sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Solenidade de Todos os Santos


“Vi uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar. Estavam de pé diante do trono e do Cordeiro; trajavam vestes brancas e traziam palmas na mão. Todos proclamavam com voz forte: A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro. (...) Esses são os que vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram suas roupas no sangue do cordeiro” (Ap 7,9-10.14). Eis aqui o termo e o fim da vocação a que fomos chamados: fazer parte dessa inumerável multidão de homens e mulheres de todo o orbe e de todos os tempos, a multidão dos santos e santas de Deus. Como diz o Apóstolo: “Sois a raça escolhida, o sacerdócio do Reino, a nação santa, o povo que ele conquistou para proclamar as obras admiráveis daquele que vos chamou das trevas para a sua luz maravilhosa” (1Pd 2,9).
Mas, em termos práticos, o que significa ser santo? A Escritura diz que os serafins rodeiam o Senhor no céu, cantando sem cessar: “Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus do universo” (cf. Is 6,1-3; Ap 4,8) e o Senhor, parafraseando o Levítico diz: “Sede perfeitos (santos) como o vosso Pai celeste é perfeito (Santo)” (Mt 5,48; cf. Lv 19,2). Ser santo, portanto, é imitar a santidade de Deus. Isso é possível? Não aos homens, mas sim para Deus, para quem nada é impossível (cf. Lc 1,37), porque recebemos o Espírito de Deus, o Espírito de Cristo, que é o Espírito Santo: “Santos e chamados a ser santos” (cf. 1Cor 1,2). E o próprio Cristo, o Filho Unigênito do Pai, que foi em tudo homem como nós, exceto no pecado, é o nosso modelo de santidade: é este o sentido último das bem-aventuranças: Cristo é o pobre em espírito, o manso, o humilde de coração, o que promove a paz, o perseguido por causa da justiça. Ele é o verdadeiro Bem-aventurado e, assim o sendo, nos convida a imitar sua vida santa e bem-aventurada, o que é possível porque Ele mesmo já trilhou o caminho antes de nós e assim, pôde fazer-se Caminho. Se caminharmos em Cristo, tendo os mesmos sentimentos d’Ele, como pede o Profeta (Fl 2,5), imitando em tudo sua vida, nos tornaremos aquilo que já somos: santos.
Sim, a santidade é possível a todo aquele que possui o Espírito de Cristo por causa deste mesmo Espírito, mas também pela nossa colaboração; e esta colaboração é não opor resistência à ação de Deus, não contristar o Espírito que habita em nosso peito (cf. Ef 4,30) e ser generoso para com o Senhor, entregando nossa vida sem reservas, arriscando-nos jogar no abismo insondável da vida de Deus. Portanto, arrisquemos viver por amor, pois Deus é amor (1Jo 4,8) e, no amor, nos transfigurará n’Ele, que é o três vezes Santo.

quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Como uma só alma em dois corpos


O texto que se segue é de autoria de São Gregório de Nazianzo, um dos santos doutores da Igreja. Como nos atesta a história, Gregório era um grande amigo de São Basílio, outro santo doutor da Igreja. Ambos, muitas vezes incompreendidos pela malícia humana sempre presente na história, eclesiástica ou não, descobriram o valor da amizade como conseqüência do encontro com Deus em Jesus Cristo. Assim como quem ama conhece a Deus porque Deus é amor, quem sabe ser amigo, conheceu a Deus, pois manifesta que experimentou e vive na amizade com Ele. Ser amigo é amar em Jesus e como Jesus; é olhar o outro e amá-lo, porque fomos amados primeiro. Saber ser amigo é um dos frutos do Espírito em nós, sinal de uma autêntica vida espiritual. Ao mesmo tempo em que a experiência da amizade em Deus, nutrida pela admiração mútua, gera santidade. Não há saída: um bom cristão se mede por seu jeito de amar e pela capacidade de se doar. Que São Gregório e São Basílio, que bem poderiam ser os patronos da verdadeira amizade, nos ajudem a sermos autênticos amigos.

