sexta-feira, 25 de junho de 2010

Instrução Libertatis Nuntius sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação – 4

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VII - A ANÁLISE MARXISTA

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1. A impaciência e o desejo de ser eficazes levaram alguns cristãos, perdida a confiança em qualquer outro método, a voltarem-se para aquilo que chamam de "análise marxista".

2. Seu raciocínio é o seguinte: uma situação intolerável e explosiva exige uma ação eficaz que não pode mais ser adiada. Uma ação eficaz supõe uma analise científica das causas estruturais da miséria. Ora, o marxismo aperfeiçoou um instrumental para semelhante análise. Bastará, pois, aplicá-lo à situação do Terceiro Mundo e, especialmente, à situação da América Latina.

3. Que o conhecimento científico da situação e dos possíveis caminhos de transformação social seja o pressuposto de uma ação capaz de levar aos objetivos prefixados, é evidente. Vai nisto um sinal de seriedade no compromisso.

4. O termo "científico", porém, exerce uma fascinação quase mítica; nem tudo o que ostenta a etiqueta de científico o é necessariamente. Por isso, tomar emprestado um método de abordagem da realidade é algo que deve ser precedido de um exame crítico de natureza epistemológica. Ora, este prévio exame crítico falta a várias "teologias da libertação".

5. Nas ciências humanas e sociais, convém estar atento antes de tudo à pluralidade de métodos e de pontos de vista, cada um dos quais põe em evidência um só aspecto da realidade; esta, em virtude de sua complexidade, escapa a uma explicação unitária e unívoca.

6. No caso do marxismo, tal como se pretende utilizar na conjuntura de que falamos, tanto mais se impõe a crítica prévia, quanto o pensamento de Marx constitui uma concepção totalizante do mundo, na qual numerosos dados de observação e de análise descritiva são integrados numa estrutura filosófico-ideológica, que determina a significação e a importância relativa que se lhes atribui. Os a priori ideológicos são pressupostos para a leitura da realidade social. Assim, a dissociação dos elementos heterogêneos que compõem este amálgama epistemologicamente híbrido torna-se impossível, de modo que, acreditando aceitar somente o que se apresenta como análise, se é forçado a aceitar, ao mesmo tempo, a ideologia. Por isso, não é raro que sejam os aspectos ideológicos que predominem nos empréstimos que diversos "teólogos da libertação" pedem aos autores marxistas.

7. A advertência de Paulo VI continua ainda hoje plenamente atual: através do marxismo, tal como é vivido concretamente, podem-se distinguir diversos aspectos e diversas questões propostas à reflexão e à ação dos cristãos. Entretanto, "seria ilusório e perigoso chegar ao ponto de esquecer o vínculo estreito que os liga radicalmente, aceitar os elementos da análise marxista sem reconhecer suas relações com a ideologia, entrar na prática da luta de classes e de sua interpretação marxista sem tentar perceber o tipo de sociedade totalitária à qual este processo conduz".

8. É verdade que desde as origens, mais acentuadamente, porém, nestes últimos anos, o pensamento marxista se diversificou, dando origem a diversas correntes que divergem consideravelmente entre si. Na medida, porém, em que se mantêm verdadeiramente marxistas, estas correntes continuam a estar vinculadas a um certo número de teses fundamentais que não são compatíveis com a concepção cristã do homem e da sociedade. Neste contexto, certas fórmulas não são neutras, mas conservam a significação que receberam na doutrina marxista original. É o que acontece com a "luta de classes". Esta expressão continua impregnada da interpretação que Marx lhe deu e não poderia, por conseguinte, ser considerada como um equivalente, de caráter empírico, da expressão "conflito social agudo". Aqueles que se servem de semelhantes fórmulas, pretendendo reter apenas certos elementos da análise marxista, que de resto seria rejeitada na sua globalidade, alimentam pelo menos um grave mal-entendido no espírito de seus leitores.

9. Lembremos que o ateísmo e a negação da pessoa humana, de sua liberdade e de seus direitos encontram-se no centro da concepção marxista. Esta contém de fato erros que ameaçam diretamente as verdades de fé sobre o destino eterno das pessoas. Ainda mais: querer integrar na teologia uma "análise" cujos critérios de interpretação dependam desta concepção atéia significa embrenhar-se em desastrosas contradições. O desconhecimento da natureza espiritual da pessoa, aliás, leva a subordiná-la totalmente à coletividade e, deste modo, a negar os princípios de uma vida social e política em conformidade com a dignidade humana.

