sábado, 31 de janeiro de 2009

Um ensinamento novo dado com autoridade - IV Domingo do Tempo Comum


Na Celebração de hoje, a Palavra de Deus nos apresenta Jesus ensinando e curando. Esses são alguns dos sinais da Missão do Senhor, que se inicia com o seu Batismo no rio Jordão (Cf. Evangelho da Missa do Batismo do Senhor: Mc 1,7-11).
Jesus, que é o Caminho, a Verdade e a Vida (Jo 14,6), ensina de um jeito novo. Seu ensinamento é diferente daquele dos escribas e mestres da lei. O Senhor ensina com autoridade. O ensinamento de Jesus nos conduz por um caminho de libertação, pois somente Ele tem palavras de vida eterna (Cf. Jo 6,68). Jesus não nos obriga. Ele ensina como aquele Servo do qual nos fala o profeta Isaías: “Eis o meu servo que eu sustento, o meu eleito, em quem tenho prazer. Pus sobre ele o meu espírito, ele trará o direito às nações. Ele não clamará, não levantará a voz, não fará ouvir a voz nas ruas; não quebrará a cana rachada, não apagará a chama bruxuleante, com fidelidade trará o direito. Não vacilará nem desacorçoará até que estabeleça o direito na terra; e as ilhas aguardem seu ensinamento” (Is 42,1-4).
A autoridade de Jesus vem de Deus. Por isso, até mesmo os espíritos impuros e as forças do mal O obedecem e O reconhecem como o Santo de Deus (Mc 1,24). A cura do homem endemoninhado que nos relata o Evangelho é uma prova disso. De fato, Jesus tem o poder de nos curar de todas as nossas enfermidades, de todas as nossas misérias humanas.
Finalmente, quem é esse Jesus de Nazaré??? A Celebração da Santa Missa de hoje nos convida a responder como São Pedro: Ele é o Cristo (Cf. Mc 8,29). Jesus não é simplesmente um homem que realiza milagres e faz o bem. Ele é, antes de tudo, o nosso Salvador, o nosso Libertador. É o Deus da nossa Salvação!!!

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Ser santo: viver o mandamento da caridade


Já na antiga aliança, o povo de Deus recebe como norma de vida a busca da santidade, da vida perfeita: “Sede santos, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo. Ama o teu próximo como a ti mesmo. Guardai todos os meus preceitos e todas as minhas leis e cumpri-os” (Lv 19, 2b.18b.37). O povo deve ser santo como o próprio Deus o é. Daqui já podemos concluir: a santidade não é opcional, não é para um grupo privilegiado dentro do povo de Deus.
Também podemos constatar que a santidade é algo concreto, é tecida, forjada no dia da nossa vida, na pequenez e na miudeza dos nossos dias, nos encontros e desencontros do hoje da nossa história pessoal. Ser santo não é fugir do mundo, mas, pelo contrário, é ir ao encontro do mundo. Por isso o mandamento do Senhor de sermos santos é seguido pelo mandamento do amor ao próximo e da observância da lei e dos preceitos.
Queremos ser santo? Vamos ao encontro do próximo. É somente ali que expressaremos de fato o quanto experimentamos de Deus na oração pessoal, na oração litúrgica e, sobretudo, no santo sacrifício da Missa. Não se trata aqui de amar a Deus no próximo. Mas, por amor a Deus, que faz cair a chuva sobre justos e injustos, amar o próximo. Quem assim age, cumpre a lei.
Mas será possível cumprir isso? Corremos o sério perigo de olhar para o Senhor e dizermos: “essas palavras são duras, quem poderá escutá-las?” (Jo 6,60). De fato, tal mandamento poderia se tornar um fardo não fosse a plenitude dos tempos, na qual Cristo veio levar à plenitude a lei, dando-nos o dom do Espírito Santo.
“O Espírito vem em socorro da nossa fraqueza” (Rm 8,26). Ele que foi derramado em nossos corações, no Batismo, tornando-nos, como nos diz S. Pedro, participantes da natureza divina (cf. 2Pd 1,4a) .
Agora sim é possível cumprir a lei e viver a santidade. O amor foi derramado em nossos corações, “e o amor é o vínculo da perfeição” (Cl 3,14).
É por isso que Jesus não mais vai falar em amar o próximo como a nós mesmos. Jesus sabe que a medida não pode ser somente nós mesmos, pois essa medida é insuficiente. O critério passa ser Ele mesmo: “amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13,34). E como Cristo amou? Dando a vida, derramando-a em favor dos outros. E é possível cumprirmos? Sim, pois, agora temos o seu Espírito em nós. Amar é fazer experiência de esvaziar-se de nós mesmos, para que o Espírito Santo plasme em nós a imagem de Cristo. E um dos frutos do Espírito em nós é a santidade.
Somente Deus é santo, é glorioso. Mas esse mesmo Deus quis, em Jesus, nos encher da sua glória, da sua santidade. Ele nos convida à santidade, que se expressa no mandamento da caridade.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Paulo: o Espírito nos nossos corações

A terceira catequese de Bento XVI sobre S. Paulo.

Também hoje, como nas duas catequeses precedentes, voltamos a São Paulo e ao seu pensamento. Estamos diante de um gigante não só a nível do apóstolo concreto, mas também da doutrina teológica, extraordinariamente profunda e estimulante. Depois de ter meditado na semana passada sobre o que Paulo escreveu acerca do lugar central que Jesus Cristo ocupa na nossa vida de fé, vemos hoje o que ele diz sobre o Espírito Santo e sobre a sua presença em nós, porque também aqui o Apóstolo tem algo muito importante para nos ensinar.
Conhecemos o que São Lucas nos diz do Espírito Santo nos Atos dos Apóstolos, descrevendo o evento do Pentecostes. O Espírito pentecostal traz consigo um vigoroso estímulo a assumir um compromisso da missão para testemunhar o Evangelho pelos caminhos do mundo. De fato, o Livro dos Atos narra uma série de missões realizadas pelos Apóstolos, primeiro na Samaria, depois ao longo da Palestina, e depois, em direção à Síria. São narradas sobretudo as três grandes viagens missionárias realizadas por Paulo, como já recordei num precedente encontro de quarta-feira. Mas São Paulo, nas suas Cartas fala-nos do Espírito também sob outra perspectiva.
Ele não se detém a ilustrar apenas a dimensão dinâmica e operativa da terceira Pessoa da Santíssima Trindade, mas analisa também a presença na vida do cristão, cuja identidade é marcada por ele. Em outras palavras, Paulo reflete sobre o Espírito expondo a sua influência não só no agir do cristão, mas também no seu ser. De fato, ele diz que o Espírito de Deus habita em nós (cf. Rm 8, 9; 1 Cor 3, 16) e que "Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho" (Gl 4, 6).
Portanto, para Paulo o Espírito conota-nos até às nossas profundezas pessoais mais íntimas. Em relação a isto, eis algumas das suas palavras de importante significado: "A lei do Espírito que dá a vida libertou-te, em Cristo Jesus, da lei do pecado e da morte... Vós não recebestes um Espírito que vos escravize e volte a encher-vos de medo; mas recebestes um Espírito que faz de vós filhos adotivos. É por Ele que clamamos: Abbá, ó Pai!" (Rm 8, 2.15), porque somos filhos, podemos chamar "Pai" a Deus. Portanto, vemos bem que o cristão, ainda antes de agir, já possui uma interioridade rica e fecunda, que lhe é concedida nos sacramentos do Batismo e da Confirmação, uma interioridade que o estabelece num relacionamento objetivo e original de filiação em relação a Deus.
Eis a nossa grande dignidade: a de não ser apenas imagem, mas filhos de Deus. Trata-se de um convite a viver esta nossa filiação, a estarmos cada vez mais conscientes de que somos filhos adotivos na grande família de Deus. É um convite a transformar este dom objetivo numa realidade subjetiva, determinante para o nosso pensar, para o nosso agir, para o nosso ser. Deus considera-nos seus filhos, tendo-nos elevado a uma tal dignidade, mesmo se não é igual, à do próprio Jesus, o único Filho em sentido pleno. Nele é-nos dada, ou restituída, a condição filial e a liberdade confiante em relação ao Pai.
Assim descobrimos que para o cristão o Espírito já não é apenas o "Espírito de Deus", como se diz normalmente no Antigo Testamento e se continua a repetir na linguagem cristã (cf. Gn 41, 38; Êx 31, 3; 1 Cor 2, 11.12; Fl 3, 3; etc.). E também não é apenas um "Espírito Santo" entendido em sentido genérico, segundo o modo de expressar-se do Antigo Testamento (cf. Is 63,10.11; Sl 51, 13), e do próprio Judaísmo nos seu escritos (Qunram, rabinismo).
De fato, pertence à especificidade da fé cristã a confissão de uma original partilha deste Espírito por parte do Senhor ressuscitado, o qual se tornou Ele mesmo "Espírito que dá vida" (1 Cor 15, 45). Precisamente por isso São Paulo fala diretamente do "Espírito de Cristo" (Rm 8, 9), do "Espírito do Filho" (Gl 4, 6) ou do "Espírito de Jesus Cristo" (Fl 1, 19). É como se quisesse dizer que não só Deus Pai é visível no Filho (cf. Jo 14, 9), mas que também o Espírito de Deus se expressa na vida e nas ações do Senhor crucificado e ressuscitado!
Paulo ensina-nos também outra coisa importante: ele diz que não existe verdadeira oração sem a presença do Espírito em nós. De fato, escreve: "O Espírito vem em auxílio da nossa fraqueza, pois não sabemos o que havemos de pedir como é verdade que não sabemos como falar com Deus!; mas o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inefáveis. E aquele que examina os corações conhece as intenções do Espírito, porque é de acordo com Deus que o Espírito intercede pelos santos" (Rm 8, 26-27). É como dizer que o Espírito Santo, isto é, o Espírito do Pai e do Filho, é como a alma da nossa alma, a parte mais secreta do nosso ser, de onde se eleva incessantemente a Deus um dístico de oração, da qual nem sequer podemos esclarecer as palavras.
De fato, o Espírito sempre ativo em nós, supre às nossas carências e oferece ao Pai a nossa adoração, juntamente com as nossas aspirações mais profundas. Naturalmente isto exige um nível de maior comunhão vital com o Espírito. É um convite a ser cada vez mais sensíveis, mais atentos a esta presença do Espírito em nós, a transformá-la em oração, a ouvir esta presença e a aprender assim a rezar, a falar com o Pai como filhos no Espírito Santo.
Há também outro aspecto típico do Espírito que nos foi ensinado por São Paulo: é a sua ligação com o amor. De fato, São Paulo escreve: "A esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado" (Rm 5, 5). Na minha Carta encíclica "Deus caritas est" citei uma frase muito eloqüente de Santo Agostinho: "Se vês a caridade, vês a Trindade" (n. 19), e prossegui explicando: "O Espírito é aquela força que harmoniza seus corações [dos crentes] com o coração de Cristo e leva-os a amar os irmãos como Ele os amou" (ibid.). O Espírito insere-nos no próprio ritmo da vida divina, que é vida de amor, fazendo-nos pessoalmente partícipes dos relacionamentos existentes entre o Pai e o Filho. Não é sem significado que Paulo, quando elenca as várias componentes da frutificação do Espírito, coloque em primeiro lugar o amor: "O fruto do Espírito é: amor, alegria, paz, etc." (cf. Gl 5, 22).
E dado que por definição o amor une, isto significa antes de tudo que o Espírito é criador de comunhão no âmbito da comunidade cristã, como dizemos no início da Santa Missa com uma expressão paulina: "... a comunhão do Espírito Santo [ou seja, a que é realizada por ele] esteja com todos vós!" (2 Cor 13, 13). Mas, por outro lado, é também verdade que o Espírito nos estimula a estabelecer relacionamentos de caridade com todos os homens. Dado que, quando amamos damos espaço ao Espírito, permitimos que se expresse em plenitude. Compreende-se assim por que Paulo coloca na mesma página da Carta aos Romanos as duas exortações: "deixai-vos inflamar pelo Espírito" e "não pagueis a ninguém o mal com o mal" (Rm 12, 11.17). Por fim, o Espírito segundo São Paulo é um penhor generoso que nos é dado pelo próprio Deus como antecipação e ao mesmo tempo como garantia da nossa herança futura (cf. 2 Cor 1, 22; 5, 5 Ef 1, 13-14). Aprendemos assim de Paulo que a ação do Espírito orienta a nossa vida para os grandes valores do amor, da alegria, da comunhão e da esperança. Compete a nós fazer deles experiência quotidiana acompanhadas pelas sugestões interiores do Espírito, ajudados no discernimento pela orientação iluminadora do Apóstolo.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Heteronomia: verdadeira autonomia humana