Encontramo-nos em Atenas. Como o curso de um rio, que partindo da única fonte se divide em muitos braços, Basílio e eu nos tínhamos separado para buscar a sabedoria em diferentes regiões. Mas voltamos a nos reunir como se nos tivéssemos posto de acordo, sem dúvida porque Deus assim quis.
Nesta ocasião, eu não apenas admirava meu grande amigo Basílio vendo-lhe a seriedade de costumes e a maturidade e prudência de suas palavras, mas ainda tratava de persuadir a outros que não o conheciam tão bem a fazerem o mesmo. Logo começou a ser considerado por muitos que já conheciam sua reputação.
Que acontece então? Ele foi quase o único entre todos os que iam estudar em Atenas a ser dispensado da lei comum; e parecia ter alcançado maior estima do que comportava sua condição de novato. Este foi o prelúdio de nossa amizade, a centelha que fez surgir nossa intimidade; assim fomos tocados pelo amor mútuo.
Com o passar do tempo, confessamos um ao outro nosso desejo: a filosofia era o que almejávamos. Desde então éramos tudo um para o outro; morávamos juntos, fazíamos as refeições à mesma mesa, estávamos sempre de acordo aspirando os mesmos ideais e cultivando cada dia mais estreita e firmemente nossa amizade.
Movia-nos igual desejo de obter o que há de mais invejável: a ciência; no entanto, não tínhamos inveja, mas valorizávamos a emulação. Ambos lutávamos, não para ver quem tirava o primeiro lugar, mas para cedê-lo ao outro. Cada um considerava como própria a glória do outro.
A única tarefa e objetivo de ambos era alcançar a virtude e viver para as esperanças futuras, de tal forma que, mesmo antes de partirmos desta vida, tivéssemos emigrado dela. Nesta perspectiva, organizamos toda a nossa vida e maneira de agir. Deixamo-nos conduzir pelos mandamentos divinos estimulando-nos mutuamente à prática da virtude. E, se não parecer presunção minha dizê-lo, éramos um para o outro a regra e o modelo para discernir o certo e o errado.
Assim como cada pessoa tem um sobrenome recebido de seus pais ou adquirido de si próprio, isto é, por causa da atividade ou orientação de sua vida, para nós a maior atividade e o maior nome era sermos realmente cristãos e como tal reconhecidos.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

As bem-aventuranças – III


Do Livro Jesus de Nazaré, de Bento XVI



O olhar sobre S. Paulo e sobre S. João clarificou duas coisas: as bem-aventuranças exprimem o que significa o discipulado. Elas se tornam tanto mais concretas e reais quanto mais completa for a entrega do discípulo ao serviço, como podemos ver exemplarmente em S. Paulo. O que elas significam não se pode exprimir simplesmente de um modo teórico; isso é dito na vida e no sofrimento e na alegria misteriosa do discípulo, que se entregou totalmente a seguir o Senhor. Assim, torna-se claro um segundo ponto: o caráter cristológico das bem-aventuranças. O discípulo está ligado ao mistério de Cristo. A sua vida mergulhou na comunhão com Cristo: já não sou eu que vivo, é Cristo quem vive em mim (Gl 2,20). As bem-aventuranças são transposição da cruz e da ressurreição para a existência do discípulo. Mas elas valem para o discípulo, porque primeiro se realizaram como modelo original em Cristo mesmo.