10. O exame crítico dos métodos de análise tomados de outras disciplinas impõe-se de maneira particular ao teólogo. É a luz da fé que fornece à teologia seus princípios. Por isso, a utilização, por parte dos teólogos, de elementos filosóficos ou das ciências humanas tem um valor "instrumental" e deve ser objeto de um discernimento crítico de natureza teológica. Em outras palavras, o critério final e decisivo da verdade não pode ser, em última análise, senão um critério teológico. É à luz da fé, e daquilo que ela nos ensina sobre a verdade do homem e sobre o sentido último de seu destino, que se deve julgar da validade ou do grau de validade daquilo que as outras disciplinas propõem, de resto, muitas vezes à maneira de conjectura, como sendo verdades sobre o homem, sobre a sua história e sobre o seu destino.

11. Aplicados à realidade econômica, social e política de hoje, certos esquemas de interpretação tomados de correntes do pensamento marxista podem apresentar, à primeira vista, alguma verossimilhança na medida em que a situação de alguns países oferece analogias com aquilo que Marx descreveu e interpretou, em meados do século passado. Tomando por base estas analogias, operam-se simplificações que, abstraindo de fatores essenciais específicos, impedem, de fato, uma análise verdadeiramente rigorosa das causas da miséria, mantêm as confusões.

12. Em certas regiões da América Latina, a monopolização de grande parte das riquezas por uma oligarquia de proprietários desprovidos de consciência social, a quase ausência ou as carências do estado de direito, as ditaduras militares que conculcam os direitos elementares do homem, o abuso do poder por parte de certos dirigentes, as manobras selvagens de um certo capital estrangeiro, constituem outros tantos fatores que alimentam um violento sentimento de revolta junto àqueles que, deste modo, se consideram vítimas impotentes de um novo colonialismo de cunho tecnológico, financeiro, monetário ou econômico. A tomada de consciência das injustiças é acompanhada por um pathos que pede muitas vezes emprestado ao marxismo seu discurso, apresentado abusivamente como sendo um discurso "científico".

13. A primeira condição para uma análise é a total docilidade à realidade que se pretende descrever. Por isso, uma consciência crítica deve acompanhar o uso das hipóteses de trabalho que se adotam. É necessário saber que elas correspondem a um ponto de vista particular, o que tem por conseqüência inevitável sublinhar unilateralmente certos aspectos do real, deixando outros na sombra. Esta limitação, que deriva da natureza das ciências sociais, é ignorada por aqueles que, à guisa de hipóteses reconhecidas como tais, recorrem a uma concepção totalizante, como é o pensamento de Marx.


segunda-feira, 21 de junho de 2010

Instrução Libertatis Nuntius sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação – 3



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V - A VOZ DO MAGISTÉRIO

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1. Para responder ao desafio lançado à nossa época pela opressão e pela fome, o Magistério da Igreja, com a preocupação de despertar as consciências cristãs para o sentido da justiça, da responsabilidade social e da solidariedade para com os pobres e os oprimidos, relembra repetidamente a atualidade e a urgência da doutrina e dos imperativos contidos na Revelação.

2. Limitamo-nos a mencionar aqui apenas algumas destas intervenções: os pronunciamentos pontifícios mais recentes, Mater et Magistra e Pacem in terris, Populorum progressio e Evangelii nuntiandi. Mencionemos ainda a carta ao Cardeal Roy, Octogesima adveniens.

3. O Concílio Vaticano II, por sua vez, tratou as questões da justiça e da liberdade na Constituição pastoral Gaudium et spes.

4. O Santo Padre insistiu em diversas oportunidades neste tema, particularmente nas encíclicas Redemptor hominis, Dives in Misericordia e Laborem exercens. As numerosas intervenções que relembram a doutrina dos direitos do homem tocam diretamente nos problemas da libertação da pessoa humana diante dos diversos tipos de opressão de que é vítima. É preciso citar, especialmente neste contexto, o discurso proferido diante da XXXVI Assembléia geral da ONU, em Nova Iorque, no dia 2 de outubro de 1979. No dia 28 de janeiro do mesmo ano, João Paulo II, ao abrir a Terceira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em Puebla, havia recordado que a verdade completa sobre o homem é a base da verdadeira libertação. Este texto constitui um documento de referência direta para a teologia da libertação.

