segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Carta de Santo Inácio de Antioquia aos Romanos - 1

Saudação

Inácio, também chamado Teóforo, à Igreja que recebeu a misericórdia, por meio da magnificência do Pai Altíssimo e de Jesus Cristo, seu Filho único; à Igreja amada e iluminada pela vontade daquele que quis todas as coisas que existem, segundo fé e amor dela por Jesus Cristo, nosso Deus; à Igreja que preside na região dos romanos, digna de Deus, digna de honra, digna de ser chamada feliz, digna de louvor, digna de sucesso, digna de pureza, que preside ao amor, que porta a lei de Cristo, que porta o nome do Pai; eu a saúdo em nome de Jesus Cristo, o Filho do Pai. Àqueles que física e espiritualmente estão unidos a todos os seus mandamentos, inabalavelmente repletos da graça de Deus, purificados de toda coloração estranha, eu lhes desejo alegria pura em Jesus Cristo, nosso Deus.

Ver a comunidade e ir a Deus

Depois de rezar a Deus, obtive dele ver vossos rostos santos, pois eu tinha pedido insistentemente receber esse favor. Acorrentado em Jesus Cristo, espero saudar-vos, se é vontade de Deus que eu seja encontrado digno de ir até o fim. Com efeito, o começo é fácil, mas eu queria obter a graça de receber, sem obstáculo, a minha herança. Receio, porém, que o vosso amor me faça mal. De fato, para vós, é fácil fazer o que quereis; para mim, porém, é difícil alcançar a Deus, se não me poupardes.

Não impedir o martírio

Não desejo que agradeis aos homens, mas que agradeis a Deus, como de fato o fazeis. Eu não teria outra ocasião como esta de alcançar a Deus, e vós, se ficásseis calados, poderíeis assinar obra melhor. Se guardásseis o silêncio a meu respeito, eu me tornaria pertencente a Deus. Se amais minha carne, porém, ser-me-á preciso novamente correr. Não desejeis nada para mim, senão ser oferecido em libação a Deus, enquanto ainda existe altar preparado, a fim de que, reunidos em coro no amor, canteis ao Pai, por meio de Jesus Cristo, por Deus se ter dignado fazer com que o bispo da Síria se encontrasse aqui, fazendo-o vir do Oriente para o Ocidente. É bom deitar-se, longe do mundo, em direção a Deus, para depois nele se levantar.

Ser cristão de fato

Nunca tiveste inveja de ninguém; ensinastes a outros. Quanto a mim, quero que permaneça firme o que ensinastes. Para mim, peçam apenas a força interior e exterior, para que eu não só fale, mas também queira; para que eu não só me diga cristão, mas de fato seja encontrado como tal. Se eu de fato o sou, poderei também ser chamado como tal, e ser verdadeiramente fiel, quando não for mais visível para o mundo. Nada do que é visível é bom. De fato, nosso Deus Jesus Cristo, estando agora com seu Pai, tornar-se manifesto ainda mais. O cristianismo, ao ser odiado pelo mundo, mostra que não é obra de persuasão, mas de grandeza.

Fé em Cristo


Esse trecho da carta de Santo Inácio de Antioquia aos Tralianos constitui um dos primeiros resumos da fé cristã, que mais tarde seriam condensados no Símbolo dos Apóstolos.

Sede, portanto, surdos quando alguém vos fala sem Jesus Cristo, da linhagem de Davi, nascido de Maria, que verdadeiramente nasceu, que comeu e bebeu, que foi verdadeiramente perseguido sob Pôncio Pilatos, que foi verdadeiramente crucificado e morreu à vista do céu, da terra e dos infernos. Ele realmente ressuscitou dos mortos, pois o seu Pai o ressuscitou, e da mesma forma o seu Pai ressuscitará em Jesus Cristo também a nós, que nele cremos e sem o qual não temos a verdadeira vida.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

É permitido aos cristãos serem, apoiarem ou votarem em comunistas?

É permitido aos cristãos serem, apoiarem ou votarem em comunistas?

Um lembrete e uma advertência aos cristãos, para que pensem duas vezes na hora de escolher seus candidatos. Eis os decretos de Pio XII e João XXIII sobre o comunismo.

Atenção para o fato de que não basta ser comunista de carteirinha: se alguém professa o ideário comunista, mesmo que se diga católico, é comunista! Atenção, porque quase todos os candidatos o professam mais ou menos!

* * *

Decreto contra o comunismo

Decreto do S. Ofício, 28 jun. (1º jul.) 1949.

Ed.: AAS 41 (1949) 334.

Qu.: 1. Utrum licitum sit, partibus communistarum nomen dare vel eisdem favorem praestare.

2. Utrum licitum sit edere, propagare vel legere libros, periodica, diaria vel folia, quae doctrinae vel actioni communistarum patrocinantur, vel in eis scribere;

3. Utrum christifideles, qui actus, de quibus in n. 1 et 2, scienter et libere posuerint, ad sacramenta admitti possint;

4. Utrum christifidelis, qui communistarum doctrinam materialisticam et antichristianam profitentur, et in primis qui eam defendunt vel propagant, ispo facto, tamquam apostatae a fide catholica, incurrant in excommunicationem speciali modo Sedi Apostolicae reservatam.

Resp. (confirmata a Summo Pontifice, 30. Iun.):

Ad. 1 Negative: Communismus enim est materialisticus et antichristianus; communistarum autem duces, etsi verbis quandoque profitentur se religionem non oppugnare, re tamen, sive doctrina sive actione, Deo veraeque religioni et Ecclesiae Christi sese infensos esse ostendunt.

Ad 2. Negative: Prohibentur enim ipso iure (cf. CIC, can. 1399).

Ad 3. Negative, secundum ordinaria principia de sacramentis denegandis iis, qui non sunt dispositi.

Ad 4. Affirmative.

* * *

Perguntas: 1. É permitido aderir ao partido comunista ou favorecê-lo de alguma maneira [cf adiante o decreto de João XXIII]?

2. É permitido publicar, divulgar ou ler livros, revistas, jornais ou tratados que sustentam a doutrina e ação dos comunistas ou escrever neles?

3. Fiéis cristãos que consciente e livremente fizeram o que está em 1 e 2, podem ser admitidos aos sacramentos?

4. Fiéis cristãos que professam a doutrina materialista e anticristã do comunismo, e sobretudo os que a defendem ou propagam, incorrem pelo próprio fato, como apóstatas da fé católica, na excomunhão reservada de modo especial à Sé Apostólica?

Respostas (confirmadas pelo Sumo Pontífice 30/06):

Quanto ao 1.: Não; o comunismo é de fato materialista e anticristão; embora declarem às vezes em palavras que não atacam a religião, os comunistas demonstram de fato, quer pela doutrina, quer pelas ações, que são hostis a Deus, à verdadeira religião e à Igreja de Cristo.

Quanto ao 2.: Não, pois são proibidos pelo próprio direito (cf. CIC, cân. 1399).

Quanto ao 3.: Não, segundo os princípios ordinários determinando a recusa dos sacramentos àquele que não têm a disposição requerida.

Quanto ao 4.: Sim.

(Fonte: Denzinger-Hünermann, Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas, Loyola, 2007, N. 3865.)

* * *

Eleição de deputados que apóiam o comunismo

Resposta do S. Ofício, 25 mar. (4 abr) 1959

Ed.: AAS 51 (1959) 271s.

Qu.: Utrum catholicis civilibus in eligendis populi oratoribus liceat suffragium dare iis partibus vel candidatis, qui, etsi principia catholicae doctrinae opposita non pro fiteantur, immo etiam christianum nomen sibi assumant, re tamen communistis sociantur et sua agendi ratione iisdem favent.

Resp. (confirmata a Summo Pontifice, 2. Apr.): Negative, ad normam Decreti S. Officii 1. Iul. 1949, n.1.

Pergunta: É permitido aos cidadãos católicos, ao elegerem os representantes do povo, darem seu voto a partidos ou a candidatos que, mesmo se não proclamam princípios contrários à doutrina católica e até reivindicam o nome de cristãos, apesar disto se unem de fato aos comunistas e os apóiam por sua ação?

Resp. (confirmada pelo Sumo Pontífice em 2 abr.): Não, segundo a diretiva do decreto do S. Ofício de 1º de julho de 1949, n. 1.