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Isso se torna ainda mais claro se agora nos voltarmos para a versão das bem-aventuranças segundo S. Mateus (cf. Mt 5,3-12). Quem lê com atenção o texto de S. Mateus vê que as bem-aventuranças são, no fundo, uma anterior biografia escondida de Jesus, um retrato da sua figura. Ele, que não tem onde reclinar a sua cabeça (Mt 8,20), é o verdadeiro pobre; Ele, que de si pode dizer: vinde a mim, porque Eu sou manso e humilde de coração (cf. Mt 11,29), é o verdadeiro manso; Ele é quem é puro de coração e, por isso, vê permanentemente Deus. Ele é o construtor da paz, aquele que sofre por causa de Deus: nas bem-aventuranças aparece o mistério de Cristo, e elas nos chamam para a comunhão com Cristo. Mas precisamente por causa do seu caráter cristológico escondido, as bem-aventuranças são também instruções para a Igreja, que nelas deve reconhecer o seu modelo – instruções para o seguimento, que toca a cada um individualmente, ainda que, segundo a pluralidade das vocações, de diferentes modos.


terça-feira, 28 de outubro de 2008

Festa de S. Simão e S. Judas


Festejar os apóstolos é sempre oportunidade de refletir sobre pontos importantíssimos para a fé cristã. Isto é verdade também para a festa que celebramos hoje, dos Santos Apóstolos Simão e Judas, mesmo que não saibamos muito sobre eles. De Simão, o Zelota (ou cananeu), os evangelhos apenas citam o nome e de Judas Tadeu, irmão de Tiago (identificado pela tradição como parente de Jesus, de acordo com Mc 6,3) lhe restou a pequenina epístola, que não traz muito mais dados sobre seu autor e uma única participação no Evangelho de S. João (14,22). Reflitamos brevemente sobre a vocação dos apóstolos conforme nos relata o Evangelho de hoje.
A escolha dos Doze Apóstolos é um processo muito significativo. Jesus passa a noite em oração – ele sempre fará isso nos momentos cruciais da sua vida e esse é um desses momentos. Porque, ao escolher os Doze dentre seus discípulos, Ele escolherá aqueles que irão desfrutar de sua presença para formá-los, moldá-los e prepará-los para continuar Sua missão. Esse caminho que os apóstolos vão traçar ao lado de Jesus é o Seu próprio caminho; com Ele compartilharão as alegrias, as tristezas, os momentos de descanso e agitação, tudo, enfim: eles serão testemunhas da radicalidade de Deus, que se faz em tudo homem como eles, mesmo na fraqueza, menos no pecado. (Fl 2,6-8; cf. Mt 26,37-39) E, após a Ressurreição, serão estes, a quem o Senhor chamou de amigos (Jo 15,15) e que receberam o Espírito Santo (Jo 20,22; At 1,8; 2,1-11), que serão enviados, a partir da Judéia e da Samaria, até os confins do mundo como testemunhas da Sua Ressurreição (At 1,8). Eis a missão dos Apóstolos: anunciar ao mundo: “Eu vi o Senhor” (Jo 20,18).
A missão dos Apóstolos é, portanto, a missão de Jesus. Quando o Senhor desce do monte com os Doze, uma grande multidão os cerca, buscando de Jesus a cura de suas enfermidades e a palavra que Ele tem a lhes oferecer. Do mesmo modo, os Apóstolos serão também cercados por enorme multidão para lhes ouvir a doutrina e serem curados de suas doenças (cf. At 5,12-16). Sobretudo como dispensadores dos mistérios divinos, os Apóstolos serão os responsáveis por disseminar a Santa Doutrina do Senhor e operar suas maravilhas pelos Sacramentos que Ele instituiu. Esta Doutrina e esses Sacramentos nos chegaram por meio dos Sucessores dos Apóstolos, os bispos ortodoxos que guardaram a fé católica que receberam d’Aqueles (Cânon Romano).
Assim, é motivo de grande alegria festejarmos os Apóstolos, porque celebramos a nossa fé e agradecemos a Deus por tão grande Dom. É através desses grandes ministros de Cristo, que deverão assentar-se em tronos para julgar as Doze Tribos de Israel (Mt 19,28; Lc 22,30), e cuja voz ressoa em toda a terra (Sl 18,5), que recebemos a fé católica que é para nós causa de conhecimento do Senhor e, portanto, de Salvação.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