5. Por duas vezes, em 1971 e 1974, o Sínodo dos Bispos tratou de temas que se referem diretamente à concepção cristã da libertação: o tema da justiça no mundo e o tema da relação entre a libertação das opressões e a libertação integral ou a salvação do homem. Os trabalhos dos Sínodos de 1971 e de 1974 levaram Paulo VI a esclarecer, na Exortação apostólica Evangelii nuntiandi, a relação que existe entre a evangelização e a libertação ou a promoção humana.

6. A preocupação da Igreja pela libertação e pela promoção humana traduziu-se também no fato da constituição da Pontifícia Comissão Justiça e Paz.

7. Numerosos episcopados, de acordo com a Santa Sé, têm lembrado também eles a urgência e os caminhos para uma autêntica libertação humana. Neste contexto convém fazer menção especial dos documentos das Conferências Gerais do Episcopado Latino-Americano de Medelín, em 1968, e de Puebla, em 1979. Paulo VI esteve presente na abertura de Medelín, João Paulo II na de Puebla. Ambos os Papas trataram do tema da conversão e da libertação.

8. Seguindo as pegadas de Paulo VI, insistindo na especificidade da mensagem do Evangelho, especificidade que deriva da sua origem divina, João Paulo II, no discurso de Puebla, lembrou quais são os três pilares sobre os quais deve assentar uma autêntica teologia da libertação: a verdade sobre Jesus Cristo, a verdade sobre a Igreja e a verdade sobre o homem.

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VI - UMA NOVA INTERPRETAÇÃO DO CRISTIANISMO

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1. Não se pode esquecer a ingente soma de trabalho desinteressado realizado por cristãos, pastores, sacerdotes, religiosos e leigos que, impelidos pelo amor a seus irmãos que vivem em condições desumanas, se esforçam por prestar auxílio e proporcionar alívio aos inumeráveis males que são frutos da miséria. Entre eles, alguns se preocupam por encontrar os meios eficazes que permitam pôr fim, o mais depressa possível, a uma situação intolerável.

2. O zelo e a compaixão, que devem ocupar um lugar no coração de todos os pastores, correm por vezes o risco de se desorientar ou de serem desviados para iniciativas não menos prejudiciais ao homem e à sua dignidade do que a própria miséria que se combate, se não se prestar suficiente atenção a certas tentações.

3. O sentimento angustiante da urgência dos problemas não pode levar a perder de vista o essencial, nem fazer esquecer a resposta de Jesus ao Tentador (Mt 4,4): "Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus" (Dt 8,3). Assim, sucede que alguns, diante da urgência de repartir o pão, são tentados a colocar entre parênteses e a adiar para amanhã a evangelização: primeiro o pão, a palavra mais tarde. É um erro fatal separar as duas coisas, até chegar a opô-las. O senso cristão, aliás, espontaneamente sugere a muitos que façam uma e outra.

4. A alguns parece até que a luta necessária para obter justiça e liberdade humanas, entendidas no sentido econômico e político, constitua o essencial e a totalidade da salvação. Para estes, o Evangelho se reduz a um evangelho puramente terrestre.

5. É em relação à opção preferencial pelos pobres, reafirmada com vigor e sem meios termos, após Medelín, na Conferência de Puebla, de um lado, e à tentação de reduzir o Evangelho da salvação a um evangelho terrestre, de outro lado, que se situam as diversas teologias da libertação.

6. Lembremos que a opção preferencial, definida em Puebla, é dupla: pelos pobres e pelos jovens. É significativo que a opção pela juventude seja, de maneira geral, totalmente silenciada.

7. Dissemos acima (cf. IV, 1) que existe uma autêntica "teologia da libertação", aquela que lança raízes na Palavra de Deus, devidamente interpretada.

8. Mas sob um ponto de vista descritivo, convém falar das teologias da libertação, pois a expressão abrange posições teológicas, ou até mesmo ideológicas, não apenas diferentes, mas até, muitas vezes, incompatíveis entre si.

9. No presente documento, tratar-se-á somente das produções daquela corrente de pensamento que, sob o nome de "teologia da libertação", propõe uma interpretação inovadora do conteúdo da fé e da existência cristã, interpretação que se afasta gravemente da fé da Igreja, mais ainda, constitui uma negação prática dessa fé.

10. Conceitos tomados por empréstimo, de maneira acrítica, à ideologia marxista e o recurso a teses de uma hermenêutica bíblica marcada pelo racionalismo encontram-se na raiz da nova interpretação, que vem corromper o que havia de autêntico no generoso empenho inicial em favor dos pobres.

sábado, 19 de junho de 2010

Um ano atrás...