(Fonte: Denzinger-Hünermann, Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral. São Paulo: Paulinas, Loyola, 2007, N. 3930)

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Instituição de Leitor e Acólito no Seminário Nossa Senhora da Assunção

No dia 15 de agosto, Solenidade da Assunção de Nossa Senhora aos céus, o Seminário Provincial de Maceió comemorou sua padroeira numa solene e digna celebração litúrgica onde o Arcebispo de Maceió, D. Antônio Muniz Fernandes, OCarm, instituiu para os ministérios de Leitor e Acólito da Santa Igreja três seminaristas: Clayton, Divaldo e Rodrigo. Eis algumas fotos da bela celebração.

domingo, 15 de agosto de 2010

Sem o bispo, não se pode falar de Igreja


Da carta aos tralianos, de Santo Inácio de Antioquia, bispo e mártir (séc I)

Quando vos submeteis ao bispo como a Jesus Cristo, demonstrais a mim que não viveis segundo os homens, mas segundo Jesus Cristo, que morreu por nós, a fim de que, crendo em sua morte, possais escapar da morte. É necessário, portanto, como já o fazeis, nada realizar sem o bispo, mas também submeter-vos ao presbitério, como aos apóstolos de Jesus Cristo, nossa esperança, no qual nos encontraremos em toda a nossa conduta. É preciso, também, que os diáconos, ministros dos mistérios de Jesus Cristo, agradem a todos e de todos os modos. Com efeito, não é de comida e bebida que eles são ministros, e sim servidores da Igreja de Deus. É preciso, portanto, que eles evitem qualquer tipo de repreensão, como se evita o fogo.

Da mesma forma, todos respeitem os diáconos como a Jesus Cristo, e também ao bispo, que é a imagem do Pai, e os presbíteros como à assembléia dos apóstolos. Sem eles, não se pode falar de Igreja. Tenho certeza que pensais do mesmo modo a respeito disso. Com efeito, recebi e tenho comigo um exemplar de vosso amor ao vosso bispo: a postura dele é grande ensinamento e sua mansidão é uma força. Penso que até os ateus o respeitam. Pelo fato de vos amar, eu vos poupo, pois eu vos poderia escrever a esse respeito com mais severidade. Sendo um condenado, eu jamais pensaria em vos dar ordens como apóstolo.

(...)

Eu vos exorto, portanto, não eu propriamente, mas o amor de Jesus Cristo, a usar somente alimento cristão, abstendo-se de toda erva estranha, que é a heresia. Aqueles que, para terem crédito, misturam Jesus Cristo consigo mesmos, são como aqueles que oferecem veneno mortal misturado com vinho melado. O incauto o toma com prazer, mas nesse prazer nefasto lhe dá a própria morte.

Cuidado, portanto, com essas pessoas. Fazei-o sem vos encher de orgulho, permanecendo inseparáveis de Jesus Cristo Deus, do bispo e dos preceitos dos apóstolos. Aquele que está dentro do santuário é puro; mas aquele que está fora do santuário não é puro; ou seja, aquele que age sem o bispo, sem o presbitério e os diáconos, esse não tem consciência pura.

Não é que eu tenha sabido alguma coisa desse tipo a vosso respeito, mas, pelo amor que vos tenho, eu vos advirto, prevendo as ciladas do diabo. Portanto, armai-vos com doce paciência e recriai-vos na fé, que é a carne do Senhor, e no amor, que é o sangue de Jesus Cristo. Ninguém de vós tenha coisa alguma contra seu próximo. Não deis motivo aos pagãos, a fim de que a multidão de Deus não seja blasfemada por causa de alguns insensatos. De fato, ai daquele que, por sua leviandade, faz com que “o meu nome seja blasfemado”.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Viver na fé e na unidade

Da carta aos Magnésios, de Santo Inácio de Antioquia, bispo e mártir (séc. I)

É preciso não só levar o nome de cristão, mas ser de fato. Alguns falam sempre do bispo, mas depois agem de modo independente. Estes não parecem ter boa consciência, pois não se reúnem para o culto de modo válido, conforme o mandamento.

(...) [Eu] vos peço que estejais dispostos a fazer todas as coisas na concórdia de Deus, sob a presidência do bispo, que ocupa o lugar de Deus, dos presbíteros, que representam o colégio dos apóstolos, e dos diáconos, que são muito caros para mim, aos quais foi confiado o serviço de Jesus Cristo, que antes dos séculos estava junto do Pai e por fim se manifestou. Tendo todos essa unidade de sentimentos que vem de Deus, respeitai-vos mutuamente. Que ninguém olhe o seu próximo segundo a carne, mas amai-vos uns aos outros em Jesus Cristo. Que não haja nada entre vós que vos possa dividir, mas uni-vos ao bispo e aos chefes como sinal e ensinamento de incorruptibilidade.

Assim como o senhor nada fez, nem por si mesmo nem por meio de seus apóstolos, sem o Pai, com o qual ele é um, também vós não façais nada sem o bispo e os presbíteros. Não tenteis fazer passar por louvável coisa alguma que fizerdes sozinhos. Pelo contrário, reunidos em comum, haja uma só oração, uma só súplica, um só espírito, uma só esperança no amor, na alegria imaculada, que é Jesus Cristo: nada é melhor do que ele. Correi todos juntos como ao único templo de Deus, ao redor do único altar, em torno do único Jesus Cristo, que saiu do único Pai e que era único em si e para ele voltou.

(...)

Procurai manter-vos firmes nos ensinamentos do Senhor e dos apóstolos, para que prospere tudo o que fizerdes na carne e no espírito, na fé e no amor, no Filho, no Pai e no Espírito, no princípio e no fim, unidos ao vosso digníssimo bispo e à preciosa coroa espiritual formada pelos vossos presbíteros e diáconos segundo Deus. Sejam submissos ao bispo e também uns aos outros, assim como Jesus Cristo se submeteu, na carne, ao Pai, e os apóstolos se submeteram a Cristo, ao Pai e ao Espírito, a fim de que haja união, tanto física como espiritual.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Encíclica de Pio XI sobre o Comunismo Ateu - 5

V - MINISTROS E AUXILIARES DESTA OBRA SOCIAL DA IGREJA

OS SACERDOTES

60. Para a obra mundial de salvação que temos vindo traçando, e para a aplicação dos remédios que ficam brevemente apontados, ministros e obreiros evangélicos designados pelo divino Rei Jesus Cristo são em primeira linha os sacerdotes. A eles, por vocação especial, sob a guia dos sagrados Pastores e em união de filial obediência com o Vigário de Cristo na terra, foi confiada a missão de conservar aceso no mundo o facho da fé e de infundir nos fiéis aquela sobrenatural confiança com que a Igreja, em nome de Cristo, tem combatido e vencido tantas outras batalhas: “Esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé” (1 Jo 5, 4).

61. De modo particular recordamos aos sacerdotes a exortação de Nosso Predecessor, Leão XIII, tantas vezes repetida, de ir ao operário; exortação que Nós fazemos Nossa e completamos: “Ide ao operário, especialmente ao operário pobre, e em geral, ide aos pobres”, seguindo nisto os ensinamentos de Jesus Cristo e da sua Igreja. Os pobres, efetivamente são os que se acham mais expostos às ciladas dos agitadores, que exploram a sua mísera condição, para lhes atear no peito a inveja contra os ricos e excitá-los a tomarem pela força o que lhes parece que a fortuna lhes negou injustamente; e, se o Sacerdote não vai aos operários, aos pobres, para os prevenir ou desenganar dos preconceitos e das falsas teorias, chegarão a ser fácil presa dos apóstolos, do comunismo.

62. Não podemos negar que muito se tem feito já neste sentido, especialmente depois das Encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo anno; e com paterna complacência saudamos o industrioso zelo pastoral de tantos bispos e sacerdotes, que vão excogitando e ensaiando, embora com a devida prudência e cautela, novos métodos de apostolado que melhor correspondam às exigências modernas. Mas tudo isto é ainda muito pouco para as presentes necessidades. Assim como, quando a pátria está em perigo, tudo quanto não é estritamente necessário ou não é diretamente ordenado à urgente necessidade da defesa comum, passa a segunda linha; assim também em nosso caso, qualquer outra obra, por mais bela e boa que seja, deve ceder o passo à vital necessidade de salvar as próprias bases da fé e da civilização cristã. E assim, nas paróquias os sacerdotes, dando embora materialmente o que é necessário à cura ordinária dos fiéis, reservem o mais e o melhor das suas forças e da sua atividade à reconquista das massas trabalhadoras para Cristo e para a Igreja e a fazer penetrar o espírito cristão nos meios que lhe são mais refratários. Nas massas populares, encontrarão uma correspondência e uma abundância de frutos inesperada, que os compensará do duro trabalho do primeiro arroteamento; como temos visto e vemos em Roma e em muitas outras metrópoles, onde, à sombra das novas igrejas, que vão surgindo nos bairros periféricos, se vão organizando fervorosas comunidades paroquiais e se operam verdadeiros milagres de conversão entre populações que eram hostis à religião, só porque a não conheciam.