As bem-aventuranças – II


Do Livro Jesus de Nazaré, de Bento XVI


Os paradoxos que Jesus apresenta nas bem-aventuranças exprimem a verdadeira situação dos crentes no mundo, descrita por S. Paulo repetidamente com base na sua experiência de vida e de sofrimento como apóstolo: “... considerados como impostores, ainda que sinceros; considerados tristes, mas sempre alegres; pobres, ainda que tenhamos enriquecido a muitos; como nada tendo, mas tudo possuindo” (2Cor 6,8-10). “Em tudo somos atribulados, mas não esmagados; perplexos, mas não desanimados; perseguidos, mas não desamparados; abatidos, mas não destruídos...” (2Cor 4,8-10) O que nas bem-aventuranças do Evangelho de S. Lucas é conselho e promessa, é em S. Paulo a experiência vivida do apóstolo. Ele se sente “colocado no último lugar”, como um condenado à morte e tornado espetáculo para o mundo, sem casa, insultado, difamado (1Cor 4,9-13). E, no entanto, ele envolve tal experiência numa alegria infinita; justamente como extraditado, que se despojou de tudo para levar Cristo aos homens, ele experimenta a relação interior entre a cruz e a ressurreição: somos entregues à morte “também para que se revele a vida de Jesus no nosso corpo mortal” (2Cor 4,11). Cristo continua a sofrer nos seus mensageiros, a cruz continua a ser sempre o seu lugar. Mas mesmo aí Ele é irrevogavelmente o ressuscitado. E se também o mensageiro de Jesus neste mundo ainda se encontra na história de sofrimento de Jesus, então também aí é sensível o brilho da ressurreição e gera uma alegria, uma “alegria” que é maior que a felicidade que antes podia ter experimentado nos caminhos do mundo. Só agora é que ele sabe o que realmente é “felicidade”, o que é verdadeira “alegria”, e reconhece assim como era pobre o que deve ser considerado pelos critérios comuns como satisfação e como fortuna.
Nos paradoxos da experiência de vida de S. Paulo, que correspondem aos paradoxos das bem-aventuranças, mostra-se o mesmo que de um outro modo S. João tinha expressado, quando caracterizara a cruz do Senhor como “elevação”, como entronização na grandeza de Deus. S. João junta numa palavra a cruz e a ressurreição, a cruz e a elevação, porque para ele na realidade uma é inseparável da outra. A cruz é o ato do “êxodo”, o ato do amor, que é tomado a sério até o extremo e que vai “até o fim” (Jo 13,1), e por isso é o lugar da glória, o lugar do toque autêntico e da união com Deus, que é o amor (1Jo 4,7.16). Assim, nesta visão de S. João concentra-se e torna-se compreensível o significado dos paradoxos do Sermão da Montanha.