Nesses últimos anos tem se discutido bastante temas ligados à vida humana: aborto, eutanásia, utilização de células-tronco embrionárias em pesquisas científicas. Desse debate emergem, frequentemente, “vozes” que clamam pela direito à autonomia do ser humano, ou seja, sua liberdade em optar pelo que lhe parecer melhor. Abortar? Decidir sobre a própria morte? São questões de cunho privado, não estando sob orientações éticas e religiosas coletivas.
De fato, o princípio da autonomia é um bem inalienável ao ser humano. A Bioética - ética da vida - , campo do saber que busca refletir e dialogar tendo como finalidade a preservação da vida humana e de sua dignidade, é norteada por três princípios. O primeiro é o da beneficência, disposição do ser humano para o bem e para agir bem em relação ao próximo. Em seguida, tem-se a justiça, consistindo na equidade no acesso aquilo considerado um bem. E o terceiro princípio é justamente o da autonomia, a capacidade do ser humano de decidir o que é bom ou o que é seu bem-estar.
Não se discute aqui a autonomia do ser humano. É ele e unicamente ele aquele ser capaz de orientar a sua vida, única e irrepetível. No entanto, a consideração da vida como uma propriedade absoluta, não permite qualquer reflexão em Bioética. Aliás, a Bioética torna-se desnecesssária. Afinal, se o homem é "dono da sua vida", suas decisões particulares não interessam a ninguém.
Por outro lado, se a vida é compreendida como um dom, a autonomia humana deixa de ser tão somente capacidade de decisão. Quando a vida é reconhecida como dom imerecido, celebrada como gratuidade, então ela em si mesma somente pode ser vivida em relação a um outro, a um transcendente. Se é dom, é recebida; e se é recebida, é acolhida de algo ou de alguém.
Nesse sentido, a verdadeira autonomia é, na verdade, heteronomia. O homem é capaz de decidir, quando é capaz de dialogar. E para os cristãos, o homem é livre para decidir quando o faz diante de Deus, em comunhão com Ele, a partir do paradigma ofertado por Ele mesmo: Jesus Cristo. Por isso é heteronomia, uma autonomia em relação ao outro.
Não precisa ser cristão para reconhecer a heteronomia humana. Basta ser um homem de boa vontade, de consciência livre de ideologias, para perceber que a vida humana escapa ao domínio humano. Pode-se transformar a vida, adiar a morte, mas não se consegue fazer surgir a vida, simplesmente porque ela sempre vem de fora.
Esse é o grande desafio para a Igreja nesse século. Os meios acadêmicos e a imprensa criticam as posições católicas porque ambos simplesmente partem de princípios opostos aos valores cristãos. A sociedade laicista ocidental é relativista, individualista e há muito deu de ombros para qualquer expressão religiosa institucionalizada. Para tal sociedade, definir o que é o bem e o que é o mal é autonomia. A Igreja, por outro lado, contempla a vida na sua sacralidade, como um presente, com o qual se alegra, e que somente é revelada à luz Daquele que presenteou.
Diante do grande regalo de Deus, a vida, cabe aos cristãos dizerem: “Senhor, que é o homem, para dele assim vos lembrardes e o tratardes com tanto carinho? Pouco abaixo de Deus o fizeste coroando-o de glória e esplendor.” (Sl 8, 5-6a).

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

A Existência e a Presença do Espírito Santo


Trecho de uma homilia sobre Pentecostes de São João Crisóstomo


Onde estão os blasfemadores do Espírito? De fato, se ele não perdoa os pecados, é inútil recebê-lo no batismo; se, ao contrário, ele os perdoa, é inútil que os hereges lhe dirijam blasfêmias. Se o Espírito Santo não existisse, não poderíamos dizer que Jesus é Nosso Senhor: “Porque ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, a não ser pelo Espírito Santo” (1Cor 12,3). Se o Espírito Santo não existisse, não poderíamos orar a Deus, nós fiéis; de fato, dizemos: “Pai nosso que estais no céu” (Mt 6,9). Ora, assim como não poderíamos chamar de Nosso Senhor, igualmente não poderíamos chamar a Deus nosso pai. Quem mostra isso? O Apóstolo, ao dizer: “porque vós sois filhos, Deus enviou aos vossos corações o Espírito do seu filho que clama: Abba, meu Pai” (Gl 4,6). Por isso, quando invocais o Pai, lembrai-vos de que é necessário que o Espírito tenha tocado a vossa alma, para que sejais dignos de chamar a Deus com esse nome. Se o Espírito não existisse, os discursos sobre a sabedoria e a ciência não existiriam na Igreja: “Porque o Espírito concedeu a um falar com sabedoria; a outro, falar com ciência” (1Cor 12,8). Se o Espírito Santo não existisse, não haveria na Igreja nem pastores, nem doutores, pois é o Espírito que os faz, conforme o que diz Paulo: “Sobre o qual (rebanho) o Espírito Santo vos estabeleceu bispos e pastores” (At 20,28). Notais que isso se faz também pela ação do Espírito? Se o Espírito Santo não tivesse presente naquele que é nosso pai e doutor comum, mesmo quando ele já tenha subido a esta tribuna santa, mesmo quando tenha concedido a vós todos paz, vós não lhe teríeis respondido numa única voz: “E com o vosso espírito”; isso porque não só quando ele sobe ao altar ou converse convosco, ou reze por vós, vós fazeis ouvir essa frase, mas também quando ele está atrás dessa mesa santa, quando ele está exatamente para oferecer esse sacrifício tremendo, é isso que sabem os iniciados, ele não toca as oferendas antes que vós tenhais respondido: “E com o vosso espírito”, essa mesma resposta lembrando-vos de que aquele que está aí não faz nada por ele mesmo, que os dons esperados não são de nenhum modo obras humanas; que é a graça presente do Espírito, que desceu sobre todos, a única a realizar esse sacrifício místico. Sem dúvida, um homem está aí presente, mas é Deus quem age por meio dele. Portanto, não vos apegueis ao que aparece aos vossos olhos, mas pensai na graça invisível. Em todas as coisas que se realizam no santuário, não há nada que venha do homem. Se o Espírito não estivesse presente, a Igreja não formaria um todo bem consistente: a consistência da Igreja manifesta a presença do Espírito.

A Missa - Plenitude da Salvação - II

“Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: ‘Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isto em memória de mim.’ Do mesmo modo, após a ceia, também tomou o cálice, dizendo: fazei-o em memória de mim’. Todas as vezes, pois, que comeis desse pão e bebeis deste cálice, anunciais a morte do Senhor até que Ele venha” (1Cor 11,23-27). O gesto de Jesus, na véspera de sua paixão, de entregar o Seu Corpo e Seu sangue por aqueles que Ele amava até o extremo (cf. Jo 12,1), é nada menos que a antecipação da entrega de seu corpo na Cruz. “O sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são um único sacrifício” nos ensina o Servo de Deus João Paulo II na encíclica Ecclesia de Eucharistia. A diferença entre os dois está somente no modo como é oferecido: de um modo incruento na Eucaristia, e de um modo cruento na cruz. No entanto, são um único e mesmo sacrifício.
Mas podemos nos perguntar: porque, então, a Igreja repete a Sacrifício Eucarístico todos os dias, em todas as partes do mundo e durante esses dois mil anos, se ele é único e irrepetível? Na verdade a Igreja não repete o Sacrifício de Cristo; apenas cumpre a ordem do Senhor: “fazei isto em memória de mim”. Esse termo “memória” que é expressão das palavras grega anamnésis e hebraica zikaron, significa não a simples lembrança de um fato ocorrido no passado, mas a entrada daquelas pessoas que celebram no mistério celebrado: é a “presentificação” do fato histórico e salvífico do Sacrifício de Cristo. É a maneira pela qual nós e todas as pessoas em todas as épocas, passada e futura, adentramos no mistério de Cristo e adquirimos, por Ele, a nossa salvação. Isso é obra do Espírito Santo.
Na Missa estamos todos “reunidos no amor de Cristo”, e o amor de Cristo é o Espírito Santo. E, se amor de Deus, o Espírito Santo, perpassa toda a ação sagrada da Missa, então podemos dizer que na Missa entramos no mistério de Deus, entramos em Deus: e Deus é Eterno, intemporal; dessa forma, na Missa estamos dentro da Eternidade, participamos já das coisas celestes e estando ali, temos diante dos olhos o único e eterno Sacrifício oferecido por nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, que é ao mesmo tempo Sacerdote, Vítima e Altar. Meditar acerca desta realidade deve encher-nos de santo temor e tremor. E, diante do Sacrifício da Missa, a nossa atitude deve ser conforme o ensinamento de São Leonardo de Porto Maurício, ardoroso apóstolo da Santa Missa: “Eis o meio mais adequado para assistir com fruto a Santa Missa: consiste em irdes à igreja como se fôsseis ao Calvário, e de vos comportardes diante do altar como o faríeis diante do Trono de Deus, em companhia dos santos anjos. Vede, por conseguinte, que modéstia, que respeito, que recolhimento são necessários para receber o fruto e as graças que Deus costuma conceder àqueles que honram, com sua piedosa atitude, mistérios tão santos” (O Tesouro Oculto).

