quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Cristo Rei - 1 - Encíclica Quas primas, de Pio XI

Foi a carta encíclica Quas primas que instituiu a festa que acabamos de celebrar, Cristo Rei. Apresento-a aqui para entendermos um pouco melhor esta realidade da realeza de Cristo.


Carta Encíclica QUAS PRIMAS,
Instituição da festa de Jesus Cristo rei.
Aos veneráveis irmãos Patriarcas, Primazes,
Arcebispos e todos os bispos do orbe católico
em paz e comunhão com a Sé Apostólica.
11 de dezembro de 1925: AAS 17(1925), pp. 593-610.

INTRODUÇÃO

 
1. Na primeira encíclica, que no início do nosso pontificado, dirigimos a todos os bispos do orbe católico – enquanto procurávamos individuar as causas principais das calamidades pelas quais víamos oprimido e angustiado o gênero humano – proclamamos claramente que esta abundância de males invadiram a terra porque a maioria dos homens tinha-se afastado de Jesus Cristo e de sua lei santíssima, tanto na sua vida e costumes, como na família e no governo do Estado. E também que nunca resplandeceria uma esperança certa de paz verdadeira entre os povos enquanto os homens e as nações negassem e recusassem o império do nosso Salvador. Portanto, como admoestamos que era necessário procurar a paz de Cristo no reino de Cristo, assim anunciamos que teríamos feito para isso tudo o que nos era possível; no Reino de Cristo – digamos – porque nos parecia que não se possa mais eficazmente tender à restauração e ao fortalecimento da paz, do que por meio da restauração do reino de Nosso Senhor. Entretanto não deixou de nos infundir firme esperança de tempos melhores a atitude favorável dos povos para com Cristo e sua igreja, a única que os pode salvar; o movimento pelo qual se podia prever que muitos que tinham desprezado o reino de Cristo e se tinham quase que tornado exilados da casa do Pai, se preparavam e até se apressavam a retomar os caminhos da obediência.

“O ano santo e o Reino de Cristo”

2. E tudo o que aconteceu e que se fez, no transcurso deste ano santo, certamente digno de memória perpétua, por acaso não redundou em honra e glória ao divino Fundador da Igreja, nosso supremo Rei e Senhor? Com efeito, a Mostra missionária vaticana quanto não atingiu a mente e o coração dos homens, quer fazendo conhecer o diuturno trabalho da Igreja pela maior dilatação do reino do seu esposo nos continentes e nas ilhas mais longínquas do oceano; quer o grande número de regiões conquistadas para o catolicismo com o suor e o sangue de missionários fortíssimos e invictos; quer finalmente fazendo conhecer quanto vastas regiões ainda existam a ser submetidas ao império suave e salutar do nosso rei. E aquelas multidões que, durante este ano jubilar, vieram de toda parte da terra à cidade santa, sob a guia dos seus bispos e sacerdotes, outra coisa não tinham no coração, purificadas as suas almas, a não ser proclamar-se junto ao túmulo dos apóstolos, e diante de nós, súditos fiéis de Cristo para o presente e para o futuro? E este reino de Cristo pareceu como que impregnado de nova luz quando nós, provada a virtude heroica de seis confessores e virgens, elevamo-los às honras dos altares. E qual alegria e qual o conforto experimentamos no ânimo quando, no esplendor da Basílica Vaticana, promulgado o decreto solene, uma multidão sem-número, levantando o cântico de agradecimento exclamou: “Tu és o rei da glória, o Cristo!” Com efeito, enquanto os homens e as nações, afastados de Deus, pelo ódio recíproco e pelas discórdias internas caminham para a ruína e a morte, a Igreja de Deus, continuando a oferecer ao gênero humano o alimento da vida espiritual, cria e forma gerações de santos e de santas a Jesus Cristo, o qual não cessa de chamar à felicidade do reino celeste aqueles que teve como súditos fiéis e obedientes no reino terreno. Além disso, recorrendo, durante o ano jubilar, o XVI século da celebração do Concílio de Niceia, quisemos que o acontecimento centenário fosse comemorado, e nós próprios o comemoramos na Basílica Vaticana com tanto mais boa mente enquanto aquele sagrado sínodo definiu e propôs como dogma a consubstancialidade do Unigênito com o Pai e ao mesmo tempo, inserindo no símbolo a fórmula “E o seu reino não terá fim”, proclamou a dignidade régia de Cristo.
3. Tendo, portanto, este ano santo concorrido não somente de uma, mas de várias maneiras, para ilustrar o reino de Cristo, parece-nos fazer coisa tanto mais consentânea com o nosso ofício apostólico, se, secundando os pedidos de muitíssimos cardeais, bispos e fiéis, feitos a nós, quer individualmente, quer coletivamente, fecharemos este mesmo ano introduzindo na sagrada liturgia uma festa especial a Jesus Cristo rei. Esse assunto nos oferece tanta alegria que nos leva, veneráveis irmãos, a dizer algo sobre ele; e em seguida vós procurareis adaptar o que nós diremos sobre o culto a Jesus Cristo rei à inteligência do povo e explicar o seu sentido de forma que desta solenidade anual derivem sempre mais copiosos os frutos.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O reino de Cristo