Há um ano, a Igreja de Maceió ofereceu um dos seus sacerdotes mais ilustres à Igreja de Aracajú, o bispo auxiliar Dom Henrique Soares da Costa. Um ano de serviço ao povo de Deus de Aracajú, muitos trabalhos e fadigas, mas muita alegria e consolação em Cristo! Grande bênção para os aracajuanos, Dom Henrique deixou muitas saudades no povo de Maceió. Quantas almas esse pastor não conduziu para Deus! Com que sofreguidão acorriam as pessoas à Igreja do Livramento para ouvir não a ele, mas à Palavra de Deus que ele tão graciosamente consegue comunicar com uma paixão incomum! Quantas pessoas, entre as quais tantas vezes eu próprio, não acharam consolo e reconforto em seus braços de pastor! Quantos pecados perdoados! Quantos santos conselhos! Quantas vezes esse santo pastor alimentou com o Sagrado Corpo de Cristo os fiéis católicos! Quantos não gerou para Cristo pelo batismo e pela Palavra! Quantas vocações não despertou e alimentou! Quantas pessoas não educou na sagrada teologia! Sim, esse inesquecível pastor que ama profundamente ao Cristo nosso Deus levou muitos a amar ao Senhor.
Agora, o povo de Deus que peregrina em Aracajú é quem pode testemunhar o quanto Dom Henrique tem sido importante para o seu caminhar. Entretanto, mesmo com só um ano de auxilio ao arcebispo José Palmeira Lessa no pastoreio da Igreja de Aracajú, pode-se perceber claramente o carinho que lhe dedicam todo o povo, desde o arcebispo até o clero e os fiéis mais simples, aos quais o bispo auxiliar acolhe com edificante carinho.
Dom Henrique, de todo o coração - em meu nome e, com toda a certeza, de todos os que o conheceram - vos desejo parabéns e que o Senhor multiplique seus anos de vida e de episcopado tão fecundos, continuando a pastorear em Cristo o Povo santo de Deus.

Instrução Libertatis Nuntius sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação – 2

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III - A LIBERTAÇÃO, TEMA CRISTÃO

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1. Considerada em si mesma, a aspiração pela libertação não pode deixar de encontrar eco amplo e fraterno no coração e no espírito dos cristãos.

2. Assim, em consonância com esta aspiração, nasceu o movimento teológico e pastoral conhecido pelo nome de "teologia da libertação": num primeiro momento nos países da América Latina, marcados pela herança religiosa e cultural do cristianismo; em seguida, nas outras regiões do Terceiro Mundo, bem como em alguns ambientes dos países industrializados.

3. A expressão "teologia da libertação" designa primeiramente uma preocupação privilegiada, geradora de compromisso pela justiça, voltada para os pobres e para as vítimas da opressão. A partir desta abordagem podem-se distinguir diversas maneiras, freqüentemente inconciliáveis, de conceber a significação cristã da pobreza e o tipo de compromisso pela justiça que ela exige. Como todo movimento de idéias, as "teologias da libertação" englobam posições teológicas diversificadas; suas fronteiras doutrinais são mal definidas.

4. A aspiração pela libertação, como o próprio termo indica, refere-se a um tema fundamental do Antigo e do Novo Testamento. Por isso, tomada em si mesma a expressão "teologia da libertação" é uma expressão perfeitamente válida: designa, neste caso, uma reflexão teológica centrada no tema bíblico da libertação e da liberdade e na urgência de suas incidências práticas. A convergência entre a aspiração pela libertação e as teologias da libertação não é, pois, fortuita. O significado desta convergência não pode ser compreendido corretamente senão à luz da especificidade da mensagem da Revelação, autenticamente interpretada pelo Magistério da Igreja.

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IV - FUNDAMENTOS BÍBLICOS

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1. Uma teologia da libertação corretamente entendida constitui, pois, um convite aos teólogos a aprofundar certos temas bíblicos essenciais, com o espírito atento às graves e urgentes questões que a atual aspiração pela libertação e os movimentos de libertação, ecomais ou menos fiel dessa aspiração, põem à Igreja. Não é possível esquecer, por um só instante, as situações de dramática miséria de onde brota a interpelação assim lançada aos teólogos.

2. A experiência radical da liberdade cristã constitui aqui o primeiro ponto de referência. Cristo, nosso Libertador, libertou-nos do pecado e da escravidão da lei e da carne, que constitui a marca da condição do homem pecador. É, pois, a vida nova da graça, fruto da justificação, que nos torna livres. Isto significa que a mais radical das escravidões é a escravidão do pecado. As demais formas de escravidão encontram, pois, na escravidão do pecado, a sua raiz mais profunda. É por isso que liberdade, no pleno sentido cristão, caracterizada pela vida no Espírito, não pode ser confundida com a licença de ceder aos desejos da carne. Ela é vida nova na caridade.