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Ação do Espírito Santo e índole comunitária da oração

Apresentamos, finalmente, a última parte de três meditações sobre a oração, retiradas da Instrução Geral sobre a Liturgia das Horas, nn. 8-9.

O Espírito Santo, que está em Cristo (cf. Lc 10,21, quando Jesus “exultou no Espírito Santo, e exclamou: ‘Eu te dou graças, Pai’”), em toda a Igreja e em cada um dos batizados, é quem realiza a unidade da Igreja orante. O mesmo “Espírito vem em socorro de nossa fraqueza” e “intercede em nosso favor com gemidos inefáveis” (Rm 8,26). Com o Espírito do Filho, ele infunde em nós “o espírito de adoção filial no qual clamamos: Abba, Pai” (cf. Rm 8,15; Gl 4,6; 1Cor 12,3; Ef 5,18; Jd 20). Por conseguinte, não pode haver oração cristã sem a ação do Espírito Santo, que unifica a Igreja inteira, levando-a pelo Filho ao Pai.
O exemplo e o preceito do Senhor e dos Apóstolos de orar sempre e com insistência não devem ser considerados como regra meramente legal, mas derivam da essência íntima da própria Igreja, que é comunidade e deve expressar seu caráter comunitário também ao orar. Por isso, nos Atos dos Apóstolos, quando pela primeira vez se fala da comunidade dos fiéis, esta aparece reunida em atitude de oração, “junto com algumas mulheres, entre as quais Maria, mãe de Jesus e com os irmãos de Jesus” (At 1,14). “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma” (At 4,32). Sua unanimidade se apoiava na palavra de Deus, na comunhão fraterna, na oração e na Eucaristia (cf. At 2,42).
Mesmo a oração no quarto, a portas fechadas (cf. Mt 6,6), sempre necessária e recomendável, os membros da Igreja a fazem por Cristo no Espírito Santo. Mas a oração da comunidade tem dignidade especial, já que o próprio Cristo disse: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou ali, no meio deles” (Mt 18,20).

domingo, 25 de janeiro de 2009

O tempo já se completou - III Domingo do Tempo Comum


O início do ministério público de Jesus é marcado por esse anúncio: “o tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo!” (Mc 1,15a). Com a vinda, com a manifestação do Verbo de Deus em nossa carne, os últimos tempos chegaram. A plenitude dos tempos já é uma realidade.
S. João nos diz no prólogo de seu evangelho que a graça e a verdade nos vieram por meio de Jesus Cristo (cf. Jo 1,17). Pois bem. Esse tempo completado é o tempo favorável para acolhermos a graça e a verdade e não deixá-las passar em vão (2Cor 6,1s). Em Jesus, Deus nos dá todos os bens necessários para a nossa salvação e santificação (cf. Jo 1,16).
No entanto, o anúncio do Reino é completado com uma exortação: “convertei-vos e crede no evangelho” (Mc 1,15b). Somente pode acolher a graça de Deus ofertada em Jesus aquele que se converte à Boa-Nova do Evangelho. Converter-se é comprometer-se com projeto de Jesus, compromisso gerador de um modo novo de viver e de ver a vida.
Essa atitude é exemplificada no texto da profecia de Jonas. Os ninivitas, diante do anúncio da destruição de sua cidade, acreditam em Deus, voltando-se a Ele (cf. Jn 3,5). Converter-se é voltar-se para Deus com todo o nosso ser.
Concretamente, viver segundo a proposta do evangelho é viver nesse mundo, na certeza de que sua figura passa (cf. 1Cor 7,31). Nada diante do senhorio de Cristo é absoluto. Tudo passa a ser relativo a Ele. Nossos projetos, nossos sentimentos, a ética, tudo deve estar em relação a Ele. Pois tudo passa. Somente permanecerão as coisas que encontram em Nele a sua consistência.
É por isso que Jesus diz que o Reino de Deus está próximo. O Reino acontece todas as vezes que acolhemos o evangelho, transformando nossa maneira de pensar e agir. O tempo está abreviado, convertamo-nos!

V - A Amizade entre Homens


A amizade entre homens sempre foi exaltada e louvada pelos sábios de todos os tempos. Os grandes homens da história da humanidade e os grandes mestres do pensamento humano sempre tiveram outros homens como amigos. Gregos e latinos viam na amizade entre homens o caminho para uma vida virtuosa e feliz.
A Antiguidade é repleta de amizades heróicas entre homens, amizades que se tornaram célebres pelo exemplo de amor e fidelidade ao amigo: na Ilíada, Homero, poeta épico grego, escreveu versos belíssimos sobre a amizade de Aquiles e Pátroclo; na Eneida, Virgílio, o maior poeta épico latino, escreveu sobre a amizade de Niso e Euríalo; no Da Amizade, Cícero recorda a incrível amizade de Orestes e Pílades; na sua obra Odes, Horácio, poeta latino, chama seu amigo Virgílio de "metade da minha alma". A Bíblia, por sua vez, apresenta a comovente história de Davi e Jônatas como autêntico exemplo de amizade. A lista dos nomes é infinita...
Outro grande exemplo de amizade entre homens surge na Idade Moderna: Goethe e Schiller. O primeiro era tranqüilo, sereno, clássico, solene. Gostava da calma da natureza. O segundo era fisicamente mais fraco. Tinha um olhar mais vivo. Era exaltado. Gostava de uma conversa agitada. Era romântico, barroco. Eles eram diferentes em muitos aspectos, mas o amor aos homens do seu tempo, o patriotismo e a paixão pela poesia eram coisas que os dois possuíam em comum. Quando Schiller morreu, Goethe confessou abatido: "Perdi a metade de minha existência". A existência de um estava tão envolvida na existência do outro que a morte do amigo significava a perda de metade da vida.
Um dos mais celebrados escritores contemporâneos, Antoine de Saint-Exupéry conhecia muito bem a alma humana. Foi um homem que viveu profundamente a dimensão da amizade em sua vida. Na amizade com outro homem, Exupéry encontrava aceitação, pureza, fortaleza, segurança. Testemunhou isso numa belíssima confissão de amizade a seu amigo Léon Werth, para quem também dedicou o seu excelente livro O Pequeno Príncipe. Ele escreveu: "Por isso, meu amigo, preciso tanto de sua amizade. Tenho sede de um companheiro que, para além das questões controversas da razão, vê em mim o peregrino desse fogo... A você posso ir sem necessidade de vestir uniforme ou recitar uma sura do corão; não preciso renunciar a nenhum pedaço de meu lar interior. Quando estou perto de você não preciso me desculpar, não preciso me defender, não preciso provar nada... Para além de minhas palavras desajeitadas, para além dos julgamentos que podem levar-me ao erro, você apenas enxerga em mim a pessoa... Eu, que como todos os outros, sinto a necessidade de ser reconhecido, sinto-me puro em você e vou até você. Preciso ir até onde sou puro... Meu amigo, preciso de você como de uma altura onde se respira outra coisa".
A amizade é vivida numa contínua partilha daquilo que se é. Ao homem amigo, revelam-se segredos, revela-se o verdadeiro eu. No diálogo, percebe-se que existem problemas e dificuldades que são comuns. A amizade possui o poder de dividir a tristeza e a dor pela metade. Os amigos sofrem juntos. No seu amigo, o homem encontra aquele porto seguro que tanto necessita. Amizade também é disponibilidade, apoio, ajuda. O amigo é alguém em quem se deposita confiança. Na amizade, encontra-se uma misteriosa força para se refazer, para recomeçar. Friedrich Nietzsche, polêmico filósofo alemão, fez muito bem essa experiência de se restituir pela amizade. Ele escreveu a seu amigo Rohde: "Quanto aos meus auto- sentimentos tudo está fraco e deplorável e você precisa sempre de novo garantir-me comigo mesmo".
Um homem, seja ele solteiro ou casado, precisa da amizade com outros homens. Namoro casamento não substituem a amizade. São totalmente diferentes. A amizade jamais representa perigo para a vida e intimidade do casal. Antes, fortalece e enriquece tais relacionamentos. Os amigos contribuem para que tanto o namoro quanto o casamento sejam vividos com liberdade e profundidade. Vale a observação feita por Anselm Grün no seu livro Eu lhe Desejo um Amigo: "A amizade com outros homens enriquece o amor entre homem e mulher, em vez de ameaçá-lo. Ela alivia tanto o homem quanto mulher de superexpectativas. A mulher não consegue satisfazer todas as expectativas do homem e vice-versa. Ambos precisam de outros relacionamentos para que o relacionamento entre os dois encontre a medida certa". Além disso, o homem encontra na amizade com outros homens a sua própria identidade de homem, fortalece sua masculinidade.
Por fim, a amizade entre homens nasce a partir de uma identificação. Um vê no outro algo que também possui e faz parte de sua personalidade. A amizade com outro homem é fundamental para o um desenvolvimento humano, afetivo, intelectual e espiritual. Os homens precisam de amigos homens para caminhar juntos no dia-a-dia da tão cansada existência, para caminhar juntos pelos longos caminhos da vida. O homem precisa de um amigo homem para ser mais homem e humano.

sábado, 24 de janeiro de 2009

Paulo: a centralidade de Jesus Cristo


Eis a segunda catequese do papa Bento XVI sobre o Apóstolo São Paulo.