Da encíclica Ubi Arcano, de Pio XI, papa (1922)

(...) Não poderá existir nenhuma paz verdadeira – a paz de Cristo tão desejada – enquanto todos os homens não seguirem fielmente os ensinamentos, os preceitos e os exemplos de Cristo, na vida pública ou privada. É preciso que, constituída retamente a comunidade dos homens, a Igreja possa enfim, em cumprimento de sua divina missão, defender os direitos que Deus tem sobre o indivíduo e a sociedade.
Este é o sentido de nossa breve fórmula: “O reino de Cristo”. Com efeito, Jesus Cristo reina primeiramente no espírito dos indivíduos por seus ensinamentos, nos corações pela caridade, na vida inteira quando esta se conforma com a sua lei e imita seus exemplos. Reina, em seguida, na família, quando, tendo por base o sacramento do matrimônio cristão, conserva inviolavelmente o caráter de instituição sagrada, na qual a autoridade paterna reflete a paternidade divina, que é sua fonte e lhe dá o nome (Ef 3,15), na qual os filhos imitam a obediência de Jesus adolescente e a vida inteira respira a santidade da Família de Nazaré. Reina, finalmente, na sociedade, quando prestando a Deus uma homenagem soberana, reconhece que dele derivam a autoridade e seus direitos, o que dá regras ao poder, caráter imperativo e grandeza à obediência, quando reconhece à Igreja o privilégio de sociedade perfeita, mestra e guia das outras sociedades, que ela tem de seu fundador. A Igreja não diminui a autoridade das demais sociedades, pois cada uma é legítima na sua esfera; ao contrário, completa-a harmonicamente, assim como a graça completa e aperfeiçoa a natureza. Além disto, o concurso da Igreja permite que as sociedades prestem aos homens poderosa ajuda para atingirem o seu fim último que é a felicidade eterna, e as põe em condição de assegurar o bem-estar de seus membros durante a vida mortal.
Conclui-se, desta forma, claramente, que não há paz de Cristo senão no reino de Cristo e que o meio mais eficaz de trabalhar pelo restabelecimento da paz é restaurar o reino de Cristo.

(n. 37-39)

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Efeitos morais e materiais da verdadeira paz


Da encíclica Ubi Arcano, de Pio XI, papa (1922)
À paz de Cristo que, filha da caridade, reside no mais íntimo da alma, é aplicável a palavra de São Paulo sobre o reino de Deus, porque é precisamente pela caridade que Deus reina nas almas: “O reino de Deus não é comida nem bebida” (Rm 14,17). Por outras palavras, a paz de Cristo não se alimenta de bens perecíveis, e sim das realidades espirituais e eternas cuja excelência e superioridade o mesmo Cristo revelou ao mundo e não cessou de mostrar aos homens. Neste sentido é que ele dizia: “Que aproveita ao homem ganhar o universo se vier a perder a alma? Ou que dará ele pelo resgate dela?” (Mt 16,26). Desta maneira indicou ainda a perseverança e firmeza de que deve estar animado o cristão. “Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; temei antes aquele que pode perder o corpo e a alma na geena” (Mt 10,28; Lc 12,14).
Para gozar desta paz não é necessário renunciar aos bens desta vida: pelo contrário, Jesus Cristo promete-os em abundância: “Buscai primeiro o reino de Deus e sua justiça, e todos estes bens vos serão dados por acréscimo” (Lc 6,33; 12,31). Na verdade, “a paz de Deus ultrapassa todo o sentimento” (Fl 4,7) e é precisamente por isto que ela domina os apetites cegos e evita as discussões e discórdias que a sede de riquezas produz.
Se a virtude refreia as ambições e as realidades do espírito recobram a consideração que merecem, obter-se-á naturalmente este feliz resultado: a paz cristã assegurará a integridade dos costumes, e a dignidade da pessoa humana, resgatada pelo sangue de Cristo e adaptada pelo Pai celeste, consagrada pelos laços fraternais que a unem a Cristo, tornada pelas orações e pelos sacramentos participante da graça e da natureza divinas, na esperança de que, como recompensa de uma vida santa, goze ternamente a posse da glória eterna.
(n. 27-29)

