sábado, 24 de julho de 2010

O segredo do professor Ratzinger

Por Pe. Piero Gheddo*

Como leitura para os momentos de descanso, escolhi “Ratzinger professor”, de Gianni Valente. Um texto verdadeiramente interessante para conhecer o Papa Joseph Ratzinger em seus anos de juventude, e assim compreender melhor seu pontificado hoje. Seria impossível sintetizar em um espaço tão reduzido toda a riqueza desta reconstrução da juventude e maturidade do homem que o Senhor Jesus escolheu como seu Vigário na terra para nosso tempo. Mas gostaria de destacar apenas dois pontos que evidenciam a coerência de Joseph Ratzinger, desde os tempos de sua juventude quando estudante e sacerdote até os dias de hoje, como Pontífice da Igreja universal.

Primeiramente. A lectio magistralis proferida em 24 de junho de 1959, no início de sua carreira como docente na Universidade de Bonn, tinha por título “O Deus da fé e o Deus dos filósofos [1]. A “questão urgente” apresentada pelo jovem professor de 32 anos referia-se ao divórcio moderno entre fé e razão, entre uma religião confinada ao campo pessoal e privado, íntimo e sentimental, e a busca racional que, desde Kant, renega toda possibilidade de conhecer ou ter acesso a Deus.

Citando São Tomás, Ratzinger afirma que é possível superar toda contraposição deletéria entre a linguagem da fé e a linguagem da razão. O Deus que gradualmente se manifesta no Antigo e no Novo Testamento coincide, ao menos em parte, com o “Deus dos filósofos”, isto é, com a concepção que os homens têm de Deus. O problema é de linguagem. Os Padres da Igreja fizeram uma notável síntese da fé bíblica e do espírito helênico. Do mesmo modo, escreve o jovem Raztinger, “se (hoje) é essencial, para a mensagem cristã, ser não uma doutrina esotérica em busca de iniciados, mas a mensagem de Deus dirigida a todos, então é essencial, para tal, traduzi-la também na linguagem comum da razão humana”.

O jovem sacerdote e professor alemão não se permitia iludir. Em um artigo publicado em 1958, Ratzinger escreve que considerar a Europa um continente “predominantemente cristão” é um “erro estatístico” [2]: “Esta Europa, cristã no nome, é berço há mais de 400 anos de um novo paganismo, que cresce sem encontrar oposição no próprio coração da Igreja, e ameaça demoli-la de dentro”. A Igreja Católica do pós-guerra parece ter se tornado “cada vez mais, e de uma maneira totalmente nova, Igreja de pagãos. Não mais, como em outros tempos, Igreja de pagãos tornados cristãos, mas sim a Igreja de pagãos que se dizem ainda cristãos, mas que na verdade se tornaram pagãos”.

O segundo ponto é a profundidade de pensamento aliada à clareza do professor Ratzinger ao ensinar teologia, que o torna muito popular entre os estudantes. Em tempos em que os “barões das cátedras” com frequência falavam em linguagem difícil e não se preocupavam em se fazer compreender pelos estudantes, Ratzinger introduzia uma nova maneira de lecionar: “Lia as aulas na cozinha para sua irmã Maria, pessoa inteligente, mas que jamais havia estudado teologia. Se sua irmã manifestava aprovação, era sinal de que aula estava boa”, conta o biógrafo em seu livro.

E um estudante daquele tempo acrescenta: “A sala estava sempre lotada, os estudantes o adoravam. Tinha uma linguagem bela e simples. A linguagem de um fiel. Ratzinger não fazia exibições de erudição acadêmica nem usava o tom oratório habitual da época. Expunha suas lições de modo claro, com uma linguagem de límpida simplicidade, mesmo ao abordar as questões mais complexas.

Muitos anos mais tarde, o próprio Ratzinger explicava o segredo do sucesso de suas aulas [3]: “Nunca tentei criar um sistema meu, uma teologia minha particular. Falando mais especificamente, trata-se simplesmente do fato de que eu me propunha a pensar com a Igreja, e isto significa, principalmente, com os grandes pensadores da fé”. Os estudantes percebiam, através de suas lições, que não estavam apenas a receber noções de conhecimentos acadêmicos, mas que entravam em contato com algo realmente grande, com o âmago da fé cristã. Era este o segredo do jovem professor de teologia, que tanto atraía os estudantes.

[* Pe. Piero Gheddo (www.gheddopiero.it), editor de Mondo e Missione e Italia Missionaria, é um dos fundadores da agência Asia News (1986). Como missionário, esteve em todos os continentes e é autor de mais de 80 livros. Foi diretor do Departamento Histórico do Pime em Roma e postulador de diversas causas de canonização. Hoje vive em Milão.]

[1] J. Ratzinger, “Der Gott des Glaubens und der Gott der Philosophen”, “O Deus da fé e o Deus dos filósofos”, Marcianum Press, Venezia 2007.

[2] J. Ratzinger, “Die neuen Heiden und die Kirche” (Os novos pagãos e a Igreja), na revista “Hochland”.

[3] J. Ratzinger, “Il sale della terra – Cristianesimo e Chiesa cattolica nella svolta del millennio - Un colloquio con Peter Seewald”, San Paolo 1997, pag. 74. Versão portuguesa: O sal da Terra: o Cristianismo e a Igreja Católica no século XXI: um diálogo com Peter Seewald. Rio de Janeiro: Imago, 2005.

Em http://zenit.org/article-25574?l=portuguese.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Encíclica de Pio XI sobre o Comunismo Ateu - 2


II - DOUTRINA E FRUTOS DO COMUNISMO

DOUTRINA

Falso ideal

8. A doutrina comunista que em nossos dias se apregoa, de modo muito mais acentuado que outros sistemas semelhantes do passado, apresenta-se sob a máscara de redenção dos humildes. E um pseudo-ideal de justiça, de igualdade e de fraternidade universal no trabalho de tal modo impregna toda a sua doutrina e toda a sua atividade dum misticismo hipócrita, que as multidões seduzidas por promessas falazes e como que estimuladas por um contágio violentíssimo lhes comunica um ardor e entusiasmo irreprimível, o que é muito mais fácil em nossos dias, em que a pouco eqüitativa repartição dos bens deste mundo dá como conseqüência a miséria anormal de muitos. Proclamam com orgulho e exaltam até esse pseudo-ideal, como se dele se tivesse originado o progresso econômico, o qual, quando em alguma parte é real, tem explicação em causas muito diversas, como, por exemplo, a intensificação da produção industrial, introduzida em regiões que antes nada disso possuíam, a valorização de enormes riquezas naturais, exploradas com imensos lucros, sem o menor respeito dos direitos humanos, o emprego enfim da coação brutal que dura e cruelmente força os operários a pesadíssimos trabalhos com um salário de miséria.

Materialismo evolucionista de Marx

9. Ora, a doutrina que os comunistas em nossos dias espalham, proposta muitas vezes sob aparências capciosas e sedutoras, funda-se de fato nos princípios do materialismo chamado dialético e histórico, ensinado por Karl Marx, de que os teóricos do bolchevismo se gloriam de possuir a única interpretação genuína. Essa doutrina proclama que não há mais que uma só realidade universal, a matéria, formada por forças cegas e ocultas, que, através da sua evolução natural, se vai transformando em planta, em animal, em homem. Do mesmo modo, a sociedade humana, dizem, não é outra coisa mais do que uma aparência ou forma da matéria, que vai evolucionando, como fica dito, e por uma necessidade inelutável e um perpétuo conflito de forças, vai pendendo para a síntese final: uma sociedade sem classes. É, pois, evidente que neste sistema não há lugar sequer para a idéia de Deus; é evidente que entre espírito e matéria, entre alma e corpo não há diferença alguma; que a alma não sobrevive depois da morte, nem há outra vida depois desta. Além disso, os comunistas, insistindo no método dialético do seu materialismo, pretendem que o conflito, a que acima Nos referimos, o qual levará a natureza à síntese final, pode ser acelerado pelos homens. É por isso que se esforçam por tornarem mais agudos os antagonismos que surgem entre as várias classes, da sociedade, porfiando porque a luta de classes, tão cheia, infelizmente, de ódios e de ruínas, tome o aspecto de uma guerra santa em prol do progresso da humanidade; e até mesmo, porque todas as barreiras que se opõem a essas sistemáticas violências, sejam completamente destruídas, como inimigas do gênero humano.