Na catequese precedente, há quinze dias, procurei traçar os aspectos essenciais da biografia do apóstolo Paulo. Vimos como o encontro com Cristo pelo caminho de Damasco revolucionou literalmente a sua vida. Cristo tornou-se a sua razão de ser e o motivo profundo de todo o seu trabalho apostólico. Nas suas cartas, depois do nome de Deus, que aparece mais de 500 vezes, o nome que é mencionado com mais freqüência é o de Cristo (380 vezes). Por conseguinte, é importante que nos apercebamos de quanto Jesus Cristo possa incidir na vida de um homem e, portanto, também na nossa própria vida. Na realidade, Jesus Cristo é o ápice da história salvífica e, desta forma, o verdadeiro ponto discriminante também no diálogo com as outras religiões.
Olhando para Paulo, poderíamos formular assim a pergunta fundamental: como acontece o encontro de um ser humano com Cristo? E em que consiste a relação que dele deriva? A resposta de Paulo pode ser compreendida em dois momentos. Em primeiro lugar, Paulo ajuda-nos a compreender o valor absolutamente fundante e insubstituível da fé. Eis quanto escreve na Carta aos Romanos: "Pois estamos convencidos de que é pela fé que o homem é justificado, independentemente das obras da lei" (3,28). E também na Carta aos Gálatas: "O homem não é justificado pelas obras da Lei, mas unicamente pela fé em Jesus Cristo; por isso, também nós acreditamos em Cristo Jesus para sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da Lei; porque pelas obras da Lei nenhuma criatura será justificada" (2,16). "Ser justificados" significa ser tornados justos, isto é, ser acolhidos pela justiça misericordiosa de Deus, e entrar em comunhão com Ele, e por conseguinte poder estabelecer uma relação muito mais autêntica com todos os nossos irmãos: e isto com base num perdão total dos nossos pecados. Pois bem, Paulo diz com muita clareza que esta condição de vida não depende das nossas eventuais boas obras, mas de uma mera graça de Deus: "Sem o merecerem, são justificados pela sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus" (Rm 3,24).
Com estas palavras São Paulo expressa o conteúdo fundamental da sua conversão, o novo rumo da sua vida que resultou do seu encontro com Cristo ressuscitado. Paulo, antes da conversão, não tinha sido um homem afastado de Deus e da sua Lei. Ao contrário, era um observante, com uma observância fiel até ao fanatismo. Mas à luz do encontro com Cristo compreendeu que com isso tinha procurado edificar-se a si mesmo, à sua própria justiça, e que com toda essa justiça tinha vivido para si mesmo. Compreendeu que era absolutamente necessária uma nova orientação da sua vida. E encontramos expressa nas suas palavras esta nova orientação: "E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim" (Gl 2, 20).
Por conseguinte, Paulo já não vive para si, para a sua própria justiça. Vive de Cristo e com Cristo: entregando-se a si mesmo, não mais procurando e construindo-se a si mesmo. Esta é a nova justiça, a nova orientação que o Senhor nos deu, que a fé nos deu. Diante da cruz de Cristo, expressão extrema da sua autodoação, não há ninguém que possa vangloriar-se a si, à própria justiça feita por si e para si! Noutra carta Paulo, fazendo eco a Jeremias, expressa este pensamento escrevendo: "Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor" (1 Cor 1, 31 = Jr 9, 22s); ou: "Quanto a mim, porém, de nada me quero gloriar, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo" (Gl 6, 14).
Refletindo sobre o significado de justificação não pelas obras mas pela fé, chegamos ao segundo aspecto que define a identidade cristã descrita por São Paulo na própria vida. Identidade cristã que se compõe precisamente por dois elementos: este não procurar-se por si, mas receber-se de Cristo e doar-se com Cristo, e desta forma participar pessoalmente na vicissitude do próprio Cristo, até se imergir n'Ele e partilhar quer a sua morte quer a sua vida. É quanto escreve Paulo na Carta aos Romanos: "fomos batizados na sua morte... fomos sepultados com Ele na morte... estamos integrados n'Ele... Assim vós também: considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus" (Rm 6, 3.4.5.11). Precisamente esta última expressão é sintomática: para Paulo, de fato, não é suficiente dizer que os cristãos são batizados ou crentes; para ele é de igual modo importante dizer que eles são "em Cristo Jesus" (cf. também Rm 8, 1.2.39; 12, 5; 16, 3.7.10; 1 Cor 1, 2.3, etc.). Outras vezes ele inverte as palavras e escreve que "Cristo está em nós/vós" (Rm 8, 10; 2 Cor 13, 5) ou "em mim" (Gl 2, 20). Esta mútua compenetração entre Cristo e o cristão, característica do ensinamento de Paulo, completa o seu discurso sobre a fé. A fé, de fato, mesmo unindo-nos intimamente a Cristo, realça a distinção entre nós e Ele. Mas, segundo Paulo, a vida do cristão tem também um componente que poderíamos dizer "místico", porque obriga a uma nossa identificação com Cristo e de Cristo conosco. Neste sentido, o Apóstolo chega até a qualificar os nossos sofrimentos como os "sofrimentos de Cristo em nós" (2 Cor 1, 5), de modo que "trazemos sempre no nosso corpo a morte de Jesus, para que também a vida de Jesus seja manifesta no nosso corpo" (2 Cor 4, 10).
Devemos inserir tudo isto na nossa vida quotidiana seguindo o exemplo de Paulo que viveu sempre com este grande alcance espiritual. Por um lado, a fé deve manter-nos numa atitude constante de humildade perante Deus, aliás, de adoração e de louvor em relação a ele. De fato, o que nós somos como cristãos devemo-lo unicamente a Ele e à sua graça. Dado que nada nem ninguém pode ocupar o seu lugar, é preciso portanto que não tributemos a nada nem a ninguém a homenagem que a Ele prestamos. Ídolo algum deve contaminar o nosso universo espiritual, porque neste caso, em vez de gozar da liberdade adquirida cairíamos de novo numa espécie de escravidão humilhante. Por outro lado, a nossa pertença radical a Cristo e o fato que "existimos n'Ele" deve infundir-nos uma atitude de total confiança e de imensa alegria. Para concluir, de facto, devemos exclamar com São Paulo:"Se Deus está por nós, quem pode estar contra nós?" (Rm 8, 31). E a resposta é que ninguém "poderá separar-nos do amor de Deus que está em Cristo Jesus, Senhor nosso" (Rm 8, 39). Por conseguinte, a nossa vida cristã baseia-se na rocha mais estável e segura que se possa imaginar. E dela tiramos toda a nossa energia, como escreve precisamente o Apóstolo: "De tudo sou capaz naquele que me dá força" (Fl 4, 13).
Enfrentemos portanto a nossa existência, com as suas alegrias e com os seus sofrimentos, amparados por estes grandes sentimentos que Paulo nos oferece. Fazendo deles experiência poderemos compreender como é verdadeiro o que o próprio Apóstolo escreve: "sei em quem acredito e estou persuadido de que Ele tem poder para guardar, até aquele dia, o bem que me foi confiado" (2 Tm 1, 12) do nosso encontro com Cristo Juiz, Salvador do mundo e nosso.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A Missa - Plenitude da Salvação - I

Caríssimos, apresentamos, em duas partes, uma meditação sobre a Missa, lugar onde se realiza plenamente a nossa salvação.
A Missa é a plenitude da salvação. Esta afirmação coloca diante de nós, antes de tudo, que temos necessidade de salvação: se formos deixados entregues às nossas próprias forças nós nos perdemos, deixamo-nos arrastar “para baixo”. Isto é efeito do pecado que se instalou no gênero humano desde os nossos primeiros pais; e o pecado é o afastar-se, o estar distante de Deus pela desobediência, pela livre escolha do mal. Mas o nosso coração tem uma sede insaciável de plenitude, de felicidade, daquilo que é bom e belo, em suma, sede de Deus, conforme nos diz Santo Agostinho: “nos fizestes para vós e o nosso coração não descansa enquanto não repousar em vós” (Confissões). E, no entanto, o homem, apesar de todo esse anseio, não é capaz de chegar por suas próprias forças a essa comunhão com Deus; só Deus mesmo pode fazê-lo. O homem tem, portanto, necessidade de salvação, necessidade de um Salvador.
Ora, Deus fez-nos incapazes de viver sem Ele – sim, porque uma vida sem Ele na verdade não é vida. E previu, desde a eternidade, que deveria enviar seu Filho para nos salvar, mesmo que o homem não tivesse caído no pecado; com a queda, esta salvação se torna ainda mais premente. E durante toda a história da salvação Ele prometeu esta salvação à humanidade, a começar de Adão, passando por Noé, até nossos pais Abraão, Isaac e Jacó e por meio de Moisés e todos os profetas. Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus desceu do céu para nos salvar na Pessoa de seu Filho Unigênito: nosso Senhor Jesus Cristo. Toda a sua vida entre nós, desde sua miraculosa concepção, seu nascimento, sua vida simples junto com Maria e José em Nazaré, sua pregação, seus cansaços, suas curas e, sobretudo sua Paixão, Morte, Ressurreição e Ascensão aos céus, tudo isso foi para nós causa de salvação.
A salvação não pode ser outra coisa senão o movimento de aproximação do homem para Deus. E, como vimos, o homem, por causa do pecado original e da concupiscência que insiste em o “puxar para baixo”, necessita voltar para Deus. Assim, a salvação consiste em reconciliar o homem com Deus. Esta reconciliação é feita através do sacrifício. No sacrifício, o homem arrependido implora o perdão de Deus e realiza um gesto de desagravo por seu pecado: no Antigo Testamento e nas religiões antigas, esse gesto era geralmente a imolação de um animal sobre o altar de Deus: o sangue, que era sinal de vida e aliança entre as pessoas, servia de sinal de aliança entre Deus e os homens. Todo o culto da Antiga Aliança girava em torno dos sacrifícios oferecidos pelos sacerdotes no Templo. Também simbolizava a vida em troca da vida: a vida do animal em troca da vida do homem.
No entanto, os sacrifícios da Antiga Aliança eram provisórios e ineficazes. É o que diz o autor da Carta aos Hebreus: “(...) A Lei (de Moisés) é totalmente incapaz, apesar dos mesmos sacrifícios sempre repetidos, oferecidos sem fim a cada ano, de levar à perfeição aqueles que se aproximam de Deus. Se não fosse assim, não se teria deixado de oferecê-los, se os que prestam culto, uma vez por todas purificados, já não tivessem nenhuma consciência de seus pecados? Mas, ao contrário, é por meio destes sacrifícios que, anualmente, se renova a lembrança dos pecados. Além do mais, é impossível que o sangue de touros e bodes elimine os pecados” (Hb 10,1-4). E arremata: “(...) somos santificados pela oferenda do corpo de Jesus Cristo, realizada de uma vez por todas” (Hb 10,10). Eis aqui: é o sacrifício de Cristo na cruz, a oblação de seu Corpo e seu sangue, que, uma vez por todas, é capaz de nos dar a salvação em sua plenitude, ou seja, é capaz de, com eficácia máxima, eliminar as manchas dos nossos pecados – somos lavados pelo sangue do Cordeiro (cf. Ap 7,14) – e nos reconciliar definitivamente com o Pai. Nosso Salvador, de fato, “entrou uma vez por todas no Santuário, não com sangue de bodes e de novilhos, mas com o próprio sangue, obtendo redenção eterna” (Hb 9,13).