sábado, 25 de outubro de 2008

Noções bem definidas do Espírito, segundo o ensinamento das Escrituras




Do Tratado sobre o Espírito Santo, de S. Basílio Magno, bispo e doutor da Igreja




Examinemos agora quais as noções geralmente aceitas sobre o Espírito, as que coletamos das Escrituras e as que nos foram transmitidas pela Tradição oral dos Padres. Em primeiro lugar, ao ouvir as denominações do Espírito, não se eleva a mente, não ergue os pensamentos para a mais sublime natureza? Ele recebe os nomes de “Espírito de Deus”, o “Espírito da verdade, que vem do Pai” (Jo 15,26), “Espírito reto”, “Espírito principal” (Sl 50,12-14). Mas, Espírito Santo é especialmente seu nome próprio, pois ele é o ser mais incorpóreo, inteiramente imaterial e simples. Por esta razão, o próprio Senhor ensinou à samaritana que acreditava necessário adorar a Deus em determinado lugar, que o ser incorpóreo é incircunscrito, dizendo: “Deus é espírito” (Jo 4,24). Por isso, quem ouve falar em Espírito não deve imaginar uma natureza circunscrita, ou sujeita a mudança e alteração, em tudo semelhante a uma criatura. Mas, quem eleva o pensamento ao ser mais sublime, necessariamente terá em mente uma substância inteligente, de poder infinito, grandeza ilimitada, fora do tempo e dos séculos, em nada ciosa de seus próprios bens. Para ele voltam-se todos os que anseiam pela santificação, para ele se dirigem os anelos dos que vivem segundo a virtude, quantos recebem refrigério de seu sopro, e são amparados para alcançar o fim adequado a sua natureza. Aperfeiçoa os outros, enquanto ele mesmo de nada carece. Não é um ser vivo que precise se refazer; ao contrário é provedor de vida. Não aumenta progressivamente, mas logo possui a plenitude; é consistente por si mesmo, está em toda parte. Origem da santificação, luz inteligível, concede por si mesmo certa iluminação a toda faculdade racional, a fim de que descubra a verdade. Inacessível por natureza, faz-se, contudo, inteligível, por bondade. Seu poder enche todas as coisas, mas somente se comunica aos que são dignos, não, porém, numa só medida, mas opera proporcionalmente à fé. Simples por essência, seu poder, contudo, se manifesta em milagres variados (Hb 2,4). Está presente todo inteiro a cada ser, embora todo inteiro em toda parte. Impassível na partilha, indefectível na comunicação, à semelhança do raio solar que agracia, como se fosse o único, àquele ao qual está presente, enquanto ilumina a terra, o mar, infiltrando-se também no ar. De igual modo, o Espírito está presente como se fosse o único, a cada um dos que são capazes de acolhê-lo; permanece intacto e comunica graça suficiente para todos. Os participantes da graça do Espírito dela usufruem quanto é possível a sua natureza, não, porém, à medida que ele pode transmiti-la.

As bem-aventuranças – I


Do Livro Jesus de Nazaré, de Bento XVI


As bem-aventuranças não raramente são apresentadas como a alternativa do Novo Testamento a respeito do Decálogo, por assim dizer a mais elevada ética dos cristãos ante os mandamentos do Antigo Testamento. Com tal concepção distorce-se totalmente o sentido destas palavras de Jesus. Jesus sempre pressupôs como evidente a validade do Decálogo (ver, por exemplo, Mc 10,19; Lc 16,17); no Sermão da Montanha são assumidos e aprofundados os mandamentos da segunda tábua, mas não abolidos (Mt 5,21-48); isso contradiria, ainda que diametralmente, a proposição fundamental que este diálogo sobre o Decálogo pressupõe: “Não penseis que vim revogar a lei ou os profetas; não vim revogá-la, mas completá-la. Porque, em verdade vos digo: até que passem o céu e a terra, não passará um só jota ou um só ápice da lei, sem que tudo se cumpra” (Mt 5,17s). (...) Jesus não pensa em anular o Decálogo; pelo contrário: Ele o reforça.