Os dois caminhos

Da carta de Barnabé
Existem dois caminhos de ensinamento e autoridade: o da luz e o das trevas. A diferença entre os dois é grande. De fato, sobre um estão postados os anjos de Deus, portadores da luz; e sobre o outro, os anjos de Satanás. Um é Senhor de eternidade em eternidade, o outro é príncipe do presente tempo da iniquidade.
O caminho da luz
Este é o caminho da luz: se alguém quer andar no caminho e chegar ao lugar determinado, que se esforce em suas obras. Eis, portanto, o conhecimento que nos foi dado para andar nesse caminho.
Ama aquele que te criou.
Teme aquele que te formou.
Glorifica aquele que te resgatou da morte.
Sê simples de coração e rico de espírito.
Não te ligues àqueles que andam no caminho da morte.
Odeia tudo o que não é agradável a Deus.
Odeia toda a hipocrisia.
Não abandones os mandamentos do Senhor.
Não te engrandeças a ti mesmo, mas sê humilde em todas as circunstâncias.
Não te arrogues glória.
Não planejes o mal contra o teu próximo.
Não te entregues à insolência.
Não pratiques a prostituição, nem o adultério, nem a pederastia.
Não divulgues a palavra de Deus entre pessoas impuras.
Não faças diferença entre as pessoas, ao corrigir alguém por sua falta.
Sê mano, tranquilo, respeitando as palavras que ouviste.
Não sejas vingativo para com teu irmão.
Não fiques hesitando sobre o que vai ou não acontecer.
Não tomes em vão o nome do Senhor.
Ama o teu próximo mais do que a ti mesmo.
Não mates a criança no seio da mãe, nem logo que ela tiver nascido.
Não te descuides de teu filho ou de tua filha. Pelo contrário, dá-lhes instrução desde a infância no temor do Senhor.
Não cobices os bens do teu próximo.
Não sejas avarento, não te juntes de coração com os grandes, mas conversa com os justos e pobres.
Aceita como boas as coisas que te acontecem, sabendo que nada acontece sem o consentimento de Deus.
Não sejas dúplice no pensar e no falar, porque a duplicidade é armadilha mortal.
Sê submisso a teus senhores, com respeito e reverência, como à imagem de Deus.
Não dês ordens com rudeza ao teu servo ou à tua serva, pois eles esperam no mesmo Deus que tu, para que não percam o temor de Deus, que está acima de uns e de outros; com efeito, ele não vem chamar a pessoa pela aparência, mas aqueles que o Espírito preparou.
Compartilha tudo com o teu próximo, e não digas que são coisas tuas. Se estais unidos nas coisas incorruptíveis, tanto mais nas coisas corruptíveis.
Não sejas loquaz, porque a boca é armadilha mortal.
O quanto podes, sê puro com a tua alma.
Não sejas como os que estendem a mão na hora de receber, e a retiram na hora de dar.
Ama, como a pupila do teu olho, todo aquele que te anuncia a palavra de Deus.
Lembra-te, noite e dia, do dia do julgamento. A cada dia, procura a companhia dos santos. Empenha-te com a pregação, exortando e preocupando-te em salvar uma alma pela palavra, ou então em trabalhar com tuas mãos, para resgatar teus pecados.
Não hesites em dar, nem dês reclamando, pois sabes quem é o verdadeiro remunerador da tua recompensa.
Guarda o que recebeste, sem nada acrescentar ou tirar.
Odeia totalmente o mal.
Julga de modo justo.
Não provoques divisão. Pelo contrário, reconcilia aqueles que brigam entre si.
Confessa os teus pecados.
Não te apresentes em má consciência para a oração.