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

A invasão de uma presença


A revelação de Deus presente nas Sagradas Escrituras recorre a imagens para que compreendamos Aquele que se desvela para nós. Assim, por exemplo, temos que Deus é um rochedo, Jesus é o pão da vida, o Espírito é fogo. No entanto, as imagens bíblicas de Deus não dizem quem Ele é em si mesmo, mas quem Ele é para nós. O ser de Deus permanece mistério. Deus é rochedo porque nos sustenta, Jesus é o pão da vida porque se faz alimento do caminheiro através da Eucaristia, e o Espírito é fogo porque é um dinamismo renovador.
É interessante observar que as imagens bíblicas nos dizem algo de uma ação direta do Pai e do Filho em nossa vida. As imagens do Espírito, por outro lado, são elementos da natureza como o ar, água, fogo. Tais elementos não manifestam uma ação direta de Deus na vida do crente, mas apontam, nas palavras de Yves Congar, a invasão de uma presença.
Mais do que manifestar Deus faz para nós, o Espírito manifesta Deus em nós. Os elementos da natureza não podem ser controlados com as mãos, eles nos escapam. Sua presença se dá pelo envolvimento de tal elemento na coisa envolvida, de tal maneira que o elemento e a coisa se tornam uma só realidade: a terra molhada de água, o ferro depurado pelo fogo.
Assim é o Espírito Santo no cristão. É uma presença que não se vê, não se toca, mas se sente nos seus efeitos. O Espírito torna presente em nós a imagem de Cristo. É por isso que somos cristãos. Comumente falamos do esvaziamento do filho de Deus ao assumir a nossa condição humana, e esquecemos-nos do esvaziamento do Espírito, cuja ação, discreta, aparentemente impessoal, tem por finalidade plasmar um Outro: Jesus Cristo em nós.
Sua presença em nós sustenta a nossa fraqueza, ora em nós (cf. Rm 8,26), nos faz proclamar que Jesus é o Senhor. É a presença do Espírito que gera em nós a vida do Santo. Se somente Deus é Santo, nós o podemos ser, porque Seu Espírito nos invade de santidade.
Mas o Espírito não é somente presença de Deus, especificamente do Filho Jesus em nós. A invasão dessa presença divina nos convence do pecado (cf. Jo 16,8). A inundação do Espírito deixa evidente em nós tudo aquilo contrário à vontade Deus. Tudo o que nos fecha à ação de Deus, o Espírito manifesta para que possamos nos converter , e sermos cada vez mais semelhantes ao Cristo.
Enfim, o Espírito invade-nos de Deus, de tal forma que nos tornamos seu templo, onde as pessoas divinas realizam uma verdadeira teofania: “Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que está em vós e que recebestes de Deus?” (1Cor 6,19).

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Os nossos corpos são para o Senhor e não para a fornicação (cf. 1Cor 6,13)


O cristianismo não se trata de um cumprimenro frio de normas exteriores. A experiência com Cristo, nosso encontro pessoal e único com Ele, deve gerar em nós um modo de ser, um ethos.
Expressão privilegiada desse ethos cristão é a nossa corporalidade. Entendemos corporalidade aqui como toda dimensão humana expressa em nosso corpo material. Para os cristãos essa corporalidade é para o Senhor e não para a fornicação (cf. 1Cor 6,13).
E o que é a fornicação? São todos os atos contrários ao projeto de Cristo no âmbito da sexualidade. Mas antes de contrariar tal projeto, a fornicação desfigura no homem o próprio homem, sua própria imagem.
Olhemos as pessoas que nos circundam, contemplemos a beleza divina expressa na simetria de seus corpos. São esses corpos instrumentos pelos quais expressamos nosso amor, nossa dor, nossa gratidão. Através do corpo, tornamo-nos próximos um dos outros. Assumindo um corpo, Deus nos redimiu.
No entanto, quanta desfiguração do humano! Quanta baixeza em nome de uma liberdade sexual! O corpo que deveria ser meio de crescimento humano, torna-se objeto de manipulação do prazer.
Uma das heranças da fé católica para a nossa civilização ocidental foi o conceito de pessoa. Das reflexões sobre a Trindade Santa, nos primeiros séculos, brotou a idéia de pessoa, de dignidade e direitos humanos. E isso foi uma novidade na Roma Antiga, carente de tais conceitos. E o que vemos hoje? O retorno à Roma de outrora, desprovida de humanidade.
Para nós cristãos o corpo expressa a beleza divina. E, pelo batismo, o corpo passa a ser não somente expressão, mas habitação da Beleza Divina, habitação do Seu Santo Espírito. Recordemos ao mundo: os nosso corpos são para o Senhor e não para a fornicação; somente assim salvaremos a nossa própria humanidade.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Encontramos o Messias - II Domingo do Tempo Comum

A liturgia deste segundo Domingo do Tempo Comum nos apresenta o Senhor que chama seus fiéis a permanecer com Ele, em sua presença. Já na primeira leitura, vemos a vocação de Samuel. Ele, desde criança, morava com o profeta Eli junto da Tenda da Reunião em Silo, onde se encontrava a Arca da Aliança – naquele tempo, o Templo de Jerusalém ainda não tinha sido construído. O Senhor chama o menino pelo nome: “Samuel, Samuel”. Eis que o Senhor conhece a cada um de nós pelo nome: nós fomos criados por seu amoroso desígnio com um propósito, com uma finalidade na vida: entrar em comunhão com Ele e participar de sua vida bem-aventurada. No entanto, o caminho de cada um de nós é único; é algo extremamente pessoal e irrepetível. Nossos traços fisionômicos, nossa personalidade, nossas virtudes e mesmo os nossos defeitos, tudo isso faz de nós seres humanos únicos. Isso quer dizer que nós devemos aprender a discernir na vida por quais caminhos o Senhor deseja nos levar até Ele. E o nosso caminho é o nosso caminho: ninguém pode trilhá-lo por nós, nem nós podemos trilhar o caminho de outrem. Se tentarmos viver uma vida que não é a nossa, estaremos nos descaracterizando, deixaremos de sermos nós mesmos para ser outra pessoa, deixaremos de sonhar nossos próprios sonhos para viver o sonho de outros. Em uma palavra: estaremos nos despersonalizando. E este não é o desígnio de Deus para nós. O desejo de Deus para nós é que, sendo nós mesmos, sigamos a Ele e nos assemelhemos a Ele por meio da comunhão dos seus sentimentos. E Deus nos conhece tão profundamente que pode nos chamar pelo próprio nome. Mas somente quem ama conhece de verdade. E Deus nos amou primeiro (1Jo 4,19); por isso Ele nos conhece mais profundamente do que nós mesmos. E, nos conhecendo, nos pode mostrar e guiar pelo caminho que Ele designou para que cheguemos a Ele.
Também no Evangelho de hoje está presente este tema do chamamento. Jesus convida os discípulos de João para permanecem com Ele; e eles, permanecendo com Jesus, descobrem-lhe a identidade: Ele é o Cristo, o Messias, o Ungido de Deus. E, tendo encontrado Aquele por quem procuravam – sim, porque, como discípulos de João, eles se preparavam para receber o Messias que viria em breve –, eles logo partem para anunciá-lo a seus irmãos. Eis aqui: a fé que brota do encontro pessoal com o Senhor só pode desenvolver-se plenamente no seio da comunidade de fé, que é a Igreja. Não podemos calar aquilo que ouvimos: se encontramos o Senhor, se tivemos realmente uma experiência de amor com Ele, não nos contentaremos em ficar com este tesouro só para nós: temos de partilhar com os outros e isso significa: precisamos ser, como André o foi para seu irmão Simão, evangelizadores, anunciadores do Evangelho. E aquilo que ele anuncia, e que é o Evangelho, é somente uma coisa: a Pessoa de Jesus Cristo, pura e simplesmente.
Sendo assim, tenhamos sensibilidade e coragem. Sensibilidade para ouvir o chamado de Deus e discernir os caminhos pelos quais Ele deseja nos guiar; e coragem para seguir fielmente este caminho, sem esmorecer e lembrando sempre da advertência do Senhor: Aquele que põe a mão no arado e olha para trás, não é apto para o Reino de Deus (Lc 9,62).

sábado, 17 de janeiro de 2009

Paulo: perfil do homem e do Apóstolo

Caros leitores, aproveitando o ensejo deste Ano Paulino, em que comemoramos os dois mil anos do nascimento do grande Apóstolo das Gentes, apresentamos uma série de quatro meditações feitas pelo Santo Padre Bento XVI nas tradicionais audiências gerais das quartas-feiras no Vaticano no ano de 2006. Que estes textos nos ajudem a compreender melhor a vida deste grande amante de Cristo, e que nós, seguindo o seu conselho, sejamos seus imitadores como ele o foi de Cristo (cf. Fl 3,17; 1Cor 11,1; 4,16).