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Mas, então, o que são as bem-aventuranças? Elas se inserem, antes de mais, numa longa tradição da mensagem do Antigo Testamento, tal como a encontramos, por exemplo, no salmo 1 e no texto paralelo de Jeremias (Jr 17,7s): bem-aventurado o homem que confia no Senhor... São palavras que traduzem uma promessa, mas que servem ao mesmo tempo para o discernimento dos espíritos e assim se tornam instruções que indicam o caminho da sabedoria. A disposição que S. Lucas dá ao Sermão da Montanha elucida a direção especial das bem-aventuranças: “Erguendo os olhos para os seus discípulos...”. Cada um dos elementos das bem-aventuranças resulta do olhar para os discípulos; descrevem o estado dos discípulos de Jesus: são pobres, famintos, que choram, odiados e perseguidos (Lc 6,20ss). Trata-se não só de qualificações práticas, mas também teológicas dos discípulos – daqueles que passaram a seguir Jesus e se tornaram sua família.
Mas a situação empírica de ameaça, na qual Jesus vê os seus, torna-se promessa quando o olhar sobre eles for iluminado a partir do Pai. Na perspectiva da comunidade dos discípulos de Jesus, as bem-aventuranças são um paradoxo – os critérios mundanos são subvertidos, desde que as coisas sejam vistas na perspectiva correta, nomeadamente a partir do valor de Deus, que é diferente dos valores do mundo. Justamente os que são considerados pelo mundo como pobres e como perdidos são verdadeiramente os que são felizes, os que são abençoados e podem, em todos os seus sofrimentos, alegrar-se e rejubilar-se. As bem-aventuranças são promessas nas quais resplandece a nova imagem do mundo e do homem, que Jesus inaugura, a “inversão dos valores”. São promessas escatológicas, mas não devem ser entendidas como se a felicidade anunciada fosse adiada para um futuro distante e sem fim ou exclusivamente para o além. Quando o homem começa a ver e a viver a partir de Deus, quando ele se encontra na comunidade caminhando com Jesus, então ele vive com base em novos critérios, e já se torna presente algo do “eschaton”, do que ainda há de vir. De Jesus vem a felicidade para o meio da aflição.

Eu vim levar a lei à seu pleno cumprimento - Comentário às leituras do XXX Domingo Comum


Não penseis que eu vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento (Mt 5,17). Essa afirmação de Jesus no evangelho de Mateus ajuda-nos a compreender aquilo que se encontra nesse outro trecho do mesmo evangelho que a liturgia desse 30º domingo nos propõe.
Jesus, diante da pergunta de qual o maior mandamento, apresenta o amor a Deus e, em seguida, o amor ao próximo, como aqueles mandamentos do quais dependem toda a lei e os profetas (v.40).
Toda a lei e os profetas, portanto, resumem-se na decisão do coração humano em amar a Deus. Coração na Sagrada Escritura (leb) é o lugar das grandes decisões. A proposta do mandamento, propondo o amor a Deus implica na decisão por parte do homem em orientar toda a sua vida segundo o próprio Deus. Amar a Deus não se trata de um sentimento. Amar a Deus é uma atitude concreta de viver segundo o coração do próprio Deus. Nessa decisão está a raiz da “humanização” dos homens.
É do amor a Deus que se segue as demais prescrições indicadas pela perícope do livro do Êxodo (22,20-26) presente também na liturgia desse domingo. Quem ama a Deus, ver tudo a partir de sua ótica. A referência para a compreensão da realidade é própria relação pessoal de amor para com Deus. O amor ao próximo também é conseqüência dessa relação: ama-se o próximo em Deus e por causa de Deus.
No entanto, as palavras de Jesus no evangelho desse domingo não manifestam aquela plenitude para a qual Ele veio levar a lei. Em Jo 13,34 encontramos o corolário do mandamento do amor: Dou-vos um mandamento novo: que vos amei uns aos outros. Como eu vos amei, amai-vos uns aos outros. O paradigma para nós do cumprimento do mandamento do amor a Deus e ao próximo é o próprio Jesus. Ama de verdade quem é capaz de se esvaziar em favor dos outros, até doar tudo, doar a própria vida.
Porém, há de se convir que o amor a Deus e ao próximo da forma proposta nos moldes de Jesus parece algo impossível.
Na IV prece eucarística da liturgia romana rezamos: E, afim de não mais vivermos para nós, mas para ele – Jesus -, que por nós morreu e ressuscitou, enviou de vós, ó Pai, o Espírito Santo, como primeiro dom ao vossos fiéis para santificar todas as coisas, levando à plenitude a sua obra. Nós, cristãos, vivemos, porque a pessoa-dom, Espírito de Cristo foi derramado em nossos corações. Nele, como Cristo, vivemos e amamos a Deus e ao próximo. Por isso é possível amar a Deus, pois é o Espírito de Cristo que ama em nós.
O mandamento do amor a Deus e ao próximo continua em vigor para nós cristãos, mas esse mandamento tornou-se pelo Cristo Ressuscitado um dinamismo vivificado pelo Espírito Santo, tornando a nossa vida pessoal e eclesial uma realidade que se torna imitação do Senhor, como a comunidade de Tessalônica (cf. 1Ts 1,6).
Somente voltando-se para Deus com todo o coração, abrindo-nos ao seu Espírito, abandonando os falsos deuses que lá habitam, amaremos. Amar é uma tarefa difícil, compromete-nos e exige fidelidade a Deus e ao próximo. Mas basta-nos a graça do Seu Espírito e seremos ricos, ricos de muito amor. Amém.