O caminho da treva
O caminho da treva é tortuoso e cheio de maldições. De fato, em sua totalidade, ele é o caminho da morte eterna nos tormentos. Nele se encontram as coisas que arruínam a alma dos homens: idolatria, insolência, altivez do poder, hipocrisia, duplicidade de coração, adultério, homicídio, rapina, orgulho, transgressão, fraude, maldade, arrogância, feitiçaria, magia, avareza e ausência do temor de Deus.
(São) os que perseguem os bons,
Odeiam a verdade,
Amam a mentira,
Ignoram a recompensa da justiça,
Não se ligam ao bem
Nem ao julgamento justo,
Não cuidam da viúva e do órfão,
Não vigiam para o temor de Deus, mas para o mal,
Afastam-se da mansidão e da paciência,
Amam as vaidades,
Correm atrás da recompensa,
Não têm misericórdia para com o pobre,
Recusam ajudar o oprimido,
Difamam facilmente,
Ignoram o seu Criador,
Matam crianças,
Corrompem a imagem de Deus,
Não se compadecem do necessitado,
Não se importam com os atribulados,
Defendem os ricos,
São juízes injustos com os pobres,
E, por fim, são pecadores consumados.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Martírio de São Policarpo, bispo de Esmirna


A Igreja de Deus que vive como estrangeira em Esmirna, para a Igreja de Deus que vive como estrangeira em Filomélio e para todas as comunidades da santa Igreja católica que vivem como estrangeiras em todos os lugares. Que a misericórdia, a paz e o amor de Deus e de nosso Senhor Jesus Cristo sejam abundantes.
1. Irmãos, nós vos escrevemos a respeito dos mártires e do bem-aventurado Policarpo, que fez a perseguição cessar, selando-a com o seu martírio. Quase todos os acontecimentos se realizaram para que o Senhor nos mostrasse novamente um martírio segundo o Evangelho. De fato, como o Senhor, ele esperou ser libertado, para que também nós nos tornássemos seus imitadores, não olhando só para nós, mas também para o próximo. É próprio do amor verdadeiro e firme querer salvar não só a si mesmo, mas também a todos os irmãos.
2. Felizes e generosos todos os mártires que surgem segundo a vontade de Deus. De fato, é necessário que tenhamos fé, para atribuir a Deus o poder sobre todas as coisas. Quem não admiraria a generosidade deles, a perseverança e o amor ao Senhor? Dilacerados pelos flagelos a ponto de se ver a constituição do corpo até as veias e artérias, permaneciam firmes, enquanto os presentes choravam de compaixão. A sua coragem chegou a tal ponto que nenhum deles disse uma palavra ou emitiu um gemido. Eles mostravam a todos nós que os mártires de Cristo não estavam em seus corpos, mas que o Senhor, aí presente, conversava com eles. Atentos à graça de Cristo, eles desprezavam as torturas deste mundo e adquiriram, em uma hora, a vida eterna. O fogo dos torturadores desumanos era frio para eles. De fato, tinham diante dos olhos escapar do (fogo) eterno, que jamais se extingue; com os olhos do coração olhavam os bens reservados à perseverança, bens que o ouvido não ouviu, nem o olho viu, nem o coração do homem sonhou, mostrados pelo Senhor àqueles que não eram mais homens, mas que já eram anjos. Do mesmo modo, os que foram entregues às feras suportaram suplícios terríveis. Estendidos sobre conchas, eram submetidos a todo tipo de tormentos, para que fosse induzidos a renegar, se possível, por meio de suplício contínuo.
3. O diabo maquinava muitas coisas contra eles; graças a Deus, porém, não prevaleceu contra nenhum deles. O generoso Germânico fortalecia a timidez deles através de sua perseverança. Ele foi admirável na luta contra as feras. O procônsul queria que ele cedesse e lhe dizia que tivesse piedade de sua própria juventude. Ele, porém, atiçando a fera, a chamava sobre si, desejando estar quanto antes livre desta vida injusta e iníqua. Então, a multidão toda, admirada diante da coragem da piedosa e crente geração dos cristãos, gritou: “Abaixo os ateus! Trazei Policarpo.”