O primeiro deles – desses homens que como escreve Lucas no Livro dos Atos, "expuseram as suas vidas pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo" (15, 26) – , chamado pelo próprio Senhor, pelo Ressuscitado, para ser também ele um verdadeiro Apóstolo, é sem dúvida Paulo de Tarso. Ele brilha como estrela de primeira grandeza na história da Igreja, e não só da primitiva. São João Crisóstomo exalta-o como personagem superior até a muitos anjos e arcanjos (cf. Panegirico, 7, 3). Dante Alighieri na Divina Comédia, inspirando-se na narração de Lucas feita nos Atos (cf. 9, 15), define-o simplesmente "vaso de eleição" (Inf. 2, 28), que significa: instrumento pré-escolhido por Deus. Outros chamaram-no o "décimo terceiro Apóstolo" e realmente ele insiste muito para ser um verdadeiro Apóstolo, tendo sido chamado pelo Ressuscitado ou até "o primeiro depois do Único". Sem dúvida, depois de Jesus, ele é o personagem das origens sobre a qual estamos mais informados. De fato, possuímos não só a narração que dele faz Lucas nos Atos dos Apóstolos, mas também um grupo de Cartas que provêm diretamente da sua mão e sem intermediários nos revelam a sua personalidade e o seu pensamento. Lucas informa-nos que o seu nome originário era Saulo (cf. At 7, 58; 8, 1, etc.), aliás em hebraico Saul (cf. At 9, 14.17; 22, 7.13; 26, 14), como o rei Saul (cf. At 13, 21), e era um judeu da diáspora, estando a cidade de Tarso situada entre a Anatólia e a Síria. Tinha ido muito cedo a Jerusalém para estudar profundamente a Lei mosaica aos pés do grande Rabi Gamaliel (cf. At 22, 3). Tinha aprendido também uma profissão manual e áspera, era fabricante de tendas (cf. At 18, 3), que sucessivamente lhe permitiu sustentar-se pessoalmente sem pesar sobre as Igrejas (cf. At 20, 34; 1 Cor 4, 12; 2 Cor 12, 13-14).
Para ele foi decisivo conhecer a comunidade dos que se professavam discípulos de Jesus. Por eles tinha sabido a notícia de uma nova fé um novo "caminho", como se dizia que colocava no seu centro não tanto a Lei de Deus, quanto a pessoa de Jesus, crucificado e ressuscitado, com o qual estava relacionada a remissão dos pecados. Como judeu zeloso, ele considerava esta mensagem inaceitável, aliás escandalosa, e por isso sentiu o dever de perseguir os seguidores de Cristo também fora de Jerusalém. Foi precisamente no caminho para Damasco, no início dos anos 30, que Saulo, segundo as suas palavras, foi "alcançado por Cristo" (Fl 3, 12). Enquanto Lucas narra os fatos com riqueza de pormenores de como a luz do Ressuscitado o alcançou e mudou fundamentalmente toda a sua vida ele nas suas Cartas vai diretamente ao essencial e fala não só da visão (cf. 1 Cor 9, 1), mas de iluminação (cf. 2 Cor 4, 6) e sobretudo de revelação e de vocação no encontro com o Ressuscitado (cf. Gl 1, 15-16). De fato, definir-se-á explicitamente "apóstolo por vocação" (cf. Rm 1, 1; 1 Cor 1, 1) ou "apóstolo por vontade de Deus" (2 Cor 1, 1; Ef 1, 1; Col 1, 1), para realçar que a sua conversão não era o resultado de um desenvolvimento de pensamentos, de reflexões, mas o fruto de uma intervenção divina, de uma imprevisível graça divina. A partir daquele momento, tudo o que antes constituía para ele um valor tornou-se paradoxalmente, segundo as suas palavras, perda e lixo (cf. Fl 3, 7-10). A partir daquele momento todas as suas energias foram postas ao serviço exclusivo de Jesus Cristo e do seu Evangelho.
Agora a sua existência será a de um Apóstolo desejoso de "se fazer tudo em todos" (1 Cor 9, 22) sem reservas.
Isto constitui para nós uma lição muito importante: o mais importante é colocar no centro da própria vida Jesus Cristo, de modo que a nossa identidade se distinga essencialmente pelo encontro, pela comunhão com Cristo e com a sua Palavra. À sua luz todos os outros valores são recuperados e ao mesmo tempo purificados de eventuais impurezas. Outra lição fundamental oferecida por Paulo é o alcance universal que caracteriza o seu apostolado. Vendo a agudeza do problema do acesso dos Gentios, isto é dos pagãos, a Deus, que em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado oferece a salvação a todos os homens sem exceções, dedicou-se totalmente a dar a conhecer este Evangelho, literalmente "boa notícia", isto é, anúncio de graça destinado a reconciliar o homem com Deus, consigo mesmo e com os outros. Desde o primeiro momento ele tinha compreendido que esta era uma realidade que não dizia respeito só aos judeus ou a um certo grupo de homens, mas que tinha um valor universal e se referia a todos, porque Deus é o Deus de todos.
O ponto de partida para as suas viagens foi a Igreja de Antioquia da Síria, onde pela primeira vez o Evangelho foi anunciado aos Gregos e onde também foi cunhado o nome de "cristãos" (cf. At 11, 20.26), isto é, de crentes em Cristo. Dali ele dirigiu-se primeiro para Chipre e depois várias vezes para as regiões da Ásia Menor (Pisídia, Licaônia, Galácia), depois para as da Europa (Macedônia, Grécia). Mais relevantes foram as cidades de Éfeso, Filipos, Tessalônica, Corinto, sem contudo esquecer Beréia, Atenas e Mileto.
No apostolado de Paulo não faltaram dificuldades, que ele enfrentou com coragem por amor de Cristo. Ele mesmo recorda ter agido "pelos trabalhos... pelas prisões... pelos açoites, pelos freqüentes perigos de morte... três vezes fui açoitado com varas, uma vez apedrejado; três vezes naufraguei... viagens sem conta, exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos da parte dos meus concidadãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos entre os falsos irmãos; trabalhos e fadigas, repetidas vigílias com fome e sede, freqüentes jejuns, frio e nudez! E além de tudo isto, a minha obsessão de cada dia: cuidado de todas as Igrejas" (2 Cor 11, 23-28). De um trecho da Carta aos Romanos (cf. 15, 24.28) transparece o seu propósito de chegar até à Espanha, às extremidades do Ocidente, para anunciar o Evangelho em toda a parte, até aos confins da terra então conhecida. Como não admirar um homem como este? Como não agradecer ao Senhor por nos ter dado um Apóstolo desta estatura? É claro que não lhe teria sido possível enfrentar situações tão difíceis e por vezes desesperadas, se não tivesse havido uma razão de valor absoluto, perante a qual nenhum limite se podia considerar insuperável. Para Paulo, esta razão, sabemo-lo, é Jesus Cristo, do qual ele escreve: "O amor de Cristo nos impulsiona... para que, os que vivem, não vivam mais para si mesmos, mas para Aquele que por eles morreu e ressuscitou" (2 Cor 5, 14-15), por nós, por todos. De fato, o Apóstolo dará o testemunho supremo do sangue sob o imperador Nero aqui em Roma, onde conservamos e veneramos os seus despojos mortais. Assim escreveu acerca dele Clemente Romano, meu predecessor nesta Sede Apostólica nos últimos anos do século I: "Por causa dos ciúmes e da discórdia Paulo foi obrigado a mostrar-nos como se obtém o prêmio da paciência... Depois de ter pregado a justiça a todo o mundo, e depois de ter chegado até aos extremos confins do Ocidente, sofreu o martírio diante dos governantes; assim partiu deste mundo e chegou ao lugar sagrado, que com isso se tornou o maior modelo de perseverança" (Aos Coríntios, 5). O Senhor nos ajude a pôr em prática a exortação que nos foi deixada pelo Apóstolo nas suas Cartas: "Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo" (1 Cor 11, 1).

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Com olhos nos divinos segredos


O texto que se segue é uma homilia de dom Bernardo Bonowitz, monge cisterciense. Esta e outras homilias dele estão no livro "A Alegria que vem da Trapa", da editora Edições Lumen Christi.

Se alguma vez, não com pressa, mas demoradamente, você olhou para uma cruz numa igreja, você viu apresentadas, em forma visível, as palavras do evangelho: “Eu dou a vida pelas minhas ovelhas”. Você viu um homem, livremente preso, ligado a um madeiro, fazendo uma operação: as mãos, os pés, o coração abertos, a vida escorrendo destas aberturas, a ser recolhida e empregada para o bem dos outros, que ele chama ovelhas.
O que você está contemplando? A manfestação da vida íntima de Deus e, ao mesmo empo, a manifestação de sua própria vida íntima.
Você é um felizardo, ou melhor, um abençoado, proque está vendo, com os próprios olhos, Deus alimentando suas criaturas queridas, seu mundo amado.
Os deuses pagãos dos gregos e dos romanos não aguentavam que um ser mortal fitasse seus mistérios . Se um homem de carne e osso se aproximasse para fitar os olhos nos divinos segredos, por causa dessa ousadia os deuses o matariam.
Mas este Deus, o nosso Deus, permite, convida você a presenciar esta alimentação. Desde o começo do universo, Deus tem agido assim, fazendo a criação viver de sua vida. Enretanto foi num determinado instante do tempo que este dom, tão precisoso e tão delicado, ficou visível.
O mundo estava morto por causa do pecado e ignorância; então, Deus entrou encarnado no mundo, entregando a plenitude de sua vida, a fim de que tudo brotasse de novo. É porque no batismo você recebeu um novo poder de visão, os olhos da fé, que você pode agora contemplar este eterno dom de vida e se manifestar na carne... na carne de Cristo.
Você está contemplando também o mistério de sua própria vida. Como assim? Não sabe que você foi criado para ser um deus em miniatura, um imitador, uma imagem de Deus? Sim, é por você que o madeiro está esperando Perto de você as suas ovelhas fazem um barulhinho insistente, pedindo comida. Quem são as suas ovelhas?
As pessoas qe vivem de sua vida, que precisam de sua vida para crescer e ser fortes: seus filhos, seu esposo ou sua esposa, seus alunos, seus empregados, seus vizinhos pobres, seus irmãos de comunidade. Humildemente, pedem que você suba ao madeiro e seja pregado, firmemente, por toda a vida. Que você deixe abrir e correr as fontes da vida dentro de você. Elas sabem, estas ovelhas, melhor que você, que você não morrerá desta operação. Dando a vida, você a receberá a cada instante, para dá-la novamente.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

As bem-aventuranças – XIII

Apresentamos a última parte do comentário sobre as bem-aventuranças, retirado do livro Jesus de Nazaré do papa Bento XVI. Apresentaremos mais tarde outros textos deste belíssimo livro do Santo Padre que iluminam enormemente a nossa compreensão acerca da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo. É um livro precioso: todos os cristãos deveriam lê-lo para conhecer mais Aquele que amam e, assim, amá-Lo cada vez mais. Rezemos para que o Santo Padre nos brinde logo com o segundo volume deste grande tesouro que oferece à Igreja e àquelas pessoas de boa vontade.

Resta ainda o Macarismo “Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mt 5,8). O órgão com o qual o homem pode ver a Deus é o coração; o simples entendimento não basta; para que o homem se torne capaz de conhecer Deus, devem agir conjuntamente as forças da sua existência. A vontade deve ser pura e, portanto, também a base afetiva da alma, o entendimento e o querer que oferece a direção. Por “coração” entende-se precisamente este jogo de relações das capacidades e percepção do homem, no qual também está em jogo a correta interligação entre corpo e alma, que pertence à totalidade desta “criatura” “homem”. A fundamental determinação afetiva do homem depende precisamente também que o homem aceite ser ao mesmo tempo corporal e espiritual; que coloque o corpo na cultura do espírito, mas que não isole nem o entendimento nem a vontade, mas que a si mesmo se aceite a partir de Deus e assim reconheça e viva a corporeidade da sua existência como riqueza para o espírito. O coração – a totalidade do homem – deve ser puro, interiormente aberto e livre, para que o homem possa ver Deus. Teófilo de Antioquia (†180) expressou isto uma vez em disputa com o homem que se questiona deste modo: “Se tu me dizes: mostra-me o teu Deus, eu respondo-te assim: mostra-me o teu homem... Deus é nomeadamente percebido pelos homens que são capazes e o verem, que têm abertos os olhos do espírito... Como um espelho deve estar limpo, assim também deve estar puro o interior do homem...”

Surge então a pergunta: como é que o olhar interior do homem se torna puro? Como é que pode a estrela ser desligada, que turva o seu olhar ou em última análise o pode cegar totalmente? A tradição mística da “via ascendente da purificação” até a “união” tentou dar uma resposta a esta pergunta. No entanto, as bem-aventuranças devem ser lidas antes de mais nada no contexto bíblico. Aí encontramos o tema sobretudo no salmo 23(24), o qual é a expressão de uma antiga liturgia de entrada: “Quem é que pode subir para a montanha do Senhor, quem pode permanecer no seu lugar santo? Quem tem as mãos limpas e um coração puro, quem não mente nem faz um juramento falso” (v. 3s). Diante da porta do templo surge a pergunta sobre quem pode estar na proximidade do Deus vivo: “mãos limpas e coração puro” são a condição.
O salmo explica de múltiplos modos o conteúdo desta condição para o acesso à habitação de Deus. Uma condição fundamental é que o homem que quer aceder junto de Deus pergunte por Ele, procure o seu rosto (Sl 23(24),6). Como condição fundamental aparece de novo a mesma atitude que já encontramos descrita nas palavras-chave “fome e sede de justiça”. Perguntar por Deus, procurar o seu rosto – aqui está a primeira e fundamental condição para a subida, que conduz ao encontro com Deus. Mas antes é dada a informação sobre o conteúdo das mãos limpas e do coração puro, que consiste em que o homem não engane nem fala falsos juramentos: portanto a honestidade, a veracidade, a justiça para com os outros homens e para com a comunidade – o que podemos designar como a ética social, mas que realmente atinge o mais profundo do coração.
O salmo 14(15) desenvolve isto ainda mais, de tal modo que se pode dizer simplesmente que o conteúdo essencial do Decálogo é a condição de acesso a Deus – com a acentuação da íntima busca de Deus, do estar a caminho em direção a Ele (Primeira tábua do Decálogo) e para o amor ao próximo, para a justiça a respeito de cada um e a respeito da comunidade (Segunda tábua). Não são de todo especificamente nomeadas condições respeitantes ao conhecimento da revelação, mas apenas a “pergunta sobre Deus” e as indicações fundamentais da justiça, que diz para cada um uma consciência desperta – precisamente abanada pela busca de Deus. O que antes refletimos sobre a questão da salvação confirma-se de novo e mais uma vez aqui.