63. Mas o meio mais eficaz de apostolado entre as multidões dos pobres e dos humildes é o exemplo do sacerdote, o exemplo de todas as virtudes sacerdotais quais as descrevemos em Nossa Encíclica Ad Catholici Sacerdotii (20 de dezembro de 1935: A.A.S., vol. XXVIII (1936), págs. 5-53); no presente caso, porém, de modo especial, é necessário um luminoso exemplo de vida humilde, pobre, desinteressada, cópia fiel do Divino Mestre que podia proclamar com divina franqueza: “As raposas têm os seus covis e as aves do céu os seus ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8, 20). Um sacerdote verdadeira e evangelicamente pobre e desinteressado faz milagres de bem no meio do povo, como um São Vicente de Paulo, um Cura d’Ars, um Cottolengo, um Dom Bosco e tantos outros; ao passo que um sacerdote avaro e interesseiro, como recordamos na citada Encíclica, ainda quando se não precipite, como judas, no abismo da traição, será pelo menos um oco “bronze a ressoar” e um inútil “címbalo a retinir” (1 Cor 13, 1), e muitas vezes antes obstáculo que instrumento de graça no meio do povo. E, se o sacerdote secular ou regular, por dever de ofício, tem que administrar bens temporais, lembre-se que não somente terá obrigação de observar escrupulosamente tudo quanto prescrevem a caridade e a justiça, senão que de modo particularmente deve mostrar-se verdadeiro pai dos pobres.

A AÇÃO CATÓLICA

64. Depois do clero dirigimos o Nosso paternal convite aos nossos queridíssimos filhos leigos, que militam nas fileiras da Ação Católica, que nos é tão cara e que, como já declaramos em outra ocasião (13 de maio de 1936, A.A.S., vol. XXIX (1937), págs. 139-144), é um “auxílio particularmente providencial”, para a obra da Igreja nestas circunstâncias tão difíceis. De fato, a Ação Católica é também apostolado social, enquanto tende a difundir o Reinado de Jesus Cristo não só nos indivíduos mas também na família e na sociedade. Por isso deve, antes de tudo, atender a formar com especial cuidado os seus membros e a prepará-los, para as santas batalhas do Senhor. A este trabalho formativo, mais que nunca urgente e necessário, que deve preceder a ação direta e efetiva, servirão certamente os círculos de estudos, as semanas sociais, os cursos orgânicos de conferências e todas as demais iniciativas aptas para dar a conhecer a solução dos problemas sociais em sentido cristão.

65. Soldados da Ação Católica tão bem preparados e adestrados serão os primeiros e imediatos apóstolos dos seus companheiros de trabalho e tornar-se-ão os preciosos auxiliares do Sacerdote, para levarem a luz da verdade e aliviarem as graves misérias materiais e espirituais, em inumeráveis zonas refratárias à ação do ministro de Deus, ou por inveterados preconceitos contra o clero ou por deplorável apatia religiosa. Cooperar-se-á desse modo, sob a direção de Sacerdotes particularmente experimentados, naquela assistência religiosa às classes trabalhadoras, que temos tanto a peito, por ser o meio mais apto para preservar aqueles Nossos amados filhos da cilada comunista.

66. Além deste apostolado individual, muitas vezes oculto, mas sobremaneira útil e eficaz, é função da Ação Católica disseminar amplamente, por meio da propaganda oral e escrita, os princípios fundamentais que hão de servir para a construção de uma ordem social cristã, como se depreendem dos documentos pontifícios.

ORGANIZAÇÕES AUXILIARES

67. Em torno da Ação Católica cerram fileiras as organizações que Nós saudamos já como auxiliares da mesma. Com paternal afeto exortamos também estas organizações tão prestimosas a consagrarem-se à grande missão de que tratamos, que atualmente supera a todas as outras pela sua vital importância.

ORGANIZAÇÕES DE CLASSE

68. Pensamos também nas organizações de classe: de operários, de agricultores, de engenheiros, de médicos, de patrões, de homens de estudo e outras semelhantes; homens e mulheres, que vivem nas mesmas condições culturais e quase naturalmente se reuniram em agrupamentos homogêneos. São precisamente estes grupos e estas organizações que estão destinadas a introduzir na sociedade aquela ordem, que tínhamos na mente na Nossa Encíclica Quadragesimo anno, e a difundir assim o reconhecimento da realeza de Cristo nos diversos campos da cultura e do trabalho.

69. E se, pela transformação das condições da vida econômica e social, o Estado julgou dever intervir até o ponto de assistir e regular diretamente tais instituições com particulares disposições legislativas, salvo o respeito devido à liberdade e às iniciativas particulares; também não pode nessas circunstâncias a Ação Católica manter-se estranha à realidade, antes deve com prudência prestar a sua contribuição de pensamento, com o estudo dos novos problemas à luz da doutrina católica, e da atividade, com a participação leal e voluntária dos seus membros nas novas formas e instituições, levando-lhes o espírito cristão, que é sempre princípio de ordem e de mútua e fraterna colaboração.

APELO AOS OPERÁRIOS CATÓLICOS

70. Uma palavra particularmente paterna quiséramos dirigir aos Nossos queridos operários católicos, jovens e adultos, os quais, talvez em prêmio da sua fidelidade por vezes heróica nestes tempos tão difíceis, receberam missão muito nobre e árdua. Sob a direção dos seus Bispos e Sacerdotes, é a eles que cumpre reconduzir à Igreja e a Deus aquelas imensas multidões de irmãos seus de trabalho, os quais, exacerbados por não haverem sido compreendidos nem tratados com a dignidade a que tinham direito, se afastaram de Deus. Demonstrem os operários católicos com seu exemplo, com suas palavras, a esses seus irmãos transviados que a Igreja é Mãe cheia de ternura para todos os que trabalham e sofrem, e que jamais faltou nem faltará a seu sagrado dever materno de defender seus filhos. Se esta missão, que eles devem cumprir nas minas, nas fábricas, nos estaleiros, onde quer que se trabalha, reclama por vezes grandes sacrifícios, lembrem-se que o Salvador do mundo deu não só exemplo do trabalho, senão também o do sacrifício.

NECESSIDADE DE CONCÓRDIA ENTRE OS CATÓLICOS

71. Assim pois, a todos os Nossos filhos, de todas as classes sociais, de todas as nações, de todos os grupos religiosos e leigos da Igreja, quiséramos dirigir um novo e mais urgente apelo à concórdia. Muitas vezes Nosso coração paterno se tem afligido com as divisões, fúteis muitas vezes em suas causas, mas sempre trágicas em suas conseqüências, que põem em luta os filhos duma mesma Mãe, a Igreja. Assim se vê que os agentes da desordem, que não são tão numerosos, aproveitando-se destas discórdias, lhes exasperam o azedume, e acabam por lançar os mesmos católicos uns contra os outros. Depois dos acontecimentos destes últimos meses, deveria parecer supérfluo o Nosso aviso. Repetimo-lo, porém, uma vez mais para aqueles que o não compreenderam, ou talvez não o querem compreender. Os que trabalham por aumentar as distensões entre católicos, tomam sobre si uma tremenda responsabilidade diante de Deus e da Igreja.

APELO A TODOS OS QUE CRÊEM EM DEUS

72. Mas a esta luta, empenhada pelo poder das trevas contra própria idéia da Divindade, é-Nos grato esperar que, além de todos aqueles que se gloriam do nome de Cristo, se oponham também denodadamente todos quantos crêem em Deus e o adoram, que são ainda a imensa maioria da humanidade. Renovamos, por isso, o apelo que já, há cinco anos, lançamos em Nossa Encíclica Caritate Christi, para que também eles leal e cordialmente concorram de sua parte “para afastar da humanidade o grande perigo que a todos ameaça”. Porquanto, - como então dizíamos -, se “a crença em Deus é o fundamento inabalável de toda a ordem social e de toda a responsabilidade na terra, todos os que não querem a anarquia e o terror devem trabalhar energicamente para que os inimigos da religião não alcancem o fim que tão abertamente proclamam” (Encíclica Caritate Christi, 3 de maio de 1932: A.A.S., vol. XXIX (1932), pág. 184).

DEVERES DO ESTADO CRISTÃO

Ajudar a Igreja

73. Temos exposto, Veneráveis Irmãos, a função positiva, de ordem, a um tempo, doutrinal e prática, que a Igreja assume em virtude da mesma missão, que Jesus Cristo lhe confiou, de edificar a sociedade cristã e, em nossos tempos, de combater e desbaratar os esforços do comunismo; e fizemos apelo a todas e a cada uma das classes da sociedade. Para esta mesma empresa espiritual da Igreja deve também concorrer positivamente o Estado cristão, ajudando em seu empenho a Igreja com os meios que lhes são próprios, os quais, embora externos, dizem também respeito, em primeiro lugar, ao bem das almas.