4. Um dentre eles, chamado Quinto, frígio recentemente vindo da Frígia, ficou apavorado à vista das feras. Era ele que havia forçado a si mesmo e a outros a comparecerem ao tribunal. O procônsul, através de muita insistência, conseguiu persuadi-lo a jurar e sacrificar. Por isso, irmãos, não louvamos aqueles que se apresentam espontaneamente, pois não é isso que o Evangelho ensina.
5. Quanto a Policarpo, ele inicialmente não se perturbou ao ouvir isso, mas quis permanecer na cidade. A maioria, porém, o persuadiu a se afastar. Então ele se refugiou numa propriedade pequena, não longe da cidade, e passou o tempo com poucos (companheiros). Noite e dia, ele não fazia senão rezar por todos e por todas as igrejas do mundo, como era seu costume. Rezando, ele teve uma visão, três dias antes de o prenderem: viu seu travesseiro queimado pelo fogo. Voltando-se para os seus companheiros, disse: “Devo ser queimado vivo!”
6. Como persistiram em procurá-lo, transferiu-se para outra pequena propriedade, e logo chegaram os que o procuravam. Não o encontrando, prenderam dois pequenos escravos, e um deles torturado, confessou. Era-lhe, de fato, impossível permanecer escondido, porque até mesmo os de sua casa o traíam. O chefe de polícia, que tinha recebido o nome de Herodes, tinha pressa em levá-lo para o estádio, a fim de que Policarpo realizasse o seu destino, entrando em comunhão com Cristo, enquanto aqueles que o tinham entregue recebessem o castigo do próprio Judas.
7. Numa sexta-feira, pela hora da ceia, guardas e cavaleiros, armados como de costume, tomaram consigo o escravo e partiram, como se estivessem perseguido um bandido. Chegando pela noite, encontraram-no deitado num pequeno quarto do piso superior. Ele podia ainda fugir daí para outro lugar, mas não quis, e disse: “Seja feita a vontade de Deus”. Ouvindo que tinham chegado, ele desceu e conversou com eles, que ficaram espantados com a sua idade veneranda, com a sua calma, e com tanta preocupação por capturar um homem tão velho. Ele imediatamente mandou que lhes dessem de comer e beber à vontade, e pediu que lhe concedessem uma hora para rezar tranquilamente. E lhe concederam. Então ele, de pé, começou a rezar, tão repleto da graça de Deus, que por duas horas ninguém pôde interrompê-lo. Os que o ouviam ficaram espantados, e muitos se arrependeram de ter vindo prender um velho tão santo.
8. Quando por fim terminou de rezar, lembrou-se de todos aqueles que tinha conhecido, pequenos e grandes, ilustres ou obscuros, e de toda a Igreja católica espalhada por toda a terra. Chegando a hora de partir, fizeram-no montar sobre um jumento e o levaram para a cidade. Era o dia do grande sábado. Herodes, o chefe da polícia, e seu pai Nicetas foram até ele. Fizeram-no subir ao seu carro e, sentando-se ao seu lado, procuravam persuadi-lo, dizendo: “Que mal há em dizer que César é Senhor, oferecer sacrifícios e fazer tudo o mais para salvar-se?” De início, ele nada respondeu. Como insistissem, ele falou: “Não farei o que vós estais me aconselhando.” Não conseguindo persuadi-lo, lançaram-lhe todo tipo de injúrias, e o fizeram descer do carro tão apressadamente que ele se feriu na parte da frente da perna. Sem se voltar, como se nada houvesse acontecido, ele caminhou alegremente em direção ao estádio. Aí o tumulto era tão grande que ninguém conseguia escutar ninguém.