3. As "teologias da libertação" recorrem amplamente à narração do Livro do Êxodo. Este constitui, de fato, o acontecimento fundamental na formação do povo eleito. É preciso não perder de vista, contudo, que a significação específica do acontecimento provém de sua finalidade, já que esta libertação está orientada para a constituição do povo de Deus e para o culto da Aliança celebrado no Monte Sinai.

Por isso, a libertação do Êxodo não pode ser reduzida a uma libertação de natureza prevalentemente ou exclusivamente política. É significativo, de resto, que o termo libertação seja às vezes substituído na Sagrada Escritura pelo outro, muito semelhante, de redenção.

4. Jamais se apagará da memória de Israel o episódio que originou o Êxodo. Ele é o ponto de referência quando, após a destruição de Jerusalém e o exílio de Babilônia, o povo eleito vive na esperança de uma nova libertação e, para além dessa, na expectativa de uma libertação definitiva. Nessa experiência, Deus é reconhecido como o Libertador. Ele estabelecerá com seu povo uma nova Aliança, marcada pelo dom do seu Espírito e pela conversão dos corações.

5. As múltiplas angústias e desgraças experimentadas pelo homem fiel ao Deus da Aliança servem de tema para diversos salmos: lamentações, pedidos de socorro, ações de graças referem-se à salvação religiosa e à libertação. Nesse contexto, a desgraça não se identifica pura e simplesmente com uma condição social de miséria ou com a sorte de quem sofre opressão política. Ela inclui também a hostilidade dos inimigos, a injustiça, a morte e a culpa. Os salmos nos remetem a uma experiência religiosa essencial: somente de Deus se espera a salvação e o remédio. Deus, e não o homem, tem o poder de mudar as situações de angústia. Assim, os "pobres do Senhor" vivem numa dependência total e confiante na providência amorosa de Deus. Aliás, durante toda a travessia do deserto, o Senhor nunca deixou de prover à libertação e à purificação espirituais de seu povo.

6. No Antigo Testamento, os profetas, desde Amós, não cessam de recordar, com particular vigor, as exigências da justiça e da solidariedade e de formular um juízo extremamente severo sobre os ricos que oprimem o pobre. Tomam a defesa da viúva e do órfão. Proferem ameaças contra os poderosos: a acumulação de iniquidade acarretará necessariamente terríveis castigos. Isto porque não se concebe a fidelidade à Aliança sem a prática da justiça. A justiça em relação a Deus e a justiça em relação aos homens são inseparáveis. Deus é o defensor e o libertador do pobre.

7. Semelhantes exigências encontram-se também no Novo Testamento. Ali são até radicalizadas, como demonstra o discurso das Bem-aventuranças. Conversão e renovação devem operar-se no mais íntimo do coração.

8. Já anunciado no Antigo Testamento, o mandamento do amor fraterno estendido a todos os homens constitui agora a suprema norma da vida social. Não há discriminações ou limites que possam opor-se ao reconhecimento de todo e qualquer homem como o próximo.

9. A pobreza por amor ao Reino é exaltada. E na figura do pobre somos levados a reconhecer a imagem e como que a presença misteriosa do Filho de Deus que se fez pobre por nosso amor. Este é o fundamento das inexauríveis palavras de Jesus sobre o Juízo, em Mt 25,31-46. Nosso Senhor é solidário com toda desgraça; toda desgraça leva a marca de sua Presença

10. Contemporaneamente, as exigências da justiça e da misericórdia, já enunciadas no Antigo Testamento, são aprofundadas a ponto de revestirem no Novo Testamento uma significação nova. Aqueles que sofrem ou são perseguidos são identificados com Cristo. A perfeição que Jesus exige de seus discípulos (Mt 5,18) consiste no dever de serem misericordiosos "como vosso Pai é misericordioso" (Lc 6,36).

11. É à luz da vocação cristã ao amor fraterno e à misericórdia que os ricos são severamente admoestados para que cumpram o seu dever. São Paulo, perante as desordens na Igreja de Corinto, acentua vigorosamente a ligação que existe entre tomar parte no sacramento do amor e repartir o pão com o irmão que se encontra em necessidade.

12. A Revelação do Novo Testamento nos ensina que o pecado é o mal mais profundo, que atinge o homem no cerne da sua personalidade. A primeira libertação, ponto de referência para as demais, é a do pecado.