74. Por isso os Estados porão todo o cuidado em impedir que a propaganda atéia, que destrói todos os fundamentos da ordem, faça estragos em seus territórios, porque não poderá haver autoridade na terra, se não se reconhece a autoridade da Majestade divina, nem será firme o juramento, que não se faça em nome do Deus vivo. Repetimos o que tantas vezes e com tanta insistência temos dito, nomeadamente na Nossa Encíclica Caritate Christi:Como pode sustentar-se um contrato qualquer, e que valor pode ter um tratado, onde falte toda a garantia de consciência? E como pode falar-se de garantia de consciência, onde falte toda a fé em Deus, todo o temor de Deus? Destruída esta base, desmorona-se com ela toda a lei moral, e não haverá já remédio nenhum que possa impedir a gradual, mas inevitável ruína dos povos, da família, do Estado, da própria civilização humana” (Encíclica Caritate Christi, 3 de maio de 1932: A.A.S., vol. XXIV (1932), pág. 190).

Providências do bem comum

75. Além disso, deve o Estado pôr todo o cuidado em criar aquelas condições materiais de vida, sem as quais não pode subsistir uma sociedade ordenada, e em procurar trabalho especialmente aos pais de família e à juventude. Para esse fim induzam-se as classes ricas a que, pela urgente necessidade do bem comum, tomem sobre si aqueles encargos, sem os quais a sociedade humana não pode salvar-se, nem elas próprias poderiam encontrar salvação. Mas as providências, que o Estado toma para esse fim, devem ser tais que atinjam efetivamente os que de fato têm nas mãos os maiores capitais e continuamente os vão aumentando com grave prejuízo dos outros.

Prudente e sóbria administração

76. O próprio Estado, lembrando-se de suas responsabilidades diante de Deus e da sociedade, sirva de exemplo a todos os demais com uma prudente e sóbria administração. Hoje mais que nunca a gravíssima crise mundial exige que aqueles que dispõem de fundos enormes, fruto do trabalho e do suor de milhões de cidadãos, tenham sempre diante dos olhos unicamente o bem comum e procurem promovê-lo o mais possível. Os funcionários do Estado e todos os empregados cumpram também, por dever de consciência os seus deveres com fidelidade e desinteresse, seguindo os luminosos exemplos antigos e recentes de homens insignes, que num trabalho sem descanso sacrificaram toda a sua vida pelo bem da pátria. E no comércio dos povos entre si, procure-se solicitamente remover aqueles obstáculos artificiais da vida econômica, que brotam do sentimento da desconfiança e do ódio, recordando que todos os povos da terra formam uma única família de Deus.

Deixar liberdade à Igreja

77. Mas, ao mesmo tempo, deve o Estado deixar à Igreja plena liberdade de cumprir a sua missão divina e espiritual, para contribuir assim poderosamente para salvar os povos da terrível tormenta da hora presente. Por toda a parte se faz hoje um angustioso apelo às forças morais e espirituais; e com toda a razão, porque o mal que se deve combater é antes de tudo, considerado em sua primeira origem, um mal de natureza espiritual, e desta fonte é que brotam, por uma lógica diabólica, todas as monstruosidades do comunismo. Ora, entre as forças morais e religiosas, sobressai incontestavelmente a Igreja Católica; e por isso o mesmo bem da humanidade exige que não se ponham obstáculos à sua atividade.

78. Proceder de outro modo e pretender ao mesmo tempo alcançar o fim com meios puramente econômicos e políticos, é ficar à mercê de um erro perigoso. E quando se exclui a religião da escola, da educação, da vida pública, e se expõem ao ludíbrio os representantes do Cristianismo e seus sagrados ritos, não se promove porventura aquele materialismo, donde germina o comunismo? Nem a força, ainda a mais bem organizada, nem os ideais terrenos, por mais grandiosos e nobres que sejam, podem dominar um movimento, que tem suas raízes precisamente na demasiada estima dos bens da terra.

79. Confiamos que aqueles que dirigem os destinos das nações, por pouco que sintam o perigo extremo que ameaça hoje os povos, compreenderão cada vez melhor o supremo dever de não impedir à Igreja o cumprimento da sua missão; tanto mais que, ao cumpri-la, enquanto procura a felicidade eterna do homem trabalha também inseparavelmente pela verdadeira felicidade temporal.

APELO PATERNO AOS TRANSVIADOS

80. Mas não podemos pôr termo a esta Carta Encíclica, sem dirigir uma palavra àqueles mesmos filhos Nossos que estão já contagiados ou tocados do mal comunista. Exortamo-los vivamente a que ouçam a voz do Pai que os ama; e rogamos ao Senhor que os ilumine, para que deixem o caminho que os despenha a todos numa imensa e catastrófica ruína, e reconheçam também eles que o único Salvador é Jesus Cristo Senhor Nosso: “porque não há sob o céu nenhum outro nome dado aos homens, pelo qual possamos esperar ser salvos” (At 4, 12).

CONCLUSÃO

SÃO JOSÉ, MODELO E PATRONO

81. E, para apressar a “Paz de Cristo no Reino de Cristo” (Encíclica Ubi Arcano, 23 de dezembro de 1922: A.A.S., vol. XIV (1922), pág. 619), por todos tão desejada, pomos a grande ação da Igreja Católica contra o comunismo ateu mundial sob a égide do poderoso Protetor da Igreja, São José. Ele pertence à classe operária e experimentou o peso da pobreza, em si e na Sagrada Família, de que era chefe vigilante e afetuoso; a ele foi confiado o Deus Menino, quando Herodes mandou contra ele os seus sicários. Com uma vida de fidelíssimo cumprimento do dever cotidiano, deixou um exemplo de vida a todos os que têm de ganhar o pão com o trabalho de suas mãos e mereceu ser chamado o Justo, exemplo vivo daquela justiça cristã, que deve reinar na vida social.

82. Com os olhos no alto, a nossa fé vê os novos céus e a nova terra; de que fala o Nosso primeiro Antecessor, São Pedro (2 Pdr 3, 13; cf. Is 66, 22; Apc 21, 1). Enquanto as promessas dos falsos profetas da terra se desvanecem em sangue e lágrimas, brilha com celeste beleza a grande profecia apocalíptica do Redentor do mundo: “Eis que Eu renovo todas as coisas” (Apc 21, 5).

Não Nos resta, Veneráveis Irmãos, senão elevar as mãos paternas e fazer descer sobre Vós, sobre o vosso Clero e povo, sobre toda a grande Família Católica, a Bênção Apostólica.

Dada em Roma, junto de São Pedro, na festa de São José, Padroeiro da Igreja Universal, no dia 19 de março de 1937, ano XVI do Nosso Pontificado.

PIO XI PP.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Encíclica de Pio XI sobre o Comunismo Ateu - 4


IV - REMÉDIOS E MEIOS

NECESSIDADE DE RECORRER A MEIOS DE DEFESA

39. Tal é, Veneráveis Irmãos, a doutrina da Igreja, a única que, como em qualquer outro campo, assim também no campo social, pode projetar verdadeira luz, a única doutrina de salvação em face da ideologia comunista. Mas é necessário que esta doutrina se realize cada vez mais na prática da vida, conforme o aviso do Apóstolo São Tiago: “Sede... cumpridores da palavra e não simples ouvintes, enganando-vos a vós mesmos” (Tg 1, 22), porquanto, o que na hora atual há de mais urgente é aplicar com energia os remédios oportunos, para opor-se eficazmente à revolução ameaçadora que se vai preparando. Alimentamos a firme confiança de que ao menos a paixão com que dia e noite trabalham os filhos das trevas na sua propaganda materialista e atéia, logre estimular santamente os filhos da luz a um zelo igual, se não maior, da honra da Majestade divina. 40. Que é, pois, necessário fazer, que remédios empregar, para defender a Cristo e a civilização cristã contra aquele pernicioso inimigo? Como um pai no seio da família, Nós quiséramos conversar, quase na intimidade, sobre os deveres que a grande luta de nossos dias impõe a todos os filhos da Igreja, dirigindo também a Nossa paternal advertência aos filhos que dela se afastaram.