9. Quando Policarpo entrou no estádio, veio do céu uma voz, dizendo: “Sê forte, Policarpo! Sê homem!” Ninguém viu quem tinha falado, mas alguns de nossos que estavam presentes ouviram a voz. Finalmente o fizeram entrar e, quando souberam que Policarpo fora preso, levantou-se grande tumulto. Levado até o procônsul, este lhe perguntou se ele era Policarpo. Respondeu que sim. E o procônsul procurava fazê-lo renegar, dizendo: “Pensa na tua idade”, e tudo o mais que se costuma dizer, como: “Jura pela fortuna de César! Muda teu modo de pensar e dize: ‘Abaixo os ateus!’” Policarpo, contudo, olhava severamente toda a multidão de pagãos cruéis no estádio, fez um gesto para ela com a mão, suspirou, elevou os olhos e disse: “Abaixo os ateus!” O chefe de polícia insistia: “Jura, e eu te liberto. Amaldiçoa o Cristo!” Policarpo respondeu: “Eu o sirvo há oitenta e seis anos, e ele não me fez nenhum mal. Como poderia blasfemar o meu rei que me salvou?”
10. Ele continuava a insistir, dizendo: “Jura pela fortuna de César!” Policarpo respondeu: “Se tu pensas que vou jurar pela fortuna de César, como dizes, e finges ignorar quem sou eu, escuta claramente: eu sou cristão. Se queres aprender a doutrina do cristianismo, concede-me um dia e escuta.” O procônsul respondeu: “Convence o povo!” Policarpo replicou: “A ti eu considero digno de escutar a explicação. Com efeito, aprendemos a tratar as autoridades e os poderes estabelecidos por Deus com o respeito devido, contanto que isso não nos prejudique. Quanto a esses outros, eu não os considero dignos, para me defender diante deles.”
11. O procônsul disse: “Eu tenho feras, e te entregarei a elas, se não mudares de ideia.” Ele disse: “Pode chamá-las. Para nós, é impossível mudar de ideia, a fim de passar do melhor para o pior; mas é bom mudar, passar do mal à justiça.” O procôsul insistiu: “Já que desprezas as feras, eu te farei queimar no fogo, se não mudares de ideia”. Policarpo respondeu-lhe: “Tu me ameaças com um fogo que queima por um momento, e pouco depois se apaga, porque ignoras o fogo do julgamento futuro e do suplício eterno, reservado aos ímpios. Mas por que tardar? Vai, e faze o que queres.”
12. Dizendo isso e tantas outras coisas, ele permanecia cheio de força e alegria, e seu rosto estava repleto de graça. Ele não só não se deixou abater pelas ameaças que lhe eram dirigidas, mas o próprio procônsul ficou estupefato e mandou seu arauto ao meio do estádio para anunciar três vezes: “Policarpo se declarou cristão!” A essas palavras do arauto, toda a multidão de pagãos e judeus moradores de Esmirna, com furor incontido, começou a gritar: “Eis o mestre da Ásia, o pai dos cristãos, o destruidor de nossos deuses! É ele que ensina muita gente a não sacrificar e a não adorar.” Dizendo isso, gritavam e pediam ao asiarca Filipe que lançasse um leão contra Policarpo. Este respondeu que não lhe era lícito, pois os combates de feras já haviam terminado. Então unânimes se puseram a gritar que Policarpo fosse queimado vivo. Devia cumprir-se a visão que lhe fora mostrada: enquanto rezava, ele tinha visto o travesseiro pegando fogo, e dissera profeticamente aos fiéis que estavam com ele: “Devo ser queimado vivo”.
13. Então as coisas caminharam rapidamente, mais depressa do que dizê-las. Imediatamente a multidão começou a recolher lenha e feixes tirados das oficinas e termas. Sobretudo os judeus se deram a isso com mais zelo, segundo o costume deles. Quando a pira ficou pronta, o próprio Policarpo se despiu, desamarrou o cinto, e ele mesmo tirou o calçado. Ele nunca fizera isso antes, porque sempre cada um dos fiéis se apressava a ser o primeiro a tocar-lhe o corpo; mesmo antes do martírio, ele já fora constantemente venerado pela sua santidade de vida. Imediatamente colocaram em torno dele o material preparado para a pira. Como queriam pregá-lo, ele disse: “Deixai-me assim. Aquele que concede força para suportar o fogo, dar-me-á força para permanecer imóvel na fogueira, também sem a proteção de vossos pregos.”