13. Se o Novo Testamento se abstém de exigir previamente, como pressuposto para a conquista desta liberdade, uma mudança da condição política e social, é, sem dúvida, para salientar o caráter radical da emancipação trazida por Cristo, oferecida a todos os homens, sejam eles livres ou escravos politicamente. Contudo, a Carta a Filêmon mostra que a nova liberdade, trazida pela graça de Cristo, deve necessariamente ter repercussão também no campo social.

14. Não se pode, portanto, restringir o campo do pecado, cujo primeiro efeito é o de introduzir a desordem na relação entre o homem e Deus, àquilo que se denomina "pecado social". Na verdade, só uma adequada doutrina sobre o pecado permitirá insistir sobre a gravidade de seus efeitos sociais.

15. Não se pode tampouco situar o mal unicamente ou principalmente nas "estruturas" econômicas, sociais ou políticas, como se todos os outros males derivassem destas estruturas como de sua causa: neste caso, a criação de um "homem novo" dependeria da instauração de estruturas econômicas e sócio-políticas diferentes. Há, certamente, estruturas iníquas e geradoras de iniqüidade, e é preciso ter a coragem de mudá-las. Fruto da ação do homem, as estruturas boas ou más são conseqüências antes de serem causas. A raiz do mal se encontra, pois, nas pessoas livres e responsáveis, que devem ser convertidas pela graça de Jesus Cristo, para viver e agir como criaturas novas, no amor ao próximo, na busca eficaz da justiça, do autodomínio e do exercício das virtudes.

Ao estabelecer como primeiro imperativo a revolução radical das relações sociais e ao criticar, a partir desta posição, a busca da perfeição pessoal, envereda-se pelo caminho da negação do sentido da pessoa e de sua transcendência, e destroem-se a ética e o seu fundamento,que é o caráter absoluto da distinção entre o bem e o mal. Ademais, sendo a caridade o princípio da autêntica perfeição, esta não pode ser concebida sem abertura aos outros e sem espírito de serviço.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Instrução Libertatis Nuntius sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação – 1

Instrução
LIBERTATIS NUNTIUS
da Congregação para a Doutrina da Fé
sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação

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INTRODUÇÃO

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O Evangelho de Jesus Cristo é mensagem de liberdade e força de libertação. Esta verdade essencial tornou-se, nos últimos anos, objeto da reflexão dos teólogos, com uma nova atenção que, em si mesma, é rica de promessas.

A libertação é antes de tudo e principalmente libertação da escravidão radical do pecado. Seu objetivo e seu termo é a liberdade dos filhos de Deus, que é dom da graça. Ela exige, por uma conseqüência lógica, a libertação de muitas outras escravidões, de ordem cultural, econômica, social e política, que, em última análise, derivam todas do pecado e constituem outros tantos obstáculos que impedem os homens de viver segundo a própria dignidade. Discernir com clareza o que é fundamental e o que faz parte das conseqüências é condição indispensável para uma reflexão teológica sobre a libertação.

Na verdade, diante da urgência dos problemas, alguns são levados a acentuar unilateralmente a libertação das escravidões de ordem terrena e temporal, dando a impressão de relegar ao segundo plano a libertação do pecado e, portanto, de não atribuir-lhe praticamente a importância primordial que lhe compete. A apresentação dos problemas por eles proposta torna-se, por isso, confusa e ambígua. Outros, com a intenção de chegar a um conhecimento mais exato das causas das escravidões que desejam eliminar, servem-se, sem a suficiente precaução crítica, de instrumentos de pensamento que é difícil, e até mesmo impossível, purificar de uma inspiração ideológica incompatível com a fé cristã e com as exigências éticas que dela derivam.

A Congregação para a Doutrina da Fé não pretende tratar aqui o vasto tema da liberdade cristã e da libertação em si mesmo. Propõe-se a fazê-lo num documento posterior, no qual porá em evidência, de maneira positiva, toda a sua riqueza, tanto para a doutrina como para a prática.

A presente Instrução tem uma finalidade mais precisa e mais limitada: quer chamar a atenção dos Pastores, dos teólogos e de todos os fiéis para os desvios e perigos de desvios, prejudiciais à fé e à vida cristã, inerentes a certas formas da teologia da libertação que usam, de maneira insuficientemente crítica, conceitos assumidos de diversas correntes do pensamento marxista.