A que se reduzem o homem e a família

10. Além disso, o comunismo despoja o homem da sua liberdade na qual consiste a norma da sua vida espiritual; e ao mesmo tempo priva a pessoa humana da sua dignidade, e de todo o freio na ordem moral, com que possa resistir aos assaltos do instinto cego. E, como a pessoa humana, segundo os devaneios comunistas, não é mais do que, para assim dizermos, uma roda de toda a engrenagem, segue-se que os direitos naturais, que dela procedem, são negados ao homem indivíduo, para serem atribuídos à coletividade. Quanto às relações entre os cidadãos, uma vez que sustentam o princípio da igualdade absoluta, rejeitam toda a hierarquia e autoridade, que proceda de Deus, até mesmo a dos pais; porquanto, como asseveram, tudo quanto existe de autoridade e subordinação, tudo isso, como de primeira e única fonte, deriva da sociedade. Nem aos indivíduos se concede direito algum de propriedade sobre bens naturais ou sobre meios de produção; porquanto, dando como dão origem a outros bens, a sua posse introduz necessariamente o domínio de um sobre os outros. E é precisamente por esse motivo que afirmam que qualquer direito de propriedade privada, por ser a fonte principal da escravidão econômica, tem que ser radicalmente destruído.

11. Além disto, como esta doutrina rejeita e repudia todo o caráter sagrado da vida humana, segue-se por natural conseqüência que para ela o matrimônio e a família é apenas uma instituição civil e artificial, fruto de um determinado sistema econômico: por conseguinte, assim como repudia os contratos matrimoniais formados por vínculos de natureza jurídico-moral, que não dependam da vontade dos indivíduos ou da coletividade, assim rejeita a sua indissolúvel perpetuidade. Em particular, para o comunismo não existe laço algum da mulher com a família e com o lar. De fato, proclamando o princípio da emancipação completa da mulher, de tal modo a retira da vida doméstica e do cuidado dos filhos que a atira para a agitação da vida pública e da produção coletiva, na mesma medida que o homem. Mais ainda: os cuidados do lar e dos filhos devolve-os à coletividade. Rouba-se enfim aos pais o direito que lhes compete de educar os filhos, o qual se considera como direito exclusivo da comunidade, e por conseguinte só em nome e por delegação dela se pode exercer.

Em que se converteria a sociedade

12. Que viria a ser, então, a sociedade humana, baseada em tais fundamentos materialistas? Viria a ser uma coletividade, sem outra hierarquia mais do que a derivada do sistema econômico. Teria por missão única a produção de riqueza por meio do trabalho coletivo, e único fim o gozo dos bens da terra num paraíso ameníssimo de delícias onde cada qual “produziria conforme as suas forças e receberia conforme as suas necessidades”. É também de notar que o comunismo reconhece igualmente à coletividade o direito, ou antes a arbitrariedade quase ilimitada, de sujeitar os indivíduos ao jugo do trabalho coletivo, sem a menor consideração do seu bem-estar pessoal; mais ainda, o direito de os forçar contra a sua vontade e até pela violência. E nesta sociedade comunista proclamam que tanto a moral como a ordem jurídica não brotam de outra fonte mais do que do sistema econômico do tempo o que, por conseguinte, de sua natureza são valores terrestres transitórios e mudáveis. Em suma, para resumirmos tudo em poucas palavras, pretendem introduzir uma nova ordem de coisas e inaugurar uma era nova de mais alta civilização, produto unicamente duma cega evolução da natureza: “uma humanidade que tenha expulsado a Deus da terra”.

13. E, quando as qualidades e disposições de espírito, que se requerem para realizar semelhante sociedade, tiverem sido alcançadas por todos em tal grau, que por fim tenha surgido aquele ideal utópico de sociedade, que eles sonham, sem distinção de classes então o Estado político, que ao presente unicamente se organiza como instrumento de domínio dos capitalistas sobre os proletários, perderá totalmente a razão de ser e, por necessidade natural, se dissolverá! Todavia, enquanto se não tiver chegado a essa idade de ouro, os comunistas empregam o governo e o poder público como o mais eficaz e universal instrumento, para atingirem o seu fim.

14. Aqui tendes, Veneráveis Irmãos, diante dos olhos do espírito, a doutrina que os comunistas bolchevistas e ateus pregam à humanidade como novo evangelho, e mensagem salvadora de redenção! Sistema cheio de erros e sofismas, igualmente oposto à revelação divina e à razão humana; sistema que, por destruir os fundamentos da sociedade, subverte a ordem social, que não reconhece a verdadeira origem, natureza e fim do Estado; que rejeita enfim e nega os direitos, a dignidade e a liberdade da pessoa humana.

DIFUSÃO

Promessas fascinadoras

15. Mas donde vem que tal sistema, que a ciência já há muito ultrapassou e a realidade dos fatos vai cada dia refutando, possa difundir-se tão rapidamente por todas as partes do mundo? Facilmente poderemos compreender esse fenômeno, se refletirmos que são muito poucas as pessoas que têm penetrado a fundo a verdadeira natureza e fim do comunismo; ao passo que são muitíssimos os que cedem facilmente à tentação, habilmente apresentada sob as promessas mais deslumbrantes. É que os propagandistas deste sistema afivelam esta máscara de verdade, a saber: que não querem outra coisa mais que melhorar a sorte das classes trabalhadoras; que pretendem não somente dar remédio oportuno aos abusos provocados pela economia liberal, mas também conseguir uma distribuição mais eqüitativa dos bens terrenos: objetivos estes que certamente ninguém nega se possam atingir por meios legítimos. Contudo os comunistas, por esses processos, explorando sobretudo a crise econômica, que em toda a parte se sente, conseguem atrair ao seu partido aqueles mesmos que, em virtude da doutrina que professam, abominam os princípios do materialismo e os monstruosos crimes que não raro se perpetram. E, como em qualquer erro há sempre qualquer centelha de verdade, como acima vimos que sucedia até mesmo nesta questão, este aspecto de verdade põem-no em relevo com requintada habilidade, com o fim de dissimularem e ocultarem, quanto convém, aquela odiosa e desumana brutalidade dos princípios e dos métodos de comunismo; e desse modo conseguem seduzir até espíritos nada vulgares, os quais muitas vezes a tal ponto se deixam entusiasmar que eles próprios se tornam uma espécie de apóstolos, que vão extraviar com esses erros sobretudo os jovens, facilmente expostos a se deixarem enredar por esses sofismas. Além disso, os arautos do comunismo não ignoram que podem tirar partido, tanto dos antagonismos de raça como das dissensões e lutas em que se entrechocam as diferentes facções políticas, como enfim daquela desorientação que lavra no campo da ciência, onde a própria idéia de Deus emudece, para se infiltrarem nas Universidades e corroborarem os princípios da sua doutrina com argumentos pseudocientíficos.

O liberalismo preparou o caminho ao comunismo

16. Mas, para mais facilmente se compreender como é que puderam conseguir que tantos operários tenham abraçado, sem o menor exame, os seus sofismas, será conveniente recordar que os mesmos operários, em virtude dos princípios do liberalismo econômico, tinham sido lamentavelmente reduzidos ao abandono da religião e da moral cristã. Muitas vezes o trabalho por turnos impediu até que eles observassem os mais graves deveres religiosos dos dias festivos; não houve o cuidado de construir igrejas nas proximidades das fábricas, nem de facilitar a missão do sacerdote; antes pelo contrário, em vez de se lhes pôr embargo, cada dia mais e mais se foram favorecendo as manobras do chamado laicismo. Aí estão, agora, os frutos amargosíssimos dos erros que os Nossos Predecessores e Nós mesmo mais de uma vez temos preanunciado. E assim, por que nos havemos de admirar, ao vermos que tantos povos, largamente descristianizados, vão sendo já pavorosamente inundados e quase submergidos pela vaga comunista?

Propaganda astuta e vastíssima

17. Além disso, a difusão tão rápida das idéias comunistas que se vão sorrateiramente infiltrando por países grandes ou pequenos, cultos ou menos civilizados, e até nas partes mais remotas do globo, tem sem dúvida por causa esse fanatismo de propaganda encarniçada, como talvez nunca se viu no mundo. E essa propaganda, emanada duma fonte única, adapta-se astutamente às condições particulares dos povos; dispõe de grandes meios financeiros, de inúmeras organizações, de congressos internacionais concorridíssimos, de forças compactas e bem disciplinadas; propaganda quer por jornais, revistas e folhas volantes, pelo cinema, pelo teatro, pela radiofonia, pelas escolas enfim e pelas Universidades, pouco a pouco vai invadindo todos os meios ainda os melhores, sem darem talvez pelo veneno, que cada vez mais vai infeccionando os espíritos e os corações.