14. Então não o pregaram, mas o amarraram. Com as mãos amarradas atrás das costas, ele parecia um cordeiro escolhido de grande rebanho para o sacrifício, holocausto agradável preparado para Deus. Erguendo os olhos ao céu, disse: “Senhor, Deus todo-poderoso, Pai de teu Filho amado e bendito, Jesus Cristo, pelo qual recebemos o conhecimento do teu nome, Deus dos anjos, dos poderes, de toda criação e de toda a geração de justos que vivem na tua presença! Eu te bendigo por me teres julgado digno deste dia e desta hora, de tomar parte entre os mártires, e do cálice de teu Cristo, para a ressurreição da vida eterna da alma e do corpo, na incorruptibilidade do Espírito Santo. Com eles, possa eu hoje ser admitido à tua presença como sacrifício gordo e agradável, como tu preparaste e manifestaste de antemão, e como realizaste, ó Deus sem mentira e veraz. Por isso e por todas as outras coisas, eu te louvo, te bendigo, te glorifico, pelo eterno e celestial sacerdote Jesus Cristo, teu Filho amado, pelo qual seja dada glória a ti, com ele o Espírito, agora e pelos séculos futuros. Amém.”
15. Quando ele ergueu o seu Amém e terminou sua oração, os homens da pira acenderam o fogo. Grande chama brilhou e nós vimos o prodígio, nós a quem foi dado ver e que fomos preservados para anunciar esses acontecimentos a outros. O fogo fez uma espécie de abóbada, como vela de navio inflada pelo vento, e envolveu como parede o corpo do mártir. Ele estava no meio, não como carne que queima, mas como pão que assa, como ouro ou prata brilhando na fornalha. Sentimos então um perfume semelhante a baforada de incenso ou a outro aroma precioso.
16. Por fim, vendo que o fogo não podia consumir o seu corpo, os ímpios ordenaram ao carrasco que fosse dar o golpe de misericórdia com o punhal. Feito isso, jorrou tanto sangue que apagou o fogo. Toda a multidão admirou-se de ver tão grande diferença entre os incrédulos e os eleitos. Entre estes, o admirável mártir Policarpo, que foi, em nossos dias, mestre apostólico e profético, o bispo da Igreja católica de Esmirna. Toda palavra que saiu de sua boca se cumpriu e se cumprirá.
17. Contudo, o invejoso, o perverso e o mau, o adversário  da geração dos justos, vendo a grandeza do seu testemunho e de sua vida irrepreensível desde o início, vendo-o ornado com a coroa da incorruptibilidade e conquistando uma recompensa incontestável, procurou impedir-nos de levar o corpo, embora muitos de nós o desejassem fazer e possuir sua carne santa. Ele sugeriu a Nicetas, pai de Herodes e irmão de Alce, que procurasse o magistrado, a fim de que ele não nos entregasse o corpo. Ele disse: “Não aconteça que eles, abandonando o crucificado, passem a cultuar esse aí.” Dizia essas coisas por sugestão insistente dos judeus, que nos tinham vigiado quando queríamos retirar o corpo do fogo. Ignoravam eles que não poderíamos jamais abandonar Cristo, que sofreu pela salvação de todos aqueles que são salvos no mundo, como inocente em favor dos pecadores, nem prestarmos culto a outro. Nós o adoramos, porque é o Filho de Deus. Quanto aos mártires, nós os amamos justamente como discípulos e imitadores do Senhor, por causa da incomparável devoção que tinham para com seu rei e mestre. Pudéssemos nós também ser seus companheiros e condiscípulos!
18. Vendo a rixa suscitada pelos judeus, o centurião colocou o corpo no meio e o fez queimar, como era costume. Desse modo, pudemos mais tarde recolher seus ossos, mais preciosos do que pedras preciosas e mais valiosos do que o ouro, para colocá-los em lugar conveniente. Quando possível, é aí que o Senhor nos permitirá reunir-nos, na alegria e contentamento, para celebrar o aniversário de seu martírio, em memória daqueles que combateram antes de nós, e para exercitar e preparar aqueles que deverão combater no futuro.