Esta advertência não deve, de modo algum, ser interpretada como uma desaprovação de todos aqueles que querem responder generosamente e com autêntico espírito evangélico à "opção preferencial pelos pobres". Nem pode, de maneira alguma, servir de pretexto para aqueles que se refugiam numa atitude de neutralidade e de indiferença diante dos trágicos e urgentes problemas da miséria e da injustiça. Pelo contrário, é ditada pela certeza de que os graves desvios ideológicos que ela aponta levam inevitavelmente a trair a causa dos pobres. Mais do que nunca, convém que grande número de cristãos, com uma fé esclarecida e decididos a viver a vida cristã na sua totalidade, se empenhem, por amor a seus irmãos deserdados, oprimidos ou perseguidos, na luta pela justiça, pela liberdade e pela dignidade humana. Hoje mais do que nunca, a Igreja propõe-se a condenar os abusos, as injustiças e os atentados à liberdade, onde quer que eles aconteçam e quaisquer que sejam seus autores, e lutar, com os seus próprios meios, pela defesa e promoção dos direitos do homem, especialmente na pessoa dos pobres.

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I - UMA ASPIRAÇÃO

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1. A poderosa e quase irresistível aspiração dos povos à libertação constitui um dos principais sinais dos tempos que a Igreja deve perscrutar e interpretar à luz do Evangelho. Este fenômeno marcante de nossa época tem uma amplidão universal; manifesta-se, porém, em formas e em graus diferentes, conforme os povos. É sobretudo entre os povos que experimentam o peso da miséria e entre as camadas deserdadas que esta aspiração se exprime com vigor.

2. Esta aspiração traduz a percepção autêntica, ainda que obscura, da dignidade do homem, criado "à imagem e semelhança de Deus" (Gn1,26-27), rebaixada e menosprezada por múltiplas opressões culturais, políticas, raciais, sociais e econômicas, que muitas vezes se acumulam.

3. Ao revelar-lhes a sua vocação de filhos de Deus, o Evangelho suscitou no coração dos homens a exigência e a vontade positiva de uma vida fraterna, justa e pacífica, na qual cada pessoa possa encontrar o respeito e as condições da sua auto-realização espiritual e material. Esta exigência encontra-se, sem dúvida, na raiz da aspiração de que falamos.

4. Por consequência, o homem já não está disposto a sujeitar-se passivamente ao peso esmagador da miséria, com suas sequelas de morte, doença e depauperamento. Sente profundamente esta miséria como uma intolerável violação da sua dignidade original. Muitos fatores,entre os quais é preciso incluir o fermento evangélico, contribuíram para o despertar da consciência dos oprimidos.

5. Já não se ignora, mesmo nos segmentos da população ainda dominados pelo analfabetismo, que, graças ao maravilhoso progresso das ciências e das técnicas, a humanidade, em constante crescimento demográfico, seria capaz de assegurar a cada ser humano um mínimo de bens exigidos pela sua dignidade de pessoa.

6. O escândalo das gritantes desigualdades entre ricos e pobres – quer se trate de desigualdades entre países ricos e países pobres, ou de desigualdades entre camadas sociais dentro de um mesmo território nacional – já não é tolerado. De um lado, atingiu-se uma abundância jamais vista até agora, que favorece o desperdício; e, de outro lado, vive-se ainda numa situação de indigência, marcada pela privação dos bens de primeira necessidade, de modo que já não se conta mais o número das vítimas da subnutrição.

7. A falta de equidade e de sentido de solidariedade nos intercâmbios internacionais reverte de tal modo em benefício dos países industrializados, que a distância entre ricos e pobres aumenta sem cessar. Daí o sentimento de frustração, entre os povos do Terceiro Mundo, e a acusação de exploração e de colonialismo econômico lançada contra os países industrializados.

8. A recordação dos estragos causados por um certo tipo de colonialismo e de suas consequências aviva muitas vezes feridas e traumatismos.

9. A Sé Apostólica, na linha do Concílio Vaticano II, bem como as Conferências Episcopais, não têm cessado de denunciar o escândalo que constitui a gigantesca corrida armamentista que, além das ameaças que faz pesar sobre a paz, absorve enormes somas, uma parcela das quais seria suficiente para acudir às necessidades mais urgentes das populações privadas do necessário.

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II – EXPRESSÕES DESTA ASPIRAÇÃO

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1. A aspiração pela justiça e pelo reconhecimento efetivo da dignidade de cada ser humano, como qualquer outra aspiração profunda, exige ser esclarecida e orientada.