RENOVAÇÃO DA VIDA CRISTÃ

Remédio Fundamental

41. Como em todos os períodos mais tormentosos da história da Igreja, assim hoje também o remédio fundamental é uma sincera renovação da vida privada e pública, segundo os princípios do Evangelho em todos aqueles que se gloriam de pertencer ao Rebanho de Cristo, a fim de serem verdadeiramente o sal da terra, que preserve a sociedade humana de tal corrupção.

42. Com sentimentos de profunda gratidão para com o Pai das luzes, de quem desce “toda a dádiva excelente e todo o dom perfeito” (Tg 1, 17), vemos por toda a parte sinais consoladores dessa renovação espiritual, não só em tantas almas singularmente escolhidas, que nestes últimos anos se têm elevado ao cume da mais sublime santidade, e em tantas outras, cada vez mais numerosa, que generosamente caminham para a mesma luminosa meta, mas também no reflorescimento de uma piedade sentida e vivida, em todas as classes da sociedade, até nas mais cultas, como pusemos em relevo no Nosso recente Motu proprio In multis solaciis, de 28 do passado outubro, por ocasião da reorganização da Pontifícia Academia das Ciências (A.A.S., vol. XXVIII (1936), págs. 421-424).

43. Não podemos, contudo, negar que muito resta ainda por fazer neste caminho da renovação espiritual. Até mesmo em países católicos, demasiados são os que são católicos quase só de nome; demasiados, aqueles que, seguindo embora mais ou menos fielmente as práticas mais essenciais da religião que se ufanam de professar, não se preocupam de melhor a conhecer, nem de adquirir convicções, mais íntimas e profundas, e menos ainda de fazer que ao verniz exterior corresponda o interno esplendor de uma consciência reta e pura, que sente e cumpre todos os seus deveres sob o olhar de Deus. Sabemos quanto o Divino Salvador aborrece esta vã e falaz exterioridade, Ele que queria que todos adorassem o Pai “em espírito e verdade” (Jo 4, 23). Quem não vive verdadeira e sinceramente segundo a fé que professa, não poderá hoje, que tão violento sopra o vento da luta e da perseguição, resistir por muito tempo, mas será miseravelmente submergido por este novo dilúvio que ameaça o mundo; e assim, enquanto se prepara por si mesmo a própria ruína, exporá também ao ludibrio o nome cristão.

Desapego dos bens terrenos

44. E neste passo queremos, Veneráveis Irmãos, insistir mais particularmente sobre dois ensinamentos do Senhor, que têm especial conexão com as atuais condições do gênero humano: o desapego dos bens terrenos e o preceito da caridade. “Bem-aventurados os pobres de espírito” foram as primeiras palavras que saíram dos lábios do Divino Mestre no sermão da Montanha (Mt 5, 3). E esta lição é mais que nunca necessária, nestes tempos de materialismo sedento de bens e prazeres da terra. Todos os cristãos, ricos ou pobres, devem ter sempre fixo o olhar no céu, recordando que “não temos aqui cidade permanente, mas vamos buscando a futura” (Hbr 13, 14). Os ricos não devem pôr nas coisas da terra a sua felicidade, nem dirigir à conquista desses bens os seus melhores esforços; mas, considerando-se apenas como administradores que sabem terão de dar contas ao supremo Senhor, sirvam-se deles como de meios preciosos que Deus lhes concede para fazerem bem; e não deixem de distribuir aos pobres o supérfluo, segundo o preceito evangélico (cfr. Lc 11, 41). Doutra forma verificar-se-á neles e em suas riquezas a severa sentença de São Tiago Apóstolo: “Eia, pois, ó ricos, chorai, soltai gritos por causa das misérias que virão sobre vós. As vossas riquezas apodreceram, e os vossos vestidos foram comidos pela traça. O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se e a sua ferrugem dará testemunho contra vós, e devorará as vossas carnes como um fogo. Juntastes para vós um tesouro de ira para os últimos dias...” (Tg 5, 1-3).

45. Mas os pobres, por sua vez, esforçando-se muito embora, segundo as leis da caridade e da justiça, por se proverem do necessário e até mesmo por melhorarem de condição, devem também permanecer sempre “pobres de espírito” (Mt 5, 3), estimando mais os bens espirituais que os bens e gozos terrenos. Recordem-se, além disso, que jamais se logrará fazer desaparecer do mundo as misérias, as dores, as tribulações, a que estão sujeitos ainda aqueles que exteriormente parecem mais felizes. E assim, a todos é necessária a paciência, aquela paciência cristã que eleva o coração às divinas promessas de uma felicidade eterna. “Sede, pois, pacientes, irmãos”, vos diremos ainda com São Tiago, “até à vinda do Senhor. Vede como o lavrador espera o precioso fruto da terra, tendo paciência, até que receba o (fruto) temporão e o serôdio. Sede, pois, pacientes também vós, e fortalecei os vossos corações; porque a vinda do Senhor está próxima” (Tg 5, 7-8). Só assim se cumprirá a consoladora promessa do Senhor: “Bem-aventurados os pobres”. E não é esta uma consolação e promessa vã, como são as promessas dos comunistas; mas são palavras de vida, que encerram uma realidade suprema, palavras que se verificam plenamente aqui na terra e depois na eternidade. E na verdade, quantos pobres, nestas palavras e na esperança do reino dos céus, proclamando já propriedade sua: “porque vosso é o reino de Deus” (Lc 6, 20), encontram uma felicidade, que tantos ricos não logram em suas riquezas, sempre inquietos e sempre torturados como andam pela sede de possuir ainda mais.

Caridade cristã

46. Muito mais importante ainda, como remédio do mal de que tratamos, ou pelo menos mais diretamente ordenado a curá-lo, é o preceito da caridade. Queremos referir-Nos àquela caridade cristã “paciente e benigna” (1 Cor 13, 4), que evita todos os ares de proteção humilhante e qualquer aparência de ostentação; aquela caridade, que desde os inícios do cristianismo ganhou para Cristo os mais pobres dentre os pobres, os escravos; e testemunhamos o Nosso reconhecimento a todos quantos nas obras de beneficência, desde as conferências de São Vicente de Paulo até às grandes organizações recentes de assistência social, têm exercido e exercem as obras de misericórdia corporal e espiritual. Quanto mais experimentarem em si mesmos os operários e os pobres o que o espírito de amor, animado pela virtude de Cristo, faz por eles, tanto mais se despojarão do preconceito de que o cristianismo perdeu a sua eficácia e a Igreja está da parte daqueles que exploram o seu trabalho.

47. Mas, quando vemos dum lado uma multidão de indigentes que, por várias causas alheias à sua vontade, estão verdadeiramente oprimidos pela miséria, e do outro lado, junto deles, tantos que se divertem inconsideradamente e esbanjam enormes somas em futilidades, não podemos deixar de reconhecer com dor que não é bem observada a justiça, mas que nem sempre se aprofundou suficientemente o preceito da caridade cristã nem se vive conforme a ele na prática cotidiana. Desejamos, portanto, Veneráveis Irmãos, que seja mais e mais explicado por palavra e por escrito este divino preceito, precioso distintivo deixado por Cristo a seus verdadeiros discípulos, este preceito, que nos ensina a ver nos que sofrem a Jesus em pessoa e nos impõe o dever de amar os nossos irmãos, como o divino Salvador nos amou a nós, isto é, até ao sacrifício de nós mesmos e, se necessário for, até da própria vida. Meditem, pois, todos e muitas vezes aquelas palavras consoladoras, por um lado, mas temerosas por outro, da sentença final que pronunciará o Juiz supremo no último dia: “Vinde benditos de meu Pai...; porque tive fome, e me destes de comer, tive sede e me destes de beber... Em verdade vos digo que todas as vezes que o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25, 34-40). E pelo contrário: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno... porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber... Na verdade vos digo: todas as vezes que o não fizestes a um destes mais pequeninos, foi a mim que o não fizestes” (Mt 25, 41-45).

48. Para assegurar, pois, a vida eterna, e poder eficaz mente socorrer os necessitados, é necessário voltar a uma vida mais modesta; renunciar aos prazeres, muitas vezes até pecaminosos, que o mundo hoje em dia oferece em tanta abundância; esquecer-se a si mesmo por amor do próximo. Virtude divina de regeneração se encontra neste “mandamento novo” (como lhe chamava Jesus) da caridade cristã (Jo 13, 34), cuja fiel observância infundirá nos corações uma paz interna desconhecida do mundo, e remediará eficazmente os males que afligem a humanidade.