Conspiração do silêncio na imprensa

18. Outro auxiliar poderoso, que contribui para a avançada do comunismo, é sem dúvida a conspiração do silêncio na maior parte da imprensa mundial, que não se conforma com os princípios católicos. Conspiração dizemos: porque aliás, não se explica facilmente como é que uma imprensa, tão ávida de esquadrinhar e publicar até os mínimos incidentes da vida cotidiana, sobre os horrores perpetrados na Rússia, no México e numa grande parte de Espanha pode guardar, há tanto tempo, absoluto silêncio; e da seita comunista, que domina em Moscou e tão largamente se estende pelo universo em poderosas organizações, fala tão pouco. Mas todos sabem que esse silêncio é em grande parte devido a exigências duma política, que não segue inteiramente os ditames da prudência civil; e é aconselhável e favorecido por diversas forças ocultas que já há muito porfiam por destruir a ordem social cristã.

DEPLORÁVEIS CONSEQÜÊNCIAS

Rússia e México

19. Entretanto, aí estão à vista os deploráveis frutos dessa propaganda fanática. Porque, onde quer que os comunistas conseguiram radicar-se e dominar, - e aqui pensamos com particular afeto paterno nos povos da Rússia e do México, - aí, como eles próprios abertamente o proclamam, por todos os meios se esforçaram por destruir radicalmente os fundamentos da religião e da civilização cristãs, e extinguir completamente a sua memória no coração dos homens, especialmente da juventude. Bispos e sacerdotes foram desterrados, condenados a trabalhos forçados, fuzilados, ou trucidados de modo desumano; simples leigos, tornados suspeitos por terem defendido a religião, foram vexados, tratados como inimigos, e arrastados aos tribunais e às prisões.

Horrores do comunismo em Espanha

20. Até em países, onde - como sucede na Nossa amadíssima Espanha - não conseguiu ainda a peste e o flagelo comunista produzir todas as calamidades dos seus erros, desencadeou contudo, infelizmente, uma violência furibunda e irrompeu em funestíssimos atentados. Não é esta ou aquela igreja destruída, este ou aquele convento arruinado; mas, onde quer que lhes foi possível, todos os templos, todos os claustros religiosos, e ainda quaisquer vestígios da religião cristã, posto que fossem monumentos insignes de arte e de ciência, tudo foi destruído até os fundamentos! E não se limitou o furor comunista a trucidar bispos e muitos milhares de sacerdotes, religiosos e religiosas, alvejando dum modo particular aqueles e aquelas que se ocupavam dos operários e dos pobres; mas fez um número muito maior de vítimas em leigos de todas as classes, que ainda agora vão sendo imolados em carnificinas coletivas, unicamente por professarem a fé cristã, ou ao menos por serem contrários ao ateísmo comunista. E esta horripilante mortandade é perpetrada com tal ódio e tais requintes de crueldade e selvajaria, que não se julgariam possíveis em nosso século.

Ninguém de são critério, quer seja simples particular, quer homem de Estado, cônscio da sua responsabilidade, ninguém absolutamente, repetimos, pode deixar de estremecer de sumo horror, se refletir que tudo quanto hoje está sucedendo na Espanha, pode amanhã repetir-se também em outras nações civilizadas.

Frutos naturais do sistema

21. Nem se pode asseverar que semelhantes atrocidades são conseqüências fatais de todas as grandes revoluções, como excessos esporádicos de exasperação, comuns a qualquer guerra: não, são frutos naturais do sistema, cuja estrutura não obedece a freio algum interno. Um freio é necessário ao homem, tanto individualmente como socialmente considerado; e é por isso que até os povos bárbaros reconheceram o vínculo da lei natural, esculpida por Deus na alma de cada homem. E, quando a observância dessa lei foi tida por todos como um dever sagrado, viram-se nações antigas atingir um tal esplendor de grandeza, que espanta, ainda mais até do que é razão, aqueles que só superficialmente compunham os documentos da história humana. Mas quando se arranca das mentes dos cidadãos a própria idéia de Deus, necessariamente os veremos precipitar-se na crueldade mais selvagem, e na ferocidade dos costumes. Luta contra tudo o que é divino

Luta contra tudo o que se chama Deus

22. É este o espetáculo que atualmente com suma dor contemplamos: pela primeira vez na história estamos assistindo a uma insurreição, cuidadosamente preparada e calculadamente dirigida contra “tudo o que se chama Deus” (cfr. 2 Tess 1, 4). Efetivamente, o comunismo por sua natureza opõe-se a qualquer religião, e a razão por que a considera como o “ópio do povo”, é porque os seus dogmas e preceitos, pregando a vida eterna depois desta vida mortal, apartam os homens da realização daquele futuro paraíso, que são obrigados a conseguir na terra.

O terrorismo

23. Mas não é impunemente que se despreza a lei natural e o seu autor, Deus; a conseqüência é que os esforços dos comunistas, assim como nem sequer no campo econômico puderam até hoje realizar o seu desígnio, assim também no futuro jamais o poderão conseguir. Não negamos que esses esforços na Rússia contribuíram não pouco para sacudir os homens e as suas instituições, daquela longa e secular inércia em que jaziam, e que puderam, empregando todos os meios e processos; ainda mesmo ilegitimamente, fazer alguma coisa para promover o progresso material; mas sabemos por testemunhos absolutamente insuspeitos, e alguns bem recentes ainda, que de fato nem sequer neste ponto se conseguiu o que tanto se prometera. E não se esqueça, que aquela ditadura, toda terrorismo e crueldade, impôs a inumeráveis cidadãos o jugo da escravidão. Porque é de notar que também no terreno econômico é imprescindível alguma norma de probidade a que se conforme, por dever de consciência, quem exerce algum cargo; ora isso é indiscutível que o não podem dar os princípios comunistas, nascidos dos sofismas do materialismo. Por conseguinte, nada mais resta do que aquele pavoroso terrorismo que se está vendo na Rússia, onde os antigos camaradas de conspiração e de luta se vão dando a morte uns aos outros; mas esse terrorismo criminoso, longe de conseguir pôr um dique à corrupção dos costumes, nem sequer pode evitar a dissolução da estrutura social. Um pensamento paternal para os povos oprimidos da Rússia

UM PENSAMENTO PATERNAL AOS POVOS OPRIMIDOS, NA RÚSSIA

24. Com isto, porém, não é nossa intenção condenar em massa os povos da União Soviética, aos quais, pelo contrário, consagramos o mais vivo afeto paterno. É que, de fato, sabemos que muitos deles gemem sob o jugo da mais iníqua escravidão, que lhes foi imposta por homens, pela maior parte estranhos aos verdadeiros interesses daquele povo; e que muitos outros foram enganados por promessas e esperanças falazes. O que Nós condenamos é o sistema e seus autores e fautores que consideraram aquela nação como o terreno mais apto para lançarem a semente do seu sistema, há muito tempo preparada, e de lá a disseminarem por todas as regiões do globo.

domingo, 18 de julho de 2010

Gianna Jessen, uma sobrevivente do aborto

Para vocês que acompanham o blog, o depoimento emocionante de uma sobrevivente do aborto, Gianna Jessen. E passem esse video adiante. Bom domingo!

Encíclica de Pio XI sobre o Comunismo Ateu - 1

CARTA ENCÍCLICA
DIVINI REDEMPTORIS
DE SUA SANTIDADE
PIO XI
SOBRE O COMUNISMO ATEU

INTRODUÇÃO

1. A promessa dum Redentor divino ilumina a primeira página da história da humanidade; e assim a firmíssima esperança de melhores dias, assim como suavizou a dor causada pela perda do paraíso de delícias, assim foi acompanhando os homens através do seu caminho de amarguras e inquietações, até que enfim, quando chegou a plenitude do tempo, o nosso Salvador, vindo à terra, cumulou as ânsias dessa tão longa expectação da humanidade e inaugurou para todos os povos uma nova civilização cristã, que vence e quase imensamente supera a que algumas nações mais privilegiadas atingiram, à custa dos maiores esforços e trabalhos.

2. Depois da miserável queda de Adão, como conseqüência dessa mácula hereditária, começou a travar-se o duro combate da virtude contra os estímulos dos vícios; e jamais cessou aquele antigo e astuto tentador de enganar a sociedade com promessas falazes. É por isso que, pelos séculos afora, as perturbações se têm sucedido umas às outras até à revolução dos nossos dias, a qual ou já surge furiosa ou pavorosamente ameaçada atear-se em todo o universo e parece ultrapassar em violência e amplitude todas as perseguições que a Igreja tem padecido; a tal ponto que povos inteiros correm perigo de recair em barbárie, muito mais horrorosa do que aquela em que jazia a maior parte do mundo antes da vinda do divino Redentor.

3. Vós, sem dúvida, Veneráveis Irmãos, já percebestes de que perigo ameaçador falamos: é do comunismo, denominado bolchevista e ateu, que se propõe como fim peculiar revolucionar radicalmente a ordem social e subverter os próprios fundamentos da civilização cristã.

I - ATITUDE DA IGREJA PERANTE O COMUNISMO

CONDENAÇÕES ANTERIORES

4. Mas diante destas ameaçadoras tentativas, não podia calar-se nem de fato se calou a Igreja Católica. Não se calou esta Sé Apostólica, que muito bem conhece que tem por missão peculiar defender a verdade, a justiça e todos os bens imortais, que o comunismo despreza e impugna. Já desde os tempos em que certas classes de eruditos pretenderam libertar a civilização e cultura humanística dos laços da religião e da moral, os Nossos Predecessores julgaram que era seu dever chamar a atenção do mundo, em termos bem explícitos, para as conseqüências da descristianização da sociedade humana. E pelo que diz respeito aos erros dos comunistas, já em 1846, o Nosso Predecessor de feliz memória, Pio IX, os condenou solenemente, e confirmou depois essa condenação no Sílabo. São estas as palavras que emprega na Encíclica Qui pluribus: “Para aqui (tende) essa doutrina nefanda do chamado comunismo, sumamente contrária ao próprio direito natural, a qual, uma vez admitida, levaria à subversão radical dos direitos, das coisas, das propriedades de todos e da própria sociedade humana” (Encíclica Qui pluribus, 9 de novembro de 1846: Acta Pii IX, vol. I, pág. 13. Cf. Sílabo, IV: A.A.S., vol. III, pág. 170). Mais tarde, outro Predecessor Nosso de imortal memória, Leão XIII, na sua Encíclica Quod Apostolici muneris (28 de dezembro de 1878: Acta Leonis XIII, vol. I, pág. 40), assim descreveu distinta e expressamente esses mesmos erros: “Peste mortífera, que invade a medula da sociedade humana e a conduz a um perigo extremo”; e com a clarividência do seu espírito luminoso demonstrou que o movimento precipitado das multidões para a impiedade do ateísmo, numa época em que tanto se exaltavam os progressos da técnica, tivera origem nos desvarios duma filosofia que de há muito porfia por separar a ciência e a vida da fé da Igreja.

ATOS DO PRESENTE PONTIFICADO

5. Nós também no decurso do Nosso Pontificado, com insistente solicitude fomos várias vezes denunciando as correntes desta impiedade que víamos crescendo e rugindo cada vez mais ameaçadoras. Efetivamente, quando em 1924 voltava da Rússia a Nossa missão de socorro, numa alocução especial dirigida ao universo católico (18 de dezembro de 1924: A.A.S., vol. XVI (1924), págs. 494-495), condenamos os erros e processos dos comunistas. E pelas Encíclicas Miserentissimus Redemptor (8 de maio de 1928: A.A.S., vol. XX (1928), págs. 165-178), Quadragesimo anno (15 de maio de 1931: A.A.S., vol. XXIII (1931), págs. 177-228), Caritate Christi (3 de maio de 1932: A.A.S., vol. XXIV (1932), págs. 177-194), Acerba animi (29 de setembro de 1932: A.A.S., vol. XXIV (1932), págs. 321-332), Dilectissima Nobis (3 de junho de 1933: A.A.S., vol. XXV (1933), págs. 261-274), levantamos a voz em solenes protestos contra as perseguições desencadeadas contra o nome cristão, tanto na Rússia, como no México, como finalmente na Espanha. E estão ainda bem frescas na memória as alocuções por Nós pronunciadas, o ano passado, quer por ocasião da inauguração da Exposição mundial da Imprensa Católica, quer na audiência concedida aos refugiados espanhóis, quer também em Nossa Mensagem radiofônica pela festa do santo Natal. Até os mais encarniçados inimigos da Igreja, que desde Moscou, sua capital, dirigem esta luta contra a civilização cristã, até eles mesmos, com seus ataques ininterruptos, dão testemunho, não tanto por palavras como por atos, que o Sumo Pontificado, ainda em nossos tempos, não só não cessou de tutelar com toda a fidelidade o santuário da religião cristã, mas tem dado voz de alarme contra o enorme perigo comunista, com mais freqüência e maior força persuasiva que nenhum outro poder público deste mundo.

NECESSIDADE DE UM NOVO DOCUMENTO SOLENE

6. Não obstante, posto que temos renovado tão repetidamente estas paternais advertências, que vós, Veneráveis Irmãos, em tantas cartas pastorais, algumas delas coletivas, diligentemente comentastes e transmitistes aos fiéis, ainda assim este perigo, com o impulso de hábeis agitadores, mais e mais se vai agravando de dia para dia. É por isso que julgamos dever Nosso levantar de novo a voz; e fá-lo-emos por meio deste documento de maior solenidade, como é costume desta Sé Apostólica, mestra da verdade; e com tanto maior satisfação o faremos, quando é certo que assim correspondemos aos desejos de todo o universo católico. Confiamos até que o eco da nossa voz será acolhido de bom grado por todos aqueles que, de espírito liberto de preconceitos, desejem sinceramente o bem da humanidade. Esta nossa confiança vem em certo modo aumentá-la o fato de vermos estas Nossas admoestações confirmadas pelos péssimos frutos, que Nós prevíramos e anunciáramos haviam de brotar das idéias subversivas, e que de fato se vão pavorosamente multiplicando nas regiões já dominadas pelo comunismo, ou ameaçam invadir rapidamente os outros países do mundo.

7. Queremos, pois, mais uma vez expor, como em breve síntese, os sofismas teóricos e práticos do comunismo, como eles se manifestam principalmente nos princípios e métodos da ação do bolchevismo: a esses sofismas, todos falsidade e ilusão, contrapor a luminosa doutrina da Igreja; e de novo exortar a todos insistentemente a lançar mãos dos meios, com que é possível não somente livrar e salvaguardar deste horrendo flagelo a civilização cristã, a única em que pode subsistir uma sociedade verdadeiramente humana, mas ainda fazê-la avançar, a passo cada dia mais acelerado, para o genuíno progresso da humanidade.

terça-feira, 13 de julho de 2010

Exortação à unidade

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Da Carta aos efésios, de Santo Inácio de Antioquia (3,2-6,1)

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O amor não me permite calar a respeito de vós. É por isso que desejo exortar-vos a caminhar de acordo com o pensamento de Deus. De fato, Jesus Cristo, nossa vida inseparável, é o pensamento do Pai, assim como os bispos, estabelecidos até os confins da terra, estão no pensamento de Jesus Cristo.

Convém caminhar de acordo com o pensamento de vosso bispo, como já o fazeis. Vosso presbitério, de boa reputação e digno de Deus, está unido ao bispo, assim como as cordas à cítara. Por isso, no acordo de vossos sentimentos e na harmonia de vosso amor, vós podeis cantar a Jesus Cristo. A partir de cada um, que vos torneis um só coro, a fim de que, na harmonia de vosso acordo, tomando na unidade o tom de Deus, canteis a uma só voz, por meio de Jesus Cristo, um hino ao Pai, para que ele vos escute e vos reconheça por vossas boas obras, como membros do seu Filho. É proveitoso, portanto, que estejais em unidade inseparável, a fim de sempre participar de Deus.

De fato, se em pouco tempo contraís com vosso bispo tanta familiaridade que não é humana mas espiritual, tanto mais eu vos felicito por estardes unidos a ele, assim como a Igreja está unida a com Jesus Cristo, e Jesus Cristo com o Pai, a fim de que todas as coisas estejam de acordo no unidade. Que ninguém se engane: quem não está junto do altar está privado do pão de Deus. Se a oração de duas pessoas juntas tem tal força, quanto mais a do bispo e de toda a Igreja! Aquele que não participa da reunião é orgulhoso e já está por si mesmo julgado, pois está escrito: “Deus resiste aos orgulhosos.” Tenhamos cuidado, portanto, para não resistirmos ao bispo, a fim de estarmos submetidos a Deus.

Quanto mais alguém vê que o bispo se cala, tanto mais o deve respeitar. De fato, a todo aquele que o dono da casa envia para administrá-la, é preciso que o recebamos como se fosse aquele que o enviou. Está claro, portanto, que devemos olhar o bispo como ao próprio Senhor.

domingo, 11 de julho de 2010

A supremacia do amor

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Da Carta aos Coríntios, de São Clemente Romano, papa (nn. 49-50)

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Quem tem amor em Cristo, cumpra os mandamentos de Cristo. Quem poderá explicar o vínculo do amor de Deus? Quem será capaz de exprimir a grandiosidade da sua beleza? A altura para onde o amor conduz é inefável. O amor nos une a Deus, “o amor cobre uma multidão de pecados”. O amor tudo sofre e tudo suporta. No amor não há nada de banal, nem de soberbo. O amor não divide, o amor não provoca revolta, o amor realiza tudo com concórdia. No amor, tornam-se perfeitos os eleitos de Deus; sem o amor nada é agradável a Deus. É no amor que o Senhor nos atraiu a si. É por causa de seu amor para conosco, que Jesus Cristo nosso Senhor, conforme a vontade de Deus, deu o seu sangue por nós, sua carne pela nossa carne, e sua vida por nossa vida.

Caríssimos, vede como o amor é coisa elevada e maravilhosa, e que sua perfeição está além de qualquer comentário. Quem é capaz de se encontrar nele, senão aqueles que Deus tornou dignos? Rezemos, portanto, e supliquemos a sua misericórdia, a fim de sermos encontrados no amor, sem parcialidade, irrepreensíveis. Muitas gerações passaram, desde Adão até hoje; mas, aqueles que, pela graça de Deus, se tornaram perfeitos no amor permanecem no lugar dos piedosos. Esses hão de tornar-se manifestos, quando aparecer o Reino de Cristo. Com efeito, está escrito: “Entrai um pouco em vossos quartos, até que passem a minha ira e o meu furor. Então, eu me lembrarei do dia ótimo, e vos ressuscitarei dos seus sepulcros.” Somos felizes, caríssimos, se praticarmos os mandamentos de Deus na concórdia e no amor, a fim de que, pelo amor, nossos pecados sejam perdoados. Pois está escrito: “Felizes aqueles cujas iniqüidades foram perdoadas e cujos pecados foram cobertos. Feliz o homem, do qual o Senhor não considera o pecado e em cuja boca não existe engano”. Essa bem-aventurança é para os que Deus escolheu por meio de Jesus Cristo nosso Senhor. A ele, a glória pelos séculos dos séculos. Amém.

sábado, 10 de julho de 2010

Jesus Cristo, caminho de salvação

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Da Carta de São Clemente Romano, papa, aos Coríntios (36-38)

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Caríssimos, este é o caminho no qual encontramos a nossa salvação: Jesus Cristo, o sumo sacerdote de nossas ofertas, o protetor e o auxílio da nossa fraqueza. Por meio dele, fixamos nosso olhar nas alturas dos céus; por meio dele, contemplamos, como em espelho, sua face imaculada e incomparável; por meio dele, abriram-se os olhos do nosso coração; mediante ele, nossa mente obtusa e obscura refloresce para a luz; mediante ele, o Senhor quis fazer-nos experimentar o conhecimento imortal. “De fato, sendo ele, o resplendor de sua majestade, é tanto superior os anjos quanto o nome que herdou é mais excelente”. Assim está escrito: “Ele fez dos ventos mensageiros seus e de chama de fogo os seus servidores.” Assim diz o Senhor a respeito do seu Filho: “Tu és o meu filho, eu hoje te gerei. Pede-me, e eu te darei as nações como tua herança, e teus serão os confins da terra”. E lhe diz ainda: “Senta à minha direita, até que eu coloque os teus inimigos como estrado para teus pés.” Quais são os inimigos? São os malfeitores e aqueles que se opõem à sua vontade.

Irmãos, militemos com toda nossa prontidão sob as ordens irrepreensíveis dele. Consideremos os soldados que servem sob as ordens de nossos governantes: com que disciplina, docilidade e submissão eles executam as funções que lhe são designadas! Nem todos são comandantes, nem chefes de mil, nem chefes de cem, nem chefes de cinqüenta, e assim por diante. Cada um, porém, no seu próprio posto, executa aquilo que lhe é prescrito pelo rei e pelos governantes.

Os grandes não podem existir sem os pequenos, nem os pequenos sem os grandes; em tudo há certa mistura, e nisso há uma necessidade. Tomemos o nosso corpo: a cabeça não é nada sem os pés, nem os pés sem a cabeça; os menores membros do nosso corpo são necessários e úteis ao corpo inteiro, mas todos convivem e têm subordinação mútua para a saúde do corpo inteiro.

Conservemos, portanto, todo o nosso corpo em Cristo Jesus, e cada um seja submisso a seu próximo, conforme o dom que lhe foi conferido.

O forte cuide do fraco, e o fraco respeite o forte; o rico socorra o pobre, e o pobre agradeça a Deus porque lhe deu alguém para suprir a sua indigência. Que o sábio mostre sua sabedoria, não em palavras, mas em boas obras. Que o humilde não dê testemunho de si mesmo, mas deixe que outro testemunhe em seu favor. Que o puro em seu corpo não se vanglorie disso, pois sabe que é outro quem lhe concede a continência. Reflitamos, portanto, irmãos, sobre a matéria de que fomos feitos; como e quem éramos, quando entramos no mundo; de que túmulo e de que trevas, aquele que nos modelou e criou nos introduziu no mundo que lhe pertence. Ele preparou seus benefícios antes que tivéssemos nascido. Dele recebemos tudo, e tudo lhe devemos agradecer. A ele, a glória pelos séculos dos séculos. Amém.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

A sucessão apostólica

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Da Carta de São Clemente Romano, papa, aos Coríntios (42,1-5;44,1-5)

Os apóstolos receberam do Senhor Jesus Cristo o Evangelho que nos pregaram. Jesus Cristo foi enviado por Deus. Cristo, portanto, vem de Deus, e os apóstolos vêm de Cristo. As duas coisas, em ordem, provêm, da vontade de Deus. Eles receberam instruções e, repletos de certeza, por causa da ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo, fortificados pela palavra de Deus e com a plena certeza dada pelo Espírito Santo, saíram anunciando que o Reino de Deus estava para chegar. Pregavam pelos campos e cidades, e aí produziam suas primícias, provando-as pelo Espírito, a fim de instituir com elas bispos e diáconos dos futuros fiéis. Isso não era algo novo: desde há muito tempo, a Escritura falava dos bispos e dos diáconos. Com efeito, em algum lugar está escrito: “Estabelecerei seus bispos na justiça e seus diáconos na fé”.

Nossos apóstolos conheciam, da parte do Senhor Jesus Cristo, que haveria disputas por causa da função episcopal. Por esse motivo, prevendo exatamente o futuro, instituíram aqueles de quem falávamos antes, e ordenaram que, por ocasião da morte desses, outros homens provados lhe sucedessem no ministério. Os que foram estabelecidos por eles ou por outros homens eminentes, com a aprovação de toda a Igreja, e que serviram irrepreensivelmente ao rebanho de Cristo, com humildade, calma e dignidade, e que durante muito tempo receberam o testemunho de todos, achamos que não é justo demiti-los de suas funções. Para nós, não seria culpa leve se exonerássemos do episcopado aqueles que apresentaram os dons de maneira irrepreensível e santa. Felizes os presbíteros que percorreram seu caminho e cuja vida terminou de modo fecundo e perfeito. Eles não precisam temer que alguém os afaste do lugar que lhes foi designado.

Instrução Libertatis Nuntius sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação – 7

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XI - ORIENTAÇÕES

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1. Chamar a atenção para os graves desvios que algumas "teologias da libertação" trazem consigo não deve, de modo algum, ser interpretado como uma aprovação, ainda que indireta, aos que contribuem para a manutenção da miséria dos povos, aos que dela se aproveitam, aos que se acomodam ou aos que ficam indiferentes perante esta miséria. A Igreja, guiada pelo Evangelho da misericórdia e pelo amor ao homem, escuta o clamor pela justiça e deseja responder com todas as suas forças.

2. Um imenso apelo é assim dirigido à Igreja. Com audácia e coragem, com clarividência e prudência, com zelo e força de ânimo, com um amor aos pobres que vai até ao sacrifício, os pastores, como muitos já fazem, hão de considerar como tarefa prioritária responder a este apelo.

3. Todos aqueles, sacerdotes, religiosos e leigos que, auscultando o clamor pela justiça, quiserem trabalhar na evangelização e na promoção humana, fá-lo-ão em comunhão com seu bispo e com a Igreja, cada um na linha de sua vocação eclesial específica.

4. Conscientes do caráter eclesial de sua vocação, os teólogos colaborarão lealmente e em espírito e diálogo com o Magistério da Igreja. Saberão reconhecer no Magistério um dom de Cristo à sua Igreja e acolherão a sua palavra e as suas orientações com respeito filial.

5. Somente a partir da tarefa evangelizadora, tomada em sua integralidade, se compreendem as exigências de uma promoção humana e de uma libertação autênticas. Esta libertação tem como pilares indispensáveis a verdade sobre Jesus Cristo, o Salvador, a verdade sobre a Igreja, a verdade sobre o homem e sobre a sua dignidade. É à luz das bem-aventuranças, da bem-aventurança dos pobres de coração em primeiro lugar, que a Igreja, desejosa de ser, no mundo inteiro, a Igreja dos pobres, quer servir a nobre causa da verdade e da justiça. Ela se dirige a cada homem e, por isso mesmo, a todos os homens. Ela é a "Igreja universal. A Igreja do mistério da encarnação. Não é a Igreja de uma classe ou de uma só casta. Ela fala em nome da própria verdade. Esta verdade é realista". Ela leva a ter em conta "cada realidade humana, cada injustiça, cada tensão, cada luta".

6. Uma defesa eficaz da justiça deve apoiar-se na verdade do homem, criado à imagem de Deus e chamado à graça da filiação divina. O reconhecimento da verdadeira relação do homem com Deus constitui o fundamento da justiça, enquanto regula as relações entre os homens. Esta é a razão pela qual o combate pelos direitos do homem, que a Igreja não cessa de promover, constitui o autêntico combate pela justiça.

7. A verdade do homem exige que este combate seja conduzido por meios que estejam de acordo com a dignidade humana. Por isso, o recurso sistemático e deliberado à violência cega, venha esta de um lado ou de outro, deve ser condenado. Pôr a confiança em meios violentos na esperança de instaurar uma maior justiça é ser vítima de uma ilusão fatal. Violência gera violência e degrada o homem. Rebaixa a dignidade do homem na pessoa das vítimas e avilta esta mesma dignidade naqueles que a praticam.

8. A urgência de reformas radicais que incidam sobre estruturas que segregam a miséria e constituem, por si mesma, formas de violência, não pode fazer perder de vista que a fonte da injustiça se encontra no coração dos homens. Não se obterão, pois, mudanças sociais que estejam realmente a serviço do homem senão fazendo apelo às capacidades éticas da pessoa e à constante necessidade de conversão interior. Pois, na medida em que colaborarem livremente, por sua própria iniciativa e em solidariedade, nestas necessárias mudanças, os homens, despertados no sentido de sua responsabilidade, crescerão em humanidade. A inversão entre moralidade e estruturas é própria de uma antropologia materialista, incompatível com a verdade do homem.

9. É, pois, igualmente ilusão fatal crer que novas estruturas darão origem por si mesmas a um "homem novo", no sentido da verdade do homem. O cristão não pode desconhecer que o Espírito Santo que nos foi dado é a fonte de toda verdadeira novidade e que Deus é o Senhor da história.

10. A derrubada, por meio da violência revolucionária, de estruturas geradoras de injustiças, não é, pois, ipso facto o começo da instauração de um regime justo. Um fato marcante de nossa época deve ocupar a reflexão de todos aqueles que desejam sinceramente a verdadeira libertação dos seus irmãos. Milhões de nossos contemporâneos aspiram legitimamente a reencontrar as liberdades fundamentais de que estão privados por regimes totalitários e ateus, que tomaram o poder por caminhos revolucionários e violentos, exatamente em nome da libertação do povo. Não se pode desconhecer esta vergonha de nosso tempo: pretendendo proporcionar-lhes liberdade, mantêm-se nações inteiras em condições de escravidão indignas do homem. Aqueles que, talvez por inconsciência, se tornam cúmplices de semelhantes escravidões, traem os pobres que eles quereriam servir.

11. A luta de classes como caminho para uma sociedade sem classes é um mito que impede as reformas e agrava a miséria e as injustiças.Aqueles que se deixam fascinar por este mito deveriam refletir sobre as experiências históricas amargas às quais ele conduziu. Compreenderiam então que não se trata, de modo algum, de abandonar uma via eficaz de luta em prol dos pobres em troca de um ideal desprovido de efeito. Trata-se, pelo contrário, de libertar-se de uma miragem para se apoiar no Evangelho e na sua força de realização.

12. Uma das condições para uma necessária retificação teológica é a revalorização do magistério social da Igreja. Este magistério não é, de modo algum, fechado. É, ao contrário, aberto a todas as novas questões que não deixam de surgir no decorrer dos tempos. Nesta perspectiva, a contribuição dos teólogos e dos pensadores de todas as regiões do mundo para a reflexão da Igreja é, hoje, indispensável.

13. Do mesmo modo, a experiência daqueles que trabalham diretamente na evangelização e na promoção dos pobres e dos oprimidos é necessária à reflexão doutrinal e pastoral da Igreja. Neste sentido, é preciso tomar consciência de certos aspectos da verdade a partir da práxis, se por práxis se entende a prática pastoral e uma prática social que conserva sua inspiração evangélica.

14. O ensino da Igreja em matéria social proporciona as grandes orientações éticas. Mas, para que possa atingir diretamente a ação, ele precisa de pessoas competentes, do ponto de vista científico e técnico, bem como no domínio das ciências humanas e da política. Os pastores estarão atentos à formação destas pessoas competentes, profundamente impregnadas pelo Evangelho. São aqui visados, em primeiro lugar, os leigos, cuja missão específica é a de construir a sociedade.

15. As teses das "teologias da libertação" estão sendo largamente difundidas, sob uma forma ainda simplificada, nos cursos de formação ou nas comunidades de base, que carecem de preparação catequética e teológica e de capacidade de discernimento. São assim aceitas por homens e mulheres generosos, sem que seja possível um juízo crítico.

16. É por isso que os pastores devem vigiar sobre a qualidade e o conteúdo da catequese e da formação que devem sempre apresentar a integralidade da mensagem da salvação e os imperativos da verdadeira libertação humana, no quadro desta mensagem integral.

17. Nesta apresentação integral do mistério cristão, será oportuno acentuar os aspectos essenciais que as "teologias da libertação" tendem especialmente a desconhecer ou eliminar: transcendência e gratuidade da libertação em Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem; soberania de sua graça; verdadeira natureza dos meios de salvação, e especialmente da Igreja e dos sacramentos. Tenham-se presentes a verdadeira significação da ética, para a qual a distinção entre o bem e o mal não pode ser relativizada; o sentido autêntico do pecado; a necessidade da conversão e a universalidade da lei do amor fraterno. Chame-se a atenção contra uma politização da existência, que, desconhecendo ao mesmo tempo a especificidade do Reino de Deus e a transcendência da pessoa, acaba sacralizando a política e abusando da religiosidade do povo em proveito de iniciativas revolucionárias.

18. E freqüente dirigir aos defensores da "ortodoxia" a acusação de passividade, de indulgência ou de cumplicidade culpáveis diante de situações intoleráveis de injustiça e de regimes políticos que mantêm estas situações. A conversão espiritual, a intensidade do amor a Deus e ao próximo, o zelo pela justiça e pela paz, o sentido evangélico dos pobres e da pobreza são exigidos a todos, especialmente aos pastores e aos responsáveis. A preocupação pela pureza da fé não subsiste sem a preocupação de dar a resposta de um testemunho eficaz de serviço ao próximo e, em especial, ao pobre e ao oprimido, através de uma vida teologal integral. Pelo testemunho de sua capacidade de amar, dinâmica e construtiva, os cristãos lançarão, sem dúvida, as bases desta "civilização do amor" de que falou, depois de Paulo VI, a Conferência de Puebla. De resto, são numerosos os sacerdotes, religiosos ou leigos que se consagram de um modo verdadeiramente evangélico à criação de uma sociedade justa.

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CONCLUSÃO

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As palavras de Paulo VI na Profissão de fé do povo de Deus exprimem, com meridiana clareza, a fé da Igreja, da qual ninguém pode afastar-se sem provocar, juntamente com a ruína espiritual, novas misérias e novas escravidões.

"Nós professamos que o Reino de Deus iniciado aqui na Terra, na Igreja de Cristo, não é deste mundo, cuja figura passa, e que seu crescimento próprio não se pode confundir com o progresso da civilização, da ciência ou da técnica humanas, mas consiste em conhecer cada vez mais profundamente as insondáveis riquezas de Cristo, em esperar cada vez mais corajosamente os bens eternos, em responder cada vez mais ardentemente ao amor de Deus e em difundir cada vez mais amplamente a graça e a santidade entre os homens. Mas é este mesmo amor que leva a Igreja a preocupar-se constantemente com o bem temporal dos homens. Não cessando de lembrar a seus filhos que eles não têm aqui na Terra uma morada permanente, anima-os também a contribuir, cada qual segundo a sua vocação e os meios de que dispõem, para o bem de sua cidade terrestre, a promover a justiça, a paz e a fraternidade entre os homens, a prodigalizar-se na ajuda aos irmãos, sobretudo aos mais pobres e mais infelizes. A intensa solicitude da Igreja, esposa de Cristo, pelas necessidades dos homens, suas alegrias e esperanças, seus sofrimentos e seus esforços, nada mais é do que seu grande desejo de lhes estar presente para os iluminar com a luz de Cristo e reuni-los todos nele, seu único Salvador. Esta solicitude não pode, em hipótese alguma, comportar que a própria Igreja se conforme às coisas deste mundo, nem que diminua o ardor da espera pelo seu Senhor e pelo Reino eterno".

O Sumo Pontífice João Paulo II, no decorrer de uma Audiência concedida ao Cardeal Prefeito que subscreve este documento, aprovou apresente Instrução, deliberada em reunião ordinária da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, e ordenou que a mesma fosse publicada.

Roma, Sede da Sagrada Congregação Para a Doutrina da Fé, 6 de agosto de 1984, na Festa da Transfiguração do Senhor.

JOSEPH Card. RATZINGER

Prefeito

†ALBERTO BOVONE

Arcebispo tit. de Cesarea de Numidia

Secretário

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Instrução Libertatis Nuntius sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação – 6

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X - UMA NOVA HERMENÊUTlCA

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1. A concepção partidarista da verdade, que se manifesta na práxis revolucionária de classe, corrobora esta posição. Os teólogos que não compartilham as teses da "teologia da libertação", a hierarquia e sobretudo o Magistério romano são assim desacreditados a priori, como pertencentes à classe dos opressores. A teologia deles é uma teologia de classe. Os argumentos e ensinamentos não merecem, pois, ser examinados em si mesmos, uma vez que refletem simplesmente os interesses de uma classe. Por isso, decreta-se que o discurso deles é, em princípio, falso.

2. Aparece aqui o caráter global e totalizante da "teologia da libertação". Por isso mesmo, deve ser criticada não nesta ou naquela afirmação que ela faz, mas a partir do ponto de vista de classes que ela adota a priori e que nela funciona como princípio hermenêutico determinante.

3. Por causa deste pressuposto classista, torna-se extremamente difícil, para não dizer impossível, conseguir com alguns "teólogos da libertação" um verdadeiro diálogo, no qual o interlocutor seja ouvido e seus argumentos sejam discutidos objetivamente e com atenção. Com efeito, estes teólogos, mais ou menos conscientemente, partem do pressuposto de que o ponto de vista da classe oprimida e revolucionária, que seria o mesmo deles, constitui o único ponto de vista da verdade. Os critérios teológicos da verdade vêem-se, deste modo, relativizados e subordinados aos imperativos da luta de classes. Nesta perspectiva, substitui-se a ortodoxia, como regra correta da fé, pela idéia da ortopráxis, como critério de verdade. A este respeito, é preciso não confundir a orientação prática, própria à teologia tradicional, do mesmo modo e pelo mesmo título que lhe é própria também a orientação especulativa, com um primado privilegiado, conferido a um determinado tipo de práxis. Na realidade, esta última é a práxis revolucionária que se tornaria assim critério supremo da verdade teológica. Uma metodologia teológica sadia toma em consideração sem dúvida, a práxis da Igreja e nela encontra um de seus fundamentos, mas isto porque essa práxis é decorrência da fé e constitui uma expressão vivenciada dessa fé.

4. A doutrina social da Igreja é rejeitada com desdém. Esta procede, afirma-se, da ilusão de um Possível compromisso, próprio das classes médias, destituídas de sentido histórico.

5. A nova hermenêutica inserida nas "teologias da libertação" conduz a uma releitura essencialmente política da Escritura. É assim que se atribui a máxima importância ao acontecimento do Êxodo, enquanto libertação da escravidão política. Propõe-se igualmente uma leitura política do Magnificat. O erro aqui não está em privilegiar uma dimensão política das narrações bíblicas, mas em fazer desta dimensão a dimensão principal e exclusiva, o que leva a uma leitura redutiva da Escritura.

6. Quem assim procede, coloca-se por isso mesmo na perspectiva de um messianismo temporal, que é uma das expressões mais radicais da secularização do Reino de Deus e de sua absorção na imanência da história humana.

7. Privilegiar deste modo a dimensão política é o mesmo que ser levado a negar a radical novidade do Novo Testamento e, antes de tudo, a desconhecer a pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, bem como o caráter específico da libertação que ele nos traz e que é fundamentalmente libertação do pecado, fonte de todos os males.

8. Aliás, pôr de lado a interpretação autorizada do Magistério, denunciada como interpretação de classe, é afastar-se automaticamente da Tradição. É, por isso mesmo, privar-se de um critério teológico essencial para a interpretação e acolher, no vazio assim criado, as teses mais radicais da exegese racionalista. Retoma-se, então, sem espírito crítico, a Oposição entre o "Jesus da história" e o "Jesus da fé".

9. Conserva-se, sem dúvida, a letra das fórmulas da fé, especialmente a de Calcedônia, mas atribui-se a essas fórmulas uma nova significação, que constitui uma negação da fé da Igreja. De um lado, rejeita-se a doutrina cristológica apresentada pela Tradição, em nome do critério de classe; e, de outro lado, pretende-se chegar ao "Jesus da história" a partir da experiência revolucionária da luta dos pobres pela sua libertação.

10. Pretende-se reviver uma experiência análoga à que teria sido a de Jesus. A experiência dos pobres lutando por sua libertação, que teria sido a de Jesus, e só ela revelaria assim o conhecimento do verdadeiro Deus e do Reino.

11. É claro que a fé no Verbo encarnado, morto e ressuscitado por todos os homens, a quem "Deus fez Senhor e Cristo", é negada. Toma o seu lugar uma "figura" de Jesus, uma espécie de símbolo que resume em si mesmo as exigências da luta dos oprimidos.

12. Propõe-se, assim, uma interpretação exclusivamente política da morte de Cristo. Nega-se, desta maneira, seu valor salvífico e toda a economia da redenção.

13. A nova interpretação atinge, assim, todo o conjunto do mistério cristão.

14. De modo geral, ela opera o que se poderia chamar de inversão dos símbolos. Assim, em lugar de ver no Êxodo com São Paulo uma figura do batismo se tenderá ao extremo de fazer deste um símbolo da libertação política do povo.

15. Pelo mesmo critério hermenêutico, aplicado à vida eclesial e à constituição hierárquica da Igreja, as relações entre a hierarquia e a "base" tornam-se relações de dominação que obedecem à lei da luta de classes. A sacramentalidade, que está na raiz dos ministérios eclesiásticos e que faz da Igreja uma realidade espiritual que não se pode reduzir a uma análise puramente sociológica, é simplesmente ignorada.

16. Verifica-se ainda a inversão dos símbolos no domínio dos sacramentos. A Eucaristia não é mais entendida na sua verdade de presença sacramental do sacrifício reconciliador e como dom do Corpo e do Sangue de Cristo. Torna-se celebração do povo na sua luta. Por conseguinte, a unidade da Igreja é radicalmente negada. A unidade, a reconciliação, a comunhão no amor não mais são concebidas como um dom que recebemos de Cristo. É a classe histórica dos pobres que, mediante o combate, construirá a unidade. A luta de classes é o caminho desta unidade. A Eucaristia torna-se, deste modo, Eucaristia de classe. Nega-se também, ao mesmo tempo, a força triunfante do amor de Deus que nos é dado.

sábado, 3 de julho de 2010

Instrução Libertatis Nuntius sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação – 5

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VIII - SUBVERSÃO DO SENSO DA VERDADE E VIOLÊNCIA

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1. Esta concepção totalizante impõe assim a sua lógica e leva as "teologias da libertação" a aceitar um conjunto de posições incompatíveis com a visão cristã do homem. Com efeito, o núcleo ideológico, tomado do marxismo e que serve de ponto de referência, exerce a função de principio determinante. Este papel lhe é confiado em virtude da qualificação de científico, quer dizer, de necessariamente verdadeiro, que lhe é atribuída. Neste núcleo, podem-se distinguir diversos componentes.


2. Na lógica do pensamento marxista, a "análise" não é dissociável da práxis e da concepção da história à qual esta práxis está ligada. A análise é, pois, um instrumento de crítica e a crítica não passa de uma etapa do combate revolucionário. Este combate é o da classe do proletariado investido de sua missão histórica.


3. Em conseqüência, somente quem participa deste combate pode fazer uma análise correta.


4. A consciência verdadeira é, pois, uma consciência "partidarista". Pelo que se vê, é a própria concepção da verdade que aqui está em causa e que se encontra totalmente subvertida: não existe verdade - afirma-se - a não ser na e pela práxis "partidarista".


5. A práxis e a verdade que dela deriva são práxis e verdade partidaristas, porque a estrutura fundamental da história está marcada pela luta de classes. Existe, pois, uma necessidade objetiva de entrar na luta de classes (que é o reverso dialético da relação de exploração que se denuncia). A verdade é a verdade de classe não há verdade senão no combate da classe revolucionária.


6. A lei fundamental da história, que é a lei da luta de classes, implica que a sociedade esteja fundada sobre a violência. À violência que constitui a relação de dominação dos ricos sobre os pobres deverá responder a contra violência revolucionária, mediante a qual esta relação será invertida.


7. A luta de classes é, pois, apresentada como uma lei objetiva e necessária. Ao entrar no seu processo, do lado dos oprimidos, "faz-se" a verdade, age-se "cientificamente". Em conseqüência, a concepção da verdade vai de par com a afirmação da violência necessária e, por isso, com a do amoralismo político. Nesta perspectiva, a referência a exigências éticas, que prescrevam reformas estruturais e institucionais radicais e corajosas, perde totalmente o sentido.


8. A lei fundamental da luta de classes tem um caráter de globalidade e de universalidade. Ela se reflete em todos os domínios da existência, religiosos, éticos, culturais e institucionais. Em relação a esta lei, nenhum destes domínios é autônomo. Em cada um esta lei constitui o elemento determinante.


9. Quando se assumem estas teses de origem marxista é, em particular, a própria natureza da ética que é radicalmente questionada. De fato, o caráter transcendente da distinção entre o bem e o mal, princípio da moralidade, encontram-se implicitamente negado na ótica da luta de classes.

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IX - TRADUÇÃO "TEOLÓGICA" DESTE NÚCLEO IDEOLÓGICO

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1. As posições aqui expostas encontram-se às vezes enunciadas com todos os seus termos em alguns escritos de "teólogos da libertação". Em outros, elas se deduzem logicamente das premissas colocadas. Em outros ainda, elas são pressupostas em certas práticas litúrgicas (como por exemplo a "Eucaristia" transformada em celebração do povo em luta), embora quem participe destas práticas não esteja plenamente consciente disso. Estamos, pois, diante de um verdadeiro sistema, mesmo quando alguns hesitam em seguir a sua lógica até o fim. Como tal, este sistema é uma perversão da mensagem cristã, como esta foi confiada por Deus à Igreja. Esta mensagem se encontra, pois, posta em xeque, na sua globalidade, pelas "teologias da libertação".


2. Não é o fato das estratificações sociais, com as conexas desigualdades e injustiças, é a teoria da luta de classes como lei estrutural fundamental da história que é recebida por estas "teologias da libertação", na qualidade de princípio. A conclusão a que se chega é que a luta de classes, entendida deste modo, divide a própria Igreja e em função dela se devem julgar as realidades eclesiais. Pretende-se ainda que afirmar que o amor, na sua universalidade, é um meio capaz de vencer aquilo que constitui a lei estrutural primária da sociedade capitalista, seria manter, de má fé, uma ilusão falaz.


3. Dentro desta concepção, a luta de classes é o motor da história. A história torna-se assim uma noção central. Afirmar-se-á que Deus se fez história. Acrescentar-se-á que não existe senão uma única história, na qual já não é preciso distinguir entre história da salvação e história profana. Manter a distinção seria cair no "dualismo". Semelhantes afirmações refletem um imanentismo historicista. Tende-se, deste modo, a identificar o Reino de Deus e o seu advento com o movimento de libertação humana e a fazer da mesma história o sujeito de seu próprio desenvolvimento como processo da auto-redenção do homem por meio de luta de classes. Esta identificação está em oposição com a fé da Igreja, como foi relembrada pelo Concílio Vaticano II.


4. Nesta linha, alguns chegam até ao extremo de identificar o próprio Deus com a história e a definir a fé como "fidelidade à história", o que significa fidelidade comprometida com uma prática política, afinada com a concepção do devir da humanidade concebido no sentido de um messianismo puramente temporal.


5. Por conseguinte, a fé, a esperança e a caridade recebem um novo conteúdo: são "fidelidade à história", "confiança no futuro", "opção pelos pobres". É o mesmo que dizer que são negadas em sua realidade teologal.


6. Desta nova concepção deriva inevitavelmente uma politização radical das afirmações da fé e dos juízos teológicos. Já não se trata somente de chamar a atenção para as conseqüências e incidências políticas das verdades de fé que seriam respeitadas antes de tudo em seu valor transcendente. Toda e qualquer afirmação de fé ou de teologia se vê subordinada a um critério político, que, por sua vez, depende da teoria da luta de classes, como motor da história.


7. Apresenta-se, por conseguinte, o ingresso na luta de classes como uma exigência da própria caridade; denuncia-se como atitude desmobilizadora e contrária ao amor pelos pobres a vontade de amar, de saída, todo homem, qualquer que seja a classe a que pertença, e de ir ao seu encontro pelas vias não-violentas do diálogo e da persuasão. Mesmo afirmando que ele não pode ser objeto de ódio, afirma-se com a mesma força que, pelo fato de pertencer objetivamente ao mundo dos ricos, ele é, antes de tudo, um inimigo de classe a combater. Como conseqüência, a universalidade do amor ao próximo e a fraternidade transformam-se num princípio escatológico que terá valor somente para o "homem novo" que surgirá da revolução vitoriosa.


8. Quanto à Igreja, a tendência é de encará-la simplesmente como uma realidade dentro da história, sujeita ela também às leis que, segundo se pensa, governam o devir histórico na sua imanência. Esta redução esvazia a realidade específica da Igreja, dom da graça de Deus e mistério da fé. Contesta-se, igualmente, que a participação na mesma mesa eucarística de cristãos que, por acaso, pertençam a classes opostas, tenha ainda algum sentido.


9. Na sua significação positiva, a Igreja dos pobres indica a preferência, sem exclusivismo, dada aos pobres, segundo todas as formas de miséria humana, porque eles são os prediletos de Deus. A expressão significa ainda que a Igreja, como comunhão e como instituição, assim como os membros da mesma Igreja, tomam consciência, em nosso tempo, das exigências da pobreza evangélica.


10. Mas as "teologias da libertação", que têm o mérito de haver revalorizado os grandes textos dos profetas e do Evangelho acerca da defesa dos pobres, passam a fazer um amálgama pernicioso entre o pobre da Escritura e o proletariado de Marx. Perverte-se, deste modo, o sentido cristão do pobre e o combate pelos direitos dos pobres transforma-se em combate de classes na perspectiva ideológica da luta de classes. A Igreja dos pobres significa, então, Igreja classista, que tomou consciência das necessidades da luta revolucionária como etapa para a libertação e que celebra esta libertação na sua liturgia.


11. É necessário fazer uma observação análoga a respeito da expressão Igreja do povo. Do ponto de vista pastoral, pode-se entender com essa expressão os destinatários prioritários da evangelização, aqueles para os quais, em virtude de sua condição, se volta primeiro que tudo o amor pastoral da Igreja. É possível referir-se também à Igreja como "povo de Deus", ou seja, como o povo da Nova Aliança realizada em Cristo.


12. As "teologias da libertação", a que aqui nos referimos, porém, entendem por Igreja do povo a Igreja da luta libertadora organizada. O povo assim entendido chega mesmo a tornar-se, para alguns, objeto de fé.


13. A partir de semelhante concepção da Igreja do povo, elabora-se uma crítica das próprias estruturas da Igreja. Não se trata apenas de uma correção fraterna dirigida aos Pastores da Igreja, cujo comportamento não reflita o espírito evangélico de serviço e se apegue a sinais anacrônicos de autoridade que escandalizam os pobres. Trata-se, sim, de pôr em xeque a estrutura sacramental e hierárquica da Igreja, tal como a quis o próprio Senhor. São denunciados na Hierarquia e no Magistério os representantes objetivos da classe dominante, que é preciso combater. Teologicamente, esta Posição equivale a afirmar que o povo é a fonte dos ministérios e, portanto, pode dotar-se de ministros à sua escolha, de acordo com as necessidades de sua missão revolucionária histórica.