Apresentação do blog


Veni, Creator Spiritus – Vinde, Espírito Criador! Com esta invocação começamos este blog, que recebe este nome porque toma como que por “patrono” o Divino Espírito que é Um com o Pai e com o Filho e fonte de toda a espiritualidade, que é alma da vida cristã. É este Espírito, Senhor e Vivificador, que nos faz cristãos, Ele que é o Espírito de Cristo, o mesmo que o Pai derramou para glorificar Seu Servo, Jesus Cristo, Deus Encarnado; é Ele que torna presente o mistério pascal de Cristo, pelo qual recebemos a filiação divina, o perdão dos pecados e a vida bem-aventurada; é Ele que nos faz co-herdeiros de Cristo, transfigurando-nos em Sua pessoa. Assim, debaixo das asas do Espírito Santo colocamos este espaço para reflexões acerca daquilo que constitui nossa Esperança e nossa Vida.
Dizemos nós porque somos quatro os autores: cada um sob inspiração de um Santo Doutor da Igreja do Oriente: Santo Atanásio, São Basílio Magno, São Gregório Nazianzeno e São João Crisóstomo. Cada artigo é obra de um autor; todos, no entanto, sob o mesmo impulso e mesmo sentir. Escolhemos os doutores do Oriente justamente porque a espiritualidade cristã oriental é a que mais leva em conta o protagonismo do Espírito, que, embora presente, às vezes fica relegado a segundo plano na espiritualidade ocidental.
O objetivo deste espaço é desenvolver reflexões que ajudem a orar e meditar nos mistérios divinos a todos quanto transitem por ele. Essas reflexões são fruto, em primeiro lugar, da própria experiência de oração dos autores, oração principalmente litúrgica, mas também de meditações pessoais e comunitárias, leituras espirituais e, por último mas não menos importante, fruto de uma lectio divina constante. Procuramos sempre ter por referencia a Sagrada Tradição da Igreja, mas levando em consideração também a teologia, a espiritualidade e a vida cristã nos tempos de hoje.
Acreditamos que a resposta que o Cristianismo deve dar às questões do mundo moderno só pode ser dada através de uma pregação e de uma vivência autêntica da Palavra de Deus em sua integralidade, iluminada pelo Espírito Santo, sob a guia dos Pastores da Igreja. É com este espírito e com estas disposições que invocamos as bênçãos de Deus para tal trabalho e para todos os que possam se beneficiar dele. Assim, invocamos mais uma vez:

Veni, creátor Spíritus,
mentes tuórum vísita,
imple supérna grátia,
quae tu creásti, péctora.

Qui díceris Paráclitus,
donum Dei altíssimi,
fons vivus, ignis, cáritas
et spiritális únctio.

Tu septifórmis múnere,
dextrae Dei tu dígitus,
tu rite promíssum Patris
sermóne ditans gúttura.

Accénde lumen sénsibus,
infúnde amórem córdibus,
infírma nostri córporis
virtúte firmans pérpeti.

Hostem repéllas lóngius
pacémque dones prótinus;
ductóre sic te práevio
vitémus omne nóxium.

Per te sciámus da Patrem
noscámus atque Fílium,
te utriúsque Spíritum
credámus omni témpore. Amen.