Deveres de estrita justiça

49. Mas a caridade jamais será verdadeira caridade, se não tiver sempre em conta a justiça. O Apóstolo ensina que “quem ama o próximo cumpre a lei”; e dá a razão: “por quanto não cometerás adultério, não matarás, não furtarás... e qualquer outro preceito se resume nesta fórmula: Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Rom 13, 8-9). Se, pois, segundo o Apóstolo, todos os deveres se reduzem ao único preceito da verdadeira caridade, ainda aqueles que são de estrita justiça, como não matar, não roubar; uma caridade que prive o operário do salário a que tem estrito direito, não é caridade mas um nome vão e uma vã aparência de caridade. Nem o operário precisa de receber como esmola o que lhe pertence por justiça; nem pode ninguém pretender eximir-se dos grandes deveres impostos pela justiça com pequeninas dádivas de misericórdia. A caridade e a justiça impõem deveres, muitas vezes acerca do mesmo objeto, mas sob aspectos diversos; e os operários, a estes deveres que lhes dizem respeito, são juntamente muito sensíveis, em razão da sua própria dignidade.

50. É por isso que de modo especial Nos dirigimos a vós, patrões e industriais cristãos, cuja missão é muitas vezes tão difícil, por carregardes com a herança dos erros de um regime econômico iníquo que exerceu a sua ruinosa influência durante muitas gerações. Lembrai-vos da vossa responsabilidade. Triste é dizê-lo, mas é muito verdade que o modo de proceder de certos meios católicos contribui para abalar a confiança dos trabalhadores na religião de Jesus Cristo. Não queriam eles compreender que a caridade cristã exige o reconhecimento de certos direitos devidos ao operário, e que Igreja explicitamente lhe reconheceu. Como julgar do proceder de patrões católicos, que em algumas partes conseguiram impedir a leitura da Nossa Encíclica Quadragesimo anno em suas igrejas patronais? ou daqueles industriais católicos que até hoje se têm mostrado adversários dum movimento que o direito de propriedade, reconhecido pela Igreja, tenha sido por vezes empregado para defraudar o operário do seu justo salário e dos seus direitos sociais?

Justiça Social

51. Efetivamente, além da justiça comutativa, há a justiça social que impõe, também, deveres a que nem patrões nem operários se podem furtar. E é precisamente próprio da justiça social exigir dos indivíduos quanto é necessário ao bem comum. Mas, assim como no organismo vivo não se provê ao todo, se não se dá a cada parte e a cada membro tudo quanto necessitam para exercerem as suas funções; assim também se não pode prover ao organismo social e ao bem de toda a sociedade, se não se dá a cada parte e a cada membro, isto é, aos homens dotados da dignidade de pessoa, tudo quanto necessitam para desempenharem as suas funções sociais. O cumprimento dos deveres da justiça social terá como fruto uma intensa atividade de toda a vida econômica, desenvolvida na tranqüilidade e na ordem, e se mostrará assim a saúde do corpo social, do mesmo modo que a saúde do corpo humano se reconhece pela atividade inalterada, e ao mesmo tempo plena e frutuosa, de todo o organismo.

52. Não se pode, porém, dizer que se satisfez à justiça social, se os operários não têm assegurada a sua própria sustentação e a de suas famílias com um salário proporcionado a este fim; se não se lhes facilita o ensejo de adquirir uma modesta fortuna, prevenindo assim a praga do pauperismo universal; se não se tomam providências a seu favor, com seguros públicos e privados, para o tempo da velhice, da doença ou do desemprego. Numa palavra, para repetirmos o que dissemos na Nossa Encíclica Quadragesimo anno: “A economia social estará solidamente constituída e obterá seus fins, só quando a todos e a cada um forem subministrados todos os bens que se podem conseguir com as forças e subsídios naturais, com a técnica, com a organização social do fator econômico. Esses bens devem ser em tanta quantidade, quanta é necessária, assim para satisfazer às necessidades e honestas comodidades, como para elevar os homens àquela condição de vida mais feliz, que, obtida e gozada de modo regrado e prudente, não só não é de obstáculo à virtude, mas até a favorece poderosamente” (Encíclica Quadragesimo anno, 15 de maio de 1931: A.A.S., vol. XXIII (1931), pág. 202).

53. Se, pois, como sucede cada vez mais freqüentemente no salariado, a justiça não pode ser observada pelos particulares, a não ser que todos concordem em praticá-la conjuntamente, mediante instituições que unam entre si os patrões, para evitar entre eles uma concorrência incompatível com a justiça devida aos trabalhadores, o dever dos empresários e patrões é sustentar e promover essas instituições necessárias, que se tornam o meio normal para se poderem cumprir os deveres de justiça. Mas lembrem-se também os trabalhadores dos seus deveres de caridade e justiça para com os patrões e estejam persuadidos que assim salvaguardarão melhor até os próprios interesses. 54. Assim, pois, se se considera o conjunto da vida econômica, - como já notamos na Nossa Encíclica Quadragesimo anno - não se conseguirá que nas relações econômico-sociais reine a mútua colaboração da justiça e da caridade, senão por meio dum corpo de instituições profissionais e interprofissionais sobre bases solidamente cristãs, coligadas entre si e que constituam, sob formas diversas e adaptadas aos lugares e circunstâncias, o que se chamava a Corporação.

ESTUDO E DIFUSÃO DA DOUTRINA SOCIAL

55. Para dar a esta ação social mais eficácia, é muito necessário promover o estudo dos problemas sociais à luz da doutrina da Igreja e difundir os seus ensinamentos sob a égide da autoridade de Deus, constituída na mesma Igreja. Se o modo de proceder de alguns católicos deixou a desejar no campo econômico-social, isso aconteceu muitas vezes por não conhecerem suficientemente nem meditarem o ensino dos Sumos Pontífices sobre o assunto. Por isso, é sumamente necessário que em todas as classes da sociedade se promova mais intensa formação social, correspondente ao diverso grau de cultura intelectual, e se procure com toda a solicitude e empenho a mais ampla difusão dos ensinamentos da Igreja também entre a classe operária. Iluminem-se as mentes com a luz segura da doutrina católica e inclinem-se as vontades a segui-la e a aplicá-la como norma reta de vida, pelo cumprimento consciencioso dos múltiplos deveres sociais. Combata-se desse modo aquela incoerência e descontinuidade na vida cristã, por Nós várias vezes deplorada, pela qual alguns, enquanto aparentemente são fiéis no cumprimento dos seus deveres religiosos, no campo do trabalho ou da indústria ou da profissão, ou no comércio, ou no emprego, por um deplorável desdobramento de consciência, levam uma vida muito em desarmonia com as normas tão claras da justiça e da caridade cristã, dando assim grave escândalo aos fracos e oferecendo aos maus fácil pretexto para desacreditarem a própria Igreja.

56. Grandemente pode contribuir para esta renovação a imprensa católica, que pode e deve, de modo variado e atraente, procurar dar a conhecer cada vez melhor a doutrina social, informar com exatidão, mas também com a devida amplidão, acerca da atividade dos inimigos, referir os meios de combate que se mostraram os mais eficazes em diversas regiões, propor idéias úteis e gritar alerta contra as astúcias e enganos com que os comunistas procuram, e com resultado, atrair a si até homens de boa-fé.

PREMUNIR-SE CONTRA AS CILADAS DO COMUNISMO

57. Sobre este ponto insistimos na Nossa Alocução, de 12 de maio do ano passado, mas julgamos necessário, Veneráveis Irmãos, chamar de novo sobre ele, de modo particular, a vossa atenção. Ao princípio, o comunismo mostrou-se tal qual era em toda a sua perversidade; mas bem depressa se capacitou de que desse modo afastava de si os povos; e por isso mudou de tática e procura atrair as multidões com vários enganos, ocultando os seus desígnios sob a máscara de ideais, em si bons e atraentes. Assim, vendo o desejo geral de paz, os chefes do comunismo fingem ser os mais zelosos fautores e propagandistas do movimento a favor da paz mundial; mas ao mesmo tempo excitam a uma luta de classes que faz correr rios de sangue, e, sentindo que não têm garantias internas de paz, recorrem a armamentos ilimitados. Assim, sob vários nomes que nem por sombras aludem ao comunismo, fundam associações e periódicos que servem depois unicamente para fazerem penetrar as suas idéias em meios, que doutra forma lhe não seriam facilmente acessíveis, procuram até com perfídia infiltrar-se em associações católicas e religiosas. Assim, em outras partes, sem renunciarem um ponto a seus perversos princípios, convidam os católicos a colaborar com eles no campo chamado humanitário e caritativo, propondo às vezes, até coisas completamente conformes ao espírito cristão e à doutrina da Igreja. Em outras partes levam a hipocrisia até fazer crer que o comunismo, em países de maior fé e de maior cultura, tomará outro aspecto mais brando, não impedirá o culto religioso e respeitará a liberdade das consciências. Há até quem, reportando-se a certas alterações recentemente introduzidas na legislação soviética, deduz que o comunismo está em vésperas de abandonar o seu programa de luta contra Deus.