2. Com efeito, é um dever usar de discernimento acerca das expressões, teóricas e práticas, desta aspiração. Pois existem numerosos movimentos políticos e Sociais que se apresentam como porta-vozes autênticos da aspiração dos pobres e como habilitados, mesmo com o recurso a meios violentos, a realizar as transformações radicais que poriam fim à opressão e à miséria do povo.

3. Deste modo, a aspiração pela justiça encontra-se muitas vezes prisioneira de ideologias que ocultam ou pervertem o seu sentido, propondo à luta dos povos para a sua libertação objetivos que se opõem à verdadeira finalidade da vida humana e pregando meios de ação que implicam o recurso sistemático à violência, contrários a uma ética que respeite as pessoas.

4. A interpretação dos sinais dos tempos à luz do Evangelho exige, pois, que se perscrute o sentido da aspiração profunda dos povos pela justiça, mas, ao mesmo tempo, que se examinem, com um discernimento crítico, as expressões teóricas e práticas que são componentes desta aspiração.

terça-feira, 1 de junho de 2010

O Leão de Münster - 4

E Pio XII escreveu: “Você tem todo o meu apoio”

Mas isso não é tudo. Existem também outros documentos que mostram e assinalam com clareza a relação de estima e sintonia entre o Pio XII e o “Leão de Münster”: a correspondência entre eles. Consta nos documentos do Arquivo Secreto Vaticano que Pio XII enviou cartas diretamente a Von Galen.

Quatro dessas cartas escritas pelo Papa em língua alemã estão contidas no segundo volume dos Actes et documents du Saint Siège relatifs à la Seconde guerre mundiale, a obra monumental em 11 volumes e 12 tomos organizada por estudiosos jesuítas que reúne a documentação da Secretaria de Estado e do Arquivo Secreto Vaticano concernentes àqueles anos. Obra que, como se sabe, foi desejada por Paulo VI, quando, no início da década de 1960, fez com que se abrisse antecipadamente a consulta aos Arquivos Vaticanos depois do crescimento da lenda negra que se construiu em torno da figura de seu predecessor. As cartas enviadas ao bispo de Münster trazem estas datas: 12 de junho de 1940; 16 de fevereiro de 1941; 24 de fevereiro de 1943; 26 de março de 1944.

Nessa correspondência, Pio XII sublinha mais de uma vez sua gratidão, a convergência de visões e o apreço pelo que realizara o prelado alemão. Na carta de 24 de fevereiro de 1943, por exemplo, ao exprimir-lhe sua viva “consolação” todas as vezes que chegava “a seu conhecimento uma palavra clara e corajosa da parte de um bispo”, insiste também em assegurar-lhe quanto ao fato de que os bispos que agem com “intervenções resolutas e corajosas em favor da verdade e do direito e contra a injustiça não trazem dano à reputação de seu povo no exterior”, mas, pelo contrário, “são um benefício para ele”, mesmo que alguém venha a acusá-los do contrário. Além disso, Pio XII agradece expressamente a Von Galen por ter “preparado”, com suas cartas pastorais, o terreno para sua Mensagem de Natal de 24 de dezembro de 1942. Mensagem que agradou ao New York Times pelas “palavras claras em defesa dos judeus” e por ter “denunciado ao mundo o massacre de tantos ino­centes”; e cuja divulgação, na Alemanha, foi considerada pelas altas patentes do Reich “um crime contra a segurança do Estado, passível de pena de morte”.

A importância dessas cartas é tanto mais decisiva quanto mais se considera o contexto em que estão compreendidas. As cartas a Von Galen fazem parte de um corpus de 124 missivas enviadas por Pio XII aos prelados alemães ao longo dos anos de 1939 a 1944. O motivo dessa correspondência foi expresso pelo próprio Pio XII aos quatro cardeais de língua alemã que foram a Roma em março de 1939 por ocasião do conclave que o elegeu papa. Depois do conclave, os cardeais prolongaram sua estada na Cidade Eterna para examinar com o novo Pontífice a situação da Igreja na Alemanha, situação que o Papa havia acompanhado de perto, primeiramente como núncio e depois como secretário de Estado. A eles, portanto, diz assim: “A questão alemã, para mim, é a mais importante. Eu me reservo tratar dela pessoalmente”. Assim, Pacelli, abrindo uma exceção, convidou os cardeais, e, por meio deles, o episcopado, a escrever-lhe diretamente. Em sua primeira carta ao episcopado alemão, de 20 de julho de 1939, Pio XII, com espírito comovido, lembrou os anos que passou na Alemanha e as relações que