19. Essa é a história do bem-aventurado Policarpo, que foi, juntamente com os irmãos de Fildélfia, o décimo segundo a sofrer o martírio em Esmirna. Contudo, apenas dele se guarda a lembrança mais do que dos outros, a ponto de até os próprios pagãos falarem dele por toda parte. Ele foi, não apenas mestre célebre, mas também mártir eminente, cujo martírio segundo o Evangelho de Cristo todos desejam imitar. Por sua perseverança, ele triunfou sobre o iníquo magistrado, e assim foi cingido com a coroa da incorruptibilidade. Juntamente com os apóstolos e todos os justos, na alegria, ele glorifica Deus, Pai todo-poderoso, e bendiz nosso Senhor Jesus Cristo, o salvador de nossas almas, guia de nossos corpos, e pastor da Igreja católica no mundo inteiro.
20. Havíeis pedido para ser informados com mais pormenores sobre esses acontecimentos. Por enquanto vos demos uma narração resumida por intermédio do nosso irmão Marcião. Quando tomardes conhecimento desta carta, transmiti-a aos irmãos que estão mais longe, para que também eles glorifiquem o Senhor, que fez sua escolha entre seus servidores.
Àquele que, pela sua graça e pelo seu dom, nos pode introduzir no seu reino eterno, por seu Filho único Jesus Cristo, a ele a glória, a honra, o poder e a grandeza pelos séculos.
Saudai todos os santos.
Aqueles que estão conosco vos saúdam, e também Evaristo, que escreveu esta carta, com toda a sua família.
21. O bem-aventurado Policarpo deu testemunho no início do mês de Xântico, no décimo segundo dia, o sétimo dia antes das calendas de março, dia do grande sábado, na oitava hora. Ele fora preso por Herodes, sob o pontificado de Filipe de Trália e do proconsulado de Estácio Quadrato, mas sob o reino eterno de nosso Senhor Jesus Cristo, a quem seja dada a glória, a honra, a grandeza, o trono eterno de geração em geração. Amém.
Apêndice
22. Nós vos desejamos boa saúde. Irmãos, andai segundo o Evangelho, na palavra de Jesus Cristo. Com ele, glória a Deus Pai e ao Espírito Santo, para a salvação dos santos eleitos. Foi assim que o bem-aventurado Policarpo testemunhou. Possamos nós caminhar em suas pegadas e sermos encontrados com ele no Reino de Deus.
Gaio transcreveu essas coisas de Ireneu, discípulo de Policarpo; ele viveu com Ireneu. Eu, Sócrates, as copiei em Corinto, da cópia de Gaio. A graça esteja com todos.
Por minha vez, eu, Piônio, copiei do exemplar acima, que procurei, depois que o bem-aventurado Policarpo o mostrou a mim em revelação, como contarei em seguida. Reuni os fragmentos quase destruídos pelo tempo. Que o Senhor Jesus Cristo me reúna também com seus eleitos no Reino do céu. A ele seja dada a glória com o Pai e o Espírito Santo, pelos séculos dos séculos. Amém.
Apêndice do manuscrito de Moscou
Gaio copiou essas coisas dos escritos de Ireneu; ele viveu com Ireneu, que foi discípulo de são Policarpo. Esse Ireneu, que esteve em Roma na época do martírio do bispo Policarpo, instruiu muita gente. Temos dele numerosos escritos muito belos e ortodoxos. Ele mencionou Policarpo, dizendo que tinha sido discípulo dele. Refutou vigorosamente todas as heresias e nos transmitiu a regra eclesiástica e católica, tal como havia recebido do santo. Ele diz também o seguinte: Marcião, do qual provêm aqueles que se chamam marcionitas, certo dia, indo ao encontro de são Policarpo, lhe diz: “Reconhece-nos, Policarpo!” Este respondeu a Marcião: “Eu reconheço, reconheço o primogênito de Satanás.” Lê-se também o seguinte nos escritos de Ireneu: No dia e na hora em que Policarpo sofria o martírio em Esmirna, Ireneu, encontrando-se em Roma, ouviu uma voz parecida com trombeta que dizia: “Policarpo foi martirizado.”
Como foi dito, é dos escritos de Ireneu que Gaio copiou essas coisas. Em Corinto, Isócrates transcreveu da cópia de Gaio. E eu, Piônio, copiei do exemplar de Isócrates, que procurei, depois de uma revelação de são Policarpo. Reuni os fragmentos quase destruídos pelo tempo. Que o Senhor Jesus Cristo me reúna também com seus eleitos na glória do céu. A ele seja dada a glória com o Pai e o Espírito Santo, pelos séculos dos séculos. Amém.