58. Procurai, Veneráveis Irmãos, que os fiéis não se deixem enganar! O comunismo é intrinsecamente perverso e não se pode admitir em campo nenhum a colaboração com ele, da parte de quem quer que deseje salvar a civilização cristã. E, se alguns, induzidos em erro, cooperassem para a vitória do comunismo no seu país, seriam os primeiros a cair como vítimas do seu erro; e quanto mais se distinguem pela antiguidade e grandeza da sua civilização cristã as regiões aonde o comunismo consegue penetrar, tanto mais devastador lá se manifesta o ódio dos “sem-Deus”.

ORAÇÃO E PENITÊNCIA

59. Mas, “se o Senhor não guarda a caridade, em vão vigiam aqueles que a guardam” (Sl 126, 1). Por isso, como último e poderosíssimo remédio vos recomendamos, Veneráveis Irmãos, que em vossas dioceses promovais e intensifiqueis, do modo mais eficaz, o espírito de oração unido à penitência cristã. Quando os Apóstolos perguntaram ao Salvador por que é que não tinham podido libertar do espírito maligno a um endemoninhado, respondeu o Senhor: “Demônios desta raça não se expulsam senão com a oração e com o jejum” (Mt 17, 20). Também o mal que hoje atormenta a humanidade não poderá ser vencido senão com uma santa cruzada universal de oração e penitência: e recomendamos singularmente às Ordens contemplativas, masculinas e femininas, que redobrem as suas súplicas e sacrifícios, para 8impetrarem do céu para a Igreja um válido socorro nas lutas presentes, com a poderosa intercessão da Virgem Imaculada, a qual, assim como um dia esmagou a cabeça da antiga serpente, assim também é hoje e sempre segura defesa e invencível “Auxílio dos Cristãos”.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Encíclica de Pio XI sobre o Comunismo Ateu - 3

III - LUMINOSA DOUTRINA DA IGREJA, OPOSTA AO COMUNISMO

25. Depois de termos focado os erros e os processos sedutores e violentos do comunismo bolchevista e ateu, é já tempo, Veneráveis Irmãos, de opor-lhe sumariamente a verdadeira noção da “Cidade humana”, que é tal como perfeitamente sabeis, qual no-la ensinam a razão humana e a revelação Divina, por intermédio da Igreja, Mestra dos povos.

SUPREMA REALIDADE: DEUS!

26. E antes de mais nada importa observar que acima de todas as demais realidades, está o sumo, único e supremo Espírito, Deus, Criador onipotente de todo o universo, Juiz sapientíssimo e justíssimo de todos os homens. Este Ser supremo, que é Deus, é a refutação e condenação mais absoluta das impudentes e mentirosas falsidades do comunismo. E na verdade, não é porque os homens crêem em Deus, que Deus existe; mas porque Deus existe realmente, por isso crêem nele e lhe dirigem as suas súplicas todos quantos não cerram pertinazmente os olhos do espírito à luz da verdade.

QUE SÃO O HOMEM E A FAMÍLIA, SEGUNDO A RAZÃO E A FÉ

27. Quanto ao homem, o que a fé católica e a nossa razão ensinam, já Nós, ao explanarmos os pontos fundamentais desta doutrina, o propusemos na Encíclica sobre a educação cristã da juventude (Encíclica Divini illius Magistri, 31 de dezembro de 1929: A.A.S., vol. XXII (1930), págs. 49-86). O homem tem uma alma espiritual e imortal; e, assim como é uma pessoa, dotada pelo supremo Criador de admiráveis dons de corpo e de espírito assim se pode chamar, como diziam os antigos, um verdadeiro “microcosmo”, isto é, um pequeno mundo, por isso que de muito longe transcende e supera a imensidade dos seres do mundo inanimado. Não somente nesta vida mortal, mas também na que há de permanecer eternamente, o seu fim supremo é unicamente Deus; e, tendo sido elevado pela graça santificante à dignidade de filho de Deus, é incorporado no Reino de Deus, no corpo místico de Jesus Cristo. Conseqüentemente, dotou-o Deus de múltiplas e variadas prerrogativas, tais como: direito à vida, à integridade do corpo, aos meios necessários à existência; direito de tender ao seu último fim, pelo caminho traçado por Deus; direito enfim de associação, de propriedade particular, e de usar dessa propriedade.

28. Além disso, assim como o matrimônio e o direito ao seu uso natural são de origem divina, assim também a constituição e as prerrogativas fundamentais da família derivam, não do arbítrio humano, nem de fatores econômicos, senão do próprio Criador supremo de todas as coisas. Este assunto tratamo-lo já com suficiente desenvolvimento na Encíclica sobre a santidade do matrimônio (Encíclica Casti Connubii, 31 de dezembro de 1930: A.A.S., vol. XXII (1930), págs. 539-582), e na Encíclica acima citada sobre a educação.

QUE É A SOCIEDADE

Mútuos direitos e deveres entre o homem e a sociedade

29. Mas Deus destinou igualmente o homem para a sociedade civil, que a sua mesma natureza reclama. É que, no plano do Criador, a sociedade é um meio natural, de que todo o cidadão pode e deve servir-se para a consecução do fim que lhe é proposto, pois a sociedade civil existe para o homem e não o homem para a sociedade. Isto, porém, não se deve entender no sentido do liberalismo individualista, que subordina a sociedade à utilidade egoísta do indivíduo, mas sim no sentido que, mediante a união orgânica com a sociedade, todos possam, pela mútua colaboração, alcançar a verdadeira felicidade terrestre; e que, por meio da sociedade, floresçam e prosperem todas as aptidões individuais e sociais, dadas ao homem pela natureza, aptidões que transcendem o imediato interesse do momento, e refletem na sociedade a perfeição divina: o que no homem isolado de modo nenhum se pode verificar. Mas até este último objetivo da sociedade é, em última análise, ordenado ao homem, para que reconheça este reflexo da perfeição divina, e o desenvolva assim em louvor e adoração ao Criador. É que só o homem, e não qualquer sociedade humana por si, é dotado de razão e de vontade moralmente livre.

30. Portanto, assim como o homem não pode furtar-se aos deveres que por vontade de Deus o ligam à sociedade civil, e é por isso que os representantes da autoridade têm direito de o forçar ao cumprimento do próprio dever, caso ele se recusasse ilegitimamente; assim também não pode a sociedade privar o cidadão dos direitos pessoais que o Criador lhe concedeu (os mais importantes apontamo-los acima sumariamente) nem tornar-lhe impossível o seu uso. É, pois, conforme à razão e às suas exigências naturais, que todas as coisas terrenas sejam para serviço e utilidade do homem, e assim, por meio dele, voltem ao Criador. Aqui se aplica perfeitamente o que o Apóstolo das Gentes escreve aos coríntios sobre a economia da salvação cristã: “Tudo... é vosso, mas vós sois de Cristo, e Cristo é de Deus” (1 Cor 3, 23). E assim, enquanto a doutrina comunista de tal maneira diminui a pessoa humana, que inverte os termos das relações entre o homem e a sociedade, a razão, pelo contrário, e a revelação divina elevam-na a tão sublimes alturas.

A ordem econômico-social

31. Sobre a ordem econômico-social e sobre a questão operária já o Nosso Predecessor, de feliz memória, Leão XIII, na Encíclica Rerum Novarum (15 de maio de 1891: Acta Leonis XIII, vol. XI, págs. 97-144) deu normas eficazes: normas que Nós adotamos às condições e exigências dos tempos presentes pela nossa Encíclica sobre a restauração cristã da ordem social (Encíclica Quadragesimo anno, 15 de maio de 1931: A.A.S., vol. XXIII (1931), págs. 177-228). Nessa Encíclica, insistindo de novo com toda a força na secular doutrina da Igreja acerca da natureza peculiar da propriedade privada no seu aspecto individual e social, assinalamos com toda a clareza e precisão os direitos e a dignidade do trabalho humano, as relações do mútuo apoio e auxílio que devem existir entre o capital e o trabalho, e o salário, indispensável ao operário e a sua família, que por justiça lhe é devido.

