vêm com mãos vazias, não com mãos que agarram e seguram, mas com mãos que se abrem e se oferecem e assim estão prontas para os dons que Deus oferece.

sábado, 1 de novembro de 2008

Comemoração dos Fiéis Defuntos


Hoje, a Santa Igreja Católica, movida pela vida inspirada no Sopro permanente de Deus, o Espírito Santo, numa ação justa e nobre com esperança na Ressurreição, oferece um sacrifício no coração de seu altar arrependido, por todos os fiéis defuntos, a fim de que fiquem livres de seus pecados e, assim, ressuscitem em Cristo.
Irmãos, se se prega que Cristo ressuscitou do mortos, como podem alguns dizerem entre vós que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição, então Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou a nossa pregação e nossa fé são vãs. Mas, na realidade Cristo ressuscitou (1Cor 15, 12-14.20). Apesar da afirmativa cristã da ressurreição, a pessoa, diante do mistério da morte como fim de sua existência terrestre, sofre por medo dela e pela separação de seus entes amados. Diante disso, vem em seu auxilio o Deus de toda a consolação. Ele nos consola em todas as nossas aflições, para que, com a Consolação que nós mesmos recebemos de Deus, possamos consolar os que se acham em toda e qualquer aflição. (2 Cor 1, 3-4). Assim, na fé no Deus consolador, surge a esperança como Dom de Deus que consola e faz brotar a vida. Afinal, spe salvi facti sumus - é na esperança que fomos salvos. (Bento XVI. Spe Salvi, 1).
E a Esperança não engana, pois o amor de Deus se derramou em nosso corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado (Rm 5, 5). Ter esperança significa, primeiramente, reconhecê-la com Dom Deus e nela experimentar o próprio Deus vivo e que dá a vida. E, assim, sentir-se amado definitivamente por ELE e, aconteça o que acontecer, ter a certeza de que se é esperado por esse amor de Deus. A esperança permite que no encontro com o Deus vivo se suporte o sofrimento sob o belo aspecto da eternidade.
Dessa forma, revivificados pelo Dom da Esperança, suportamos as tribulações momentâneas, as fadigas e as sobrecargas, movidos pela certeza de um dia, na eternidade, sermos aliviados de tal fardo. Pois, ELE disse: e achareis descanso para s vossas almas. (Mt 11, 29). Com efeito, o volume insignificante de uma tribulação acarreta para nós um glória eterna e incomensurável. E EU o ressuscitarei no dia Final! (cf. Jo 11,24-26)
Que a esperança da ressurreição nos anime, pois o que perdemos neste mundo tornamos a vê-lo no outro; basta, para isso, crermos no Senhor com verdadeira fé, obedecendo aos seu mandamentos. Dizemos estas coisas e, no entanto, levados não sei porque sentimento, desfazemo-nos em lágrimas e a saudade nos perturba a fé. Como é miserável a condição e nossa vida sem Cristo torna-se sem sentido! (Das cartas de São Bráulio de Saragoça, bispo, século VII).
Irmãos, peçamos a Deus que Ele nos conceda, de tal modo unir-nos ao Seu Filho, morto e sepultado, o merecimento de ressurgir com Ele para uma vida nova (cf. Ofício Divino. Oração das Completas de Sexta).