Mas, na boca de Jesus, a palavra adquire uma nova profundidade. A essência da sua figura consiste precisamente em que Ele vê Deus, em que Ele está face a face com Deus, num intercâmbio interior permanente com Ele – no qual Ele vive a sua existência filial. Assim, esta é uma palavra profundamente cristológica. Veremos Deus se entrarmos no “pensamento de Cristo” (Fl 2,5). A pureza do coração acontece no seguir os passos de Cristo, no ser um com Ele. “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo quem vive em mim...” (Gl 2,20). E aqui aparece agora algo de novo: a subida para Deus acontece precisamente na descida ao serviço humilde, a descida ao amor, que é a essência de Deus e, portanto, a verdadeira força purificadora, que capacita o homem para conhecer Deus e para vê-lo. Em Jesus Cristo, Deus se revelou na descida: “Ele era igual a Deus, mas não reivindicou o direito de ser equiparado a Deus, mas despojou-se de si mesmo, tomando a condição de servo, tornando-se semelhante ao homem... Humilhou-se a si mesmo e foi obediente até a morte, até a morte na cruz. Por isso Deus O exaltou acima de todas as coisas...” (Fl 2,6-9).
Estas palavras assinalam uma decisiva virada na história da mística. Mostram o que é novo na mística cristã, que vem da novidade da revelação em Jesus Cristo. Deus desce até a morte na cruz. É precisamente deste modo que se revela na sua verdadeira divindade. A subida para Deus acontece ao ir com Ele nesta descida. A liturgia da entrada do salmo 23(24) alcança assim um novo significado: o coração puro é o coração que ama, o que acontece na comunidade do serviço e da obediência com Jesus Cristo. O amor é o fogo que purifica e que une o entendimento, a vontade, o sentimento, que une o homem consigo mesmo, na medida em que o une a partir de Deus, de tal modo que ele se torna servidor da unidade dos que andam separados: é assim que o homem entra na habitação de Deus e pode vê-lo. E isto significa precisamente ser bem-aventurado.

"Podeis beber o cálice?" - III


Caros leitores, aqui está o terceiro e último texto extraído do livro "Podeis Beber o Cálice?" do Pe. Henri. J. M. Nouwen.

Beber o cálice

Beber o cálice da vida faz nosso tudo o que estamos vivendo. Isso quer dizer: “Esta é minha vida”, mas também: “Quero que esta seja minha vida”. Beber o cálice da vida é se apropriar completamente e internalizar nossa existência sem igual, com todas as suas tristezas e alegrias.
Não é fácil fazer isso. Por muito tempo podemos não nos sentir capazes de aceitar nossa própria vida; podemos continuar lutando por uma vida melhor ou pelo menos por uma vida diferente. Muitas vezes, um profundo protesto contra o nosso “destino” surge em nós. Não escolhemos nosso país, nossos pais, a cor de nossa pele, nossa orientação sexual. Nem mesmo escolhemos nosso caráter, nossa inteligência, nossa aparência física ou nossas maneiras. Às vezes queremos fazer tudo o que é possível para alterar as circunstâncias de nossa vida. Desejamos estar em outro corpo, viver em outra época ou ter outra mente! Um clamor pode vir do mais profundo de nosso ser: “por que tenho que ser esta pessoa? Não pedi para ser assim e não quero ser assim”.
Mas gradualmente, à medida que passamos a aceitar nossa própria realidade, olhar com compaixão nossas próprias tristezas e alegrias, e à medida que descobrimos o potencial único de nossa forma de estar no mundo, podemos superar nosso protesto, trazer o cálice de nossa vida até nossos lábios e bebê-lo, devagar, com cuidado, mas até o fim.
Como então podemos, em nosso cotidiano comum, beber nosso cálice, o cálice da tristeza e o cálice da alegria? Como podemos nos apropriar inteiramente do que nos é dado? De certa forma sabemos que quando não bebemos nosso cálice, e assim evitamos a tristeza e a alegria de viver, nossas vidas tornam-se sem autenticidade e sinceridade, vidas superficiais e desinteressantes. Nós nos tornamos bonecos movidos para cima e para baixo, para a esquerda e para a direita pelos manipuladores deste mundo. Tornamo-nos objetos, sim, vítimas dos interesses e desejos de outras pessoas. Mas não temos de ser vítimas. Podemos escolher beber o cálice de nossa vida com a profunda convicção de que ao bebê-lo encontraremos nossa verdadeira liberdade. Assim, descobriremos que o cálice de tristeza e alegria que bebemos é o cálice da salvação.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Tempo Comum: a graça de Deus manifestada no cotidiano

Terminados os santos dias do Natal, começamos mais uma vez o Tempo Comum ou Tempo durante o ano. Uma vez que contemplamos a Manifestação do Filho de Deus, que apareceu em nossa terra para partilhar de nossa vida humana e nos dar sua Vida Divina, passamos a agora a contemplar a vida pública do Senhor logo após o seu Santo Batismo, cuja Festa celebramos ontem. Durante 34 semanas vamos, pouco a pouco, penetrando no Mistério de Cristo, aprendendo com ele nos seus gestos, nas suas palavras, nos seus silêncios, nos seus olhares, nas suas lágrimas, nos seus cansaços, enfim, em toda a sua vida; e, aprendendo, vamos ao mesmo tempo, na medida em que abrimos o coração para Ele, sendo transformados n’Ele através da partilha de seus sentimentos e da sua vida, obra essa que é realizada pelo seu Espírito Santo.
O Tempo Comum é marcado, na Liturgia, pela cor verde; é o verde da esperança que nos faz cada dia levantarmo-nos agradecidos a Deus pelo sol que mais uma vez assoma no horizonte, pelo vigor para o trabalho, pelos benefícios inumeráveis com que Deus nos cumula cotidianamente. E, na vida pequena, na vida tecida monotonamente, dia após dia, vamos construindo uma história de amor com Deus e com os irmãos, a aventura humana neste mundo. De esperança em esperança vamos caminhando; parando para descansar um pouco, às sombras das asas de Deus, retomando o fôlego, nutrindo-nos com Sua Palavra e Seu Corpo, e caminhando novamente. E, assim, os nossos dias vão passando: serão dias cheios de sentido na medida em que vivemos abertos para o Sentido de nossas vidas; serão vazios e tristes na medida em que caímos na ilusão de uma vida vivida do nosso jeito e não do jeito de Deus.
Irmãos amados em Cristo, tenhamos a coragem de caminhar e de dizer sim ao Senhor cada dia desse ano e todos os dias de nossas vidas; façamos o propósito de sermos generosos para com Deus cotidianamente, esforçando-nos para viver a cada momento de acordo com a Sua Santa Vontade. Desse modo, ao findar o ano, teremos a feliz constatação de que foi um ano cheio de sentido e que valeu a pena viver aberto para o Senhor.
Nos que fazemos o Veni Creator Spiritus queremos caminhar com você, caro irmão! Permaneça conosco para que juntos permaneçamos em Cristo!

Tempo de delicadeza: Expressão do Amor de Deus


A Primeira Carta de S. João em 4,8 afirma: “Deus é amor”. Essa afirmação é a síntese daquilo que é a essência do nosso Deus e da mensagem cristã. Podemos dizer que a expressão concreta desse ser Amor que é o próprio Deus é a delicadeza. Se voltarmos nosso olhar para todo o percurso da revelação, descobriremos que o modo de agir de Deus, inaugura nesse mundo o tempo da delicadeza. Deus vem mostrar quem Ele é, evento iniciado com Abraão e plenamente realizado em Jesus. E em todo esse caminho, Deus não entra na vida dos homens de qualquer jeito. Deus tem seu jeito de se fazer amigo dos homens, tem suas etapas, enfim, tem seus ritos no processo de conquistar o coração humano.
Se Deus por primeiro nos amou assim, com delicadeza, nós também devemos agir dessa maneira (cf. 1Jo 4,11). Comumente, afirmamos não haver verdadeira humanização sem a conversão a Cristo, expressão máxima e concreta da delicadeza de Deus. Pois bem, essa humanização implica expressar nossa vida na delicadeza em relação a Deus e ao próximo.
Mas, afinal, o que é esse tempo de delicadeza? É a capacidade de contemplar a criação e as pessoas não como um dado evidente, mas como realidades a serem conquistadas a cada dia. Aqui é fundamental o papel dos ritos. Ritualizar a vida não é sinônimo de mecanizá-la ou manipulá-la. Pelo contrário, o rito devolve a sacralidade à realidade, restaurando-lhe a sua dimensão mistérica. A criação e as pessoas são um mistério inexaurível inscritas no coração do próprio Deus. E para desse mistério nos aproximar, precisamos dos ritos. O rito longe de se apossar da realidade, revela o nosso assombro permanente diante do dom da vida.
A ritualidade, expressão e manifestação da delicadeza, revela-se no processo de conquista das pessoas, seja no amor, seja na amizade. Precisamos de encontros, palavras, gestos, intervalos, ausências, permanências, cuidados, pequenas atenções, tempo e contratempos para irmos adentrando na vida dos outros. Agir de outra forma é violentar e desrespeitar a singularidade humana.
Mas não somente no processo de conquista se expressa a delicadeza humana. No processo de permanência na vida dos outros o rito deve se fazer presente. É o rito que mantém o aspecto lúdico da amizade, conserva os casamentos na novidade do primeiro encontro, mantém os laços familiares no respeito mútuo. Enfim, o rito devolve-nos a capacidade de ver a beleza sempre oculta e sempre pronta a ser descoberta dos amigos, namorados, esposos, familiares, do desconhecido, que, de repente, passa a ser conhecido.
Assim conhecemos se experimentamos a delicadeza do amor de Deus: se ajudamos a inaugurar aqui o tempo da delicadeza. Retiremos o rosto amoroso de Deus da vida do mundo e das pessoas, e seremos pobres na ritualidade da delicadeza; seremos violentos.