32. Nessa mesma Encíclica mostramos também que a sociedade humana só então, poderá ser salva da funestíssima ruína, a que é arrastada pelos princípios do liberalismo, alheios a toda a moralidade, quando os preceitos da justiça social e da caridade cristã impregnarem e penetrarem a ordem econômica e a organização civil; o que indubitavelmente não podem conseguir nem a luta de classes, nem os atentados do terror, nem o abuso ilimitado e tirânico do poder do Estado. Advertimos outrossim, que a verdadeira prosperidade do povo se deve procurar segundo os princípios dum são corporativismo, que reconheça e respeite os vários graus da hierarquia social; e que é igualmente necessário que todas as corporações operárias se organizem em harmônica unidade para poderem tender ao bem comum da sociedade; e que, por conseguinte, a função genuína e peculiar do poder público consiste em promover, quanto lhe seja possível, esta harmonia e coordenação de todas as forças sociais.

Hierarquia social e prerrogativas do Estado

33. Para assegurar esta tranqüila harmonia pela colaboração orgânica de todos, a doutrina católica confere aos governantes tanta dignidade e autoridade, quanta é necessária para que eles com vigilante e previdente solicitude salvaguardem os direitos divinos e humanos, que as Sagradas Escrituras e os Padres da Igreja tanto inculcam. E neste passo é necessário observar que erram vergonhosamente os que sem consideração atribuem a todos os homens direitos iguais na sociedade civil e asseveram que não existe legítima hierarquia. Sobre este ponto baste-Nos recordar as Encíclicas do Nosso Predecessor Leão XIII, acima mencionadas, especialmente a que trata do poder do Estado (Encíclica Diuturnum illud, 29 de junho de 1881: Acta Leonis XIII, vol. II, págs. 269-287) e a outra que versa sobre a constituição cristã do Estado (Encíclica Immortale Dei, 1 de novembro de 1885: Acta Leonis XIII, vol. V, págs. 118-150). Nelas encontram os católicos luminosamente expostos os princípios da razão e da fé, que os tornarão aptos para as premunirem contra os erros e perigos da concepção comunista acerca do Estado. A espoliação dos direitos e a escravização do homem, a negação da origem primária e transcendente do Estado e do poder do Estado, o abuso horrível do poder público ao serviço do terrorismo coletivista, são precisamente o contrário do que é conforme à ética natural e à vontade do Criador. Tanto o homem como a sociedade civil têm origem no Criador, e foram por Ele mutuamente ordenados um para a outra; por isso nenhum dos dois pode furtar-se a cumprir os deveres correlativos, nem recusar ou reduzir os direitos. O próprio Criador regulou esta mútua relação nas suas linhas fundamentais, e é injusta a usurpação, que o comunismo se arroga, de impor, em lugar da lei divina baseada nos imutáveis princípios da verdade e da caridade, um programa político de partido, que promana do capricho humano e ressuma ódio.

BELEZA DESTA DOUTRINA DA IGREJA

34. A Igreja ao ensinar esta luminosa doutrina, não tem outro fim mais que realizar o venturoso anúncio cantado pelos Anjos sobre a gruta de Belém, no nascimento Redentor: “Glória a Deus e... paz aos homens” (Lc 2, 14): paz verdadeira e verdadeira felicidade, até mesmo na terra, quanto é possível, encaminhada a preparar a felicidade eterna, mas paz reservada aos homens de boa vontade. Esta doutrina é igualmente distante de todos os extremos do erro como de todas as exagerações dos partidos ou sistemas que a eles aderem, conserva sempre o equilíbrio da verdade e da justiça; reivindica-o na teoria, aplica-o e promove-o na prática, conciliando os direitos e os deveres de um com os dos outros, como a autoridade com a liberdade, a dignidade do indivíduo com a do Estado, a personalidade humana no súdito com a representação divina no superior, e, por conseguinte, a sujeição devida e o amor ordenado de si mesmo, da família e da pátria, com o amor das outras famílias e dos outros povos, fundado no amor de Deus, pai de todos, primeiro princípio e último fim. Nem separa a justa preocupação dos bens temporais a palavra de seu divino Fundador: “Buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Mt 6, 33), está longe de se desinteressar das coisas humanas, de prejudicar os progressos da sociedade e de impedir os adiantamentos materiais, que pelo contrário sustenta e promove da maneira mais razoável e eficaz. E assim, até mesmo no campo econômico-social, a Igreja, muito embora não tenha jamais apresentado como seu um determinado sistema técnico, por não ser essa a sua missão, fixou contudo claramente princípios e diretivas que, prestando-se a diversas aplicações concretas segundo as várias condições dos tempos, dos lugares e dos povos, assinalam o caminho seguro para obter o feliz progresso da sociedade.

35. A sabedoria e suma utilidade desta doutrina é admitida por quantos verdadeiramente a conhecem. Com justificada razão puderam afirmar eminentes Estadistas que, depois de terem estudado os diversos sistemas sociais, nada haviam encontrado mais sábio que os princípios expostos nas Encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo anno. Até em países não católicos, e nem sequer cristãos, se reconhece quão vantajosas são para a sociedade humana as doutrinas sociais da Igreja; e assim, há apenas um mês, um eminente homem político, não cristão, do Extremo Oriente, não duvidou proclamar que a Igreja com a sua doutrina de paz e fraternidade cristã traz uma altíssima contribuição para o estabelecimento e conservação da paz construtiva entre as nações. Mas ainda: até os próprios comunistas, como sabemos por autênticas relações que afluem de toda a parte a este Centro de Cristandade, se não estão ainda de todo corrompidos, quando se lhes expõe a doutrina social da Igreja, reconhecem a sua superioridade sobre as doutrinas dos seus caudilhos e mestres. Somente os obcecados pela paixão e pelo ódio fecham os olhos à luz da verdade e a combatem obstinadamente.

SERÁ VERDADE QUE A IGREJA NÃO PROCEDEU SEGUNDO A SUA DOUTRINA?

36. Mas os inimigos da Igreja, constrangidos embora a reconhecer a sabedoria da sua doutrina, assacam-lhe o não ter sabido conformar os seus atos com aqueles princípios, e afirmam por isso a necessidade de provocar outros caminhos. Quão falsa e injusta seja esta acusação, demonstra-o toda a história do cristianismo. Para não Nos referirmos senão a um ou outro ponto característico, foi o cristianismo o primeiro a propagar, por uma forma e com uma amplitude e convicção desconhecidas nos séculos precedentes, a verdadeira e universal fraternidade de todos os homens de qualquer condição ou raça, contribuindo assim poderosamente para a abolição da escravatura, não com revoltas sangrentas, senão pela força interna da sua doutrina, que à orgulhosa patrícia romana fazia ver na sua escrava uma irmã em Cristo. Foi o cristianismo, que adora o Filho de Deus feito homem por amor dos homens e convertido em “Filho do carpinteiro”, mais ainda, “carpinteiro” ele próprio (cfr. Mt 13, 55; Mc 6, 3), foi o cristianismo que sublimou à sua verdadeira dignidade o trabalho manual: aquele trabalho manual, antes tão desprezado que até o discreto Marco Túlio Cícero, resumindo a opinião geral do seu tempo, não receou escrever estas palavras, de que hoje se envergonharia qualquer sociólogo: “Todos os operários se ocupam em misteres desprezíveis, pois a oficina nada pode ter de nobre” (M.T. Cícero, De officiis, L. I, c. 42).

37. Fiel a estes princípios, a Igreja regenerou a sociedade humana; sob a sua influência surgiram admiráveis obras de caridade, poderosas corporações de artistas e trabalhadores de todas as categorias. O liberalismo do século passado zombou delas, é certo, como de velharias da Idade Média; elas, porém, impõem-se hoje à admiração dos nossos contemporâneos que em muitos países procuram fazer reviver de algum modo a sua idéia fundamental. E quando outras correntes entravavam a obra e punham obstáculos ao influxo salutar da Igreja, esta até nossos dias não cessou nunca de admoestar os extraviados. Basta recordar com que firmeza, energia e constância o Nosso Predecessor Leão XIII reivindicou para o operário o direito de associação, que o liberalismo dominante nos Estados mais poderosos se obstinava em negar-lhe. E esta influência da doutrina da Igreja ainda atualmente é maior do que parece, porque é grande e certo, posto que invisível e difícil de medir, o predomínio das idéias sobre os fatos.

38. Pode bem dizer-se com toda a verdade que a Igreja à semelhança de Cristo, passa através dos séculos, fazendo bem a todos. Não haveria nem socialismo nem comunismo, se os que governam os povos não tivessem desprezado os ensinamentos e as maternais advertências da Igreja; eles, porém, quiseram, sobre as bases do liberalismo e do laicismo, levantar outros edifícios sociais que à primeira vista pareciam poderosas e magníficas construções, mas bem depressa se viu que careciam de sólidos fundamentos, e se vão miseravelmente desmoronando, um após outro, como tem que desmoronar-se tudo quanto não se apoia sobre a única pedra angular, que é Jesus Cristo.