domingo, 11 de janeiro de 2009

"Tu és o meu Filho amado" - Festa do Batismo do Senhor


Com a festa do Batismo do Senhor, encerramos o Santo Tempo do Natal, o ciclo que compreende cinco festas: a solenidade da Natividade do Senhor (25 de dezembro), a festa da Sagrada Família (domingo entre 25 e 1º de janeiro), a solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus (1º de janeiro), a solenidade da Epifania do Senhor (domingo entre 02 e 08 de janeiro) e a festa do Batismo do Senhor, hoje, domingo após 06 de janeiro. Todas essas celebrações fazem memória da manifestação do Senhor em nossa condição humana. Deus assumiu a nossa vida, a nossa história.
A manifestação celebrada hoje, o Batismo de Jesus no Jordão por João Batista, coloca-nos diante de três realidades.
Jesus vem ao Jordão ser batizado (cf. Mc 1,9). O Batismo de João era o mergulho nas águas para aqueles que estavam arrependidos de seus pecados, e, uma vez convertidos, esperavam o Messias. Jesus coloca-se entre esses pecadores. O menino de Belém, agora já homem maduro, o Santo, se humilha e se faz solidário com a nossa condição humana. Ele vem nos assumir para nos redimir.
Em seguida, um segundo elemento emerge. Quando Jesus sai das águas, os céus se abrem, e o Espírito, em forma de pomba, desce sobre Ele (cf. Mc 1,10). Com a encarnação do Verbo, os céus se abrem novamente para nós, os céus que havíamos perdidos. E do céu, o Espírito que pariava sobre as águas na criação (cf. Gn 1,2), cai sobre Jesus e o unge. Essa unção é primícias da unção do nosso Batismo. Na cena do Jordão, contemplamos o início daquilo que se realizará na Páscoa: o Espírito arrancará Jesus da morte, que, pleno desse Espírito, nos enche da sua Unção.
Por fim, a voz do Pai de se faz ouvir. Ela atesta que Jesus é o Filho amado, no qual o Pai põe o seu bem querer. Essas palavras recordam o texto do primeiro canto do servo do Senhor em Is 42,1-4.6-7. Essa figura misteriosa aparece nos escritos de Isaías, e será enviada pelo Senhor para ser luz da nações e centro de aliança do povo (cf. Is 42,6). Essa personagem realizará isso por meio da assunção dos sofrimentos humanos, conforme lemo em um outro cântico do servo do Senhor, em Isaías 52,4. No evento do Jordão, o próprio Pai nos diz quem é esse servo: é Jesus. Ao usar as palavras do cântico do servo de Isaías, o próprio Deus dá testemunho e nos diz quem é Aquele que se manifesta no Jordão. Jesus vem para assumir a humanidade nas sua totalidade, principalmente na sua dimensão mais dolorosa: o pecado, que desagrega e desumaniza o homem.
As manifestações do Senhor nos atestam que Deus está conosco. Jesus veio nos abrir o céu, como cantávamos antes do natal, no dia 20 de dezembro, invocando-o como Chave da Casa de Davi, que abre e ninguém fecha. E ao abrir o céu, Ele nos deu o Seu Espírito, recebido no nosso Batismo. Eis a mensagem do Santo Natal!

sábado, 10 de janeiro de 2009

Ser Cristão: Identificar-se com a cruz de Cristo


E Ele disse: “se alguém me quiser seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e me siga. Pois aquele que quiser salvar a vida vai perdê-la, mas quem perder e vida por amor de mim e pela causa do evangelho há de salvá-la” (Mc 8, 34-35). Mas, Ele disse também: “vinde a mim todos vós, fatigados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre os ombros meu jugo e aprendei e mim, que sou manso e humilde de coração, e achareis descanso para vossas almas. Pois meu jugo é suave e meu peso é leve”. (Mt 11, 28-30).
Ser cristão não significa apenas está enquadrado num sistema puramente moralista, e por isso seco e quase sem vida. Sê-lo requer, sobretudo, a descoberta e a atividade da dimensão mais nobre do ser humano, que o torna ser existente, plenamente homem. Falamos da dimensão espiritual. Esta, intrínseca substancialmente a todo homem, é descoberta quando optamos pela vida de verdade, sem confundi-la com simples ausência da morte. Vida no seu sentido pleno. E só assim estaremos certos de nossa própria existência. Teremos a certeza de estarmos no caminho que Nosso Criador, Príncipio e Fim de tudo, quer que estejamos. E Nosso Senhor disse: “Eu sou o caminho a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo 14, 6). Ser cristão, além de ultrapassar a dimensão fisico-moral descobrindo a dimensão espiritual, é buscar, pela amizade com Cristo, a Ele se identificar. Nessa identificação desejamos segui-lo e, seguindo-o, nos deparamos com uma dor nunca vista ou sentida antes, a renúncia a nós mesmos. E isso dói! “E no silêncio da noite ouço meus gritos”. Eis a nossa cruz, eis a nossa dor! Eis a lembrança de Cristo no caminho do calvário! “Eis a identificação da minha agonia na agonia Dele”! “E isso me consola”. Na dor da cruz experimentamos, pela esperança, o sabor da não-dor, da felicidade perfeita e eterna. E isso é bom! E essa esperança, que é dom, é também comunhão na agonia de Cristo, que se esvaziou a si mesmo e se tornou obediente até a morte. Afinal, é na esperança que fomos salvos! Mas, como encontrar o dom da esperança? Por ser um dom ela é inesperada e imerecida. Deve brotar do nada, inteiramente livre. Por isso, para encontrá-la devemos descer ao nada. Segundo o monge cisterciense Thomas Merton, encontramos a esperança de modo mais perfeito quando estamos despojados de nossa autoconfiança, de nossa força, quando praticamente não mais existimos. Buscando a esperança assim, fazemos jus ao que disse Cristo: aquele que quiser salvar a vida vai perdê-la, mas quem perder e vida por amor de mim e pela causa do evangelho há de salvá-la.
Enfim, ser Cristão é se reconhecer e se aceitar como pessoa e, sobretudo, como afirma Merton, acreditar na afirmação mais paradoxal e ao mesmo tempo mais original e característica do cristianismo, de que na ressurreição de Cristo dentre os mortos, o ser humano venceu completamente a morte e que em Cristo os mortos vão ressurgir para gozar a vida eterna. Esta vida nova no reino de Deus não será uma herança recebida apenas de forma passiva, mas será, de certo modo, fruto de nossa agonia e esforço, amor e orações em união com o Espírito Santo. E lembremo-nos sempre: cristianismo sem crença nesta afirmativa escatológica fabulosa não passa de um mero sistema moral cheio de normas, sem grande consistência espiritual.

"Podeis beber o cálice?" - II

Apresentamos a seguir o segundo texto extraído do livro "Podeis Beber o Cálice?" do Pe. Henri J. M. Nouwen.

Erguer o cálice
Erguemos o cálice da vida, para firmar e celebrar nossa vida juntos como um presente dado por Deus. Quando cada um de nós puder segurar firmemente seu próprio cálice, com suas várias tristezas e alegrias, assumindo que não há outra vida para nós senão esta, então poderemos erguer nossos cálcies para que os outros possam ver e assim encorajá-los a erguer suas vidas também. Por isso, ao erguer nosso cálice destemidamente, proclamando que apoiamos uns aos outros em nossa jornada comum, criamos comunidade.
Erguer nossas vidas por outros acontece toda vez que falamos ou agimos para tornar nossas vidas vidas para outros. Quando estamos totalmente preparados para abraçar nossas própria vidas, descobrimos que aquilo que dizemos ser nosso, também o queremos proclamar. Uma vida que se segura com firmeza é, sem dúvida, uma vida por outros. Deixamos de nos perguntar se nossa vida é melhor ou pior que a de outros e começamos a ver com clareza que quando vivemos nosssa vida por outros nós não apenas resgatamos nossa individualidade como também proclamamos nosso lugar específico no mosaico da família humana.
Erguer nosso cálice significa partilhar nossa vida de maneira que possamos celebrá-la. Quando verdadeiramente cremos que somos chamados a dar nossas vidas por nossos amigos, devemos ter coragem para assumir o risco e permitir que outros saibam o que estamos vivendo. A questão importante é: "Temos um círculo de amigos em quem podemos confiar e no qual nos sentimos seguros para partilhar nossa intimidade e crescer em maturidade?" Ao erguer nossos cálices às pessoas em quem acreditamos e que amamos, também erguemos o cálice de nossa vida àqueles com os quais não desejamos possuir segredos e com quem queremos viver em comunidade.

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Os Sinais do Batismo do Senhor


Nesse Santo Tempo do Natal, no qual celebramos a manifestação do Senhor na nossa humanidade, meditemos nesse texto de São Máximo de Turim, bispo do século V, e nos preparemos para celebrar a última festa do Natal: o Batismo do Senhor, no próximo domingo. Observem como o santo bispo relaciona as manifestações do Senhor no dia de seu Natal e no dia de seu Batismo.

O evangelho nos conta que o Senhor foi ao Jordão para ser batizado e quis ser consagrado neste rio por sinais do céu.
Não é sem razão que celebramos esta festa pouco depois do dia do Natal do Senhor, já que os dois acontecimentos se verificaram na mesma época, embora com diferença de anos; julgo que também ela deve chamar-se festa do Natal.
No dia do Natal, Cristo nasceu entre os homens; hoje renasce pelos sinais sagrados; naquele dia, nasceu da Virgem; hoje é gerado pelos sinais do céu. No Natal, ao nascer o Senhor segundo a natureza humana, Maria, sua mãe, o acaricia em seu colo; agora, ao ser gerado entre os sinais celestes, Deus, seu Pai, o envolve com sua voz, dizendo: Este é o meu filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o (Mt 17,5). Sua mãe o traz nos braços com ternura, seu Pai lhe presta o testemunho de amor. A Mãe apresenta-o aos magos para que o adorem, o Pai apresenta-o às nações para que o reverenciem.
O Senhor Jesus foi, portanto, receber o batismo e quis que seu santo corpo fosse lavado nas águas.
Talvez alguém diga: "Se ele era santo, pro que quis ser batizado?" Escuta: Cristo foi batizado, não para ser santificado pelas águas, mas para santificá-las e para purificar as torrentes com o contato de seu corpo. A consagração de Cristo é sobretude a consagração da água.
Assim, quando o Salvador é lavado, todas as águas ficam puras para o nosso batismo; a fonte é purificada para que a graça batismal seja conceidda aos povos que virão depois. Cristo no precede no batismo para que os povos cristãos sigam confiantemente o seu exemplo.
Vejo aqui um significado misterioso: também a coluna de fogo ia na frente através do mar Vermelho, para que os filhos de Israel a seguissem corajosamente no caminho; foi a primeira a atravessar as águas, a fim de abrir caminho aos que vinham atrás. Este acontecimento, como diz o Apóstolo, era uma figura do batismo. Foi certamente uma espécie de batismo, no qual os homens eram cobertos pela nuvem e passavam através das ondas.
Tudo isso foi realizado pelo mesmo Cristo nosso Senhor, que agora, na coluna do seu corpo, precede no batismo os povos cristãos, como outrora, na coluna de fogo, precedeu através do mar os filhos de israel. Sim, é a mesma coluna que outrora iluminou os olhos dos caminhantes que hoje enche de luz os corações dos que crêem. Outrora abriu caminho seguro entre as ondas, hoje firma no batismo os passos da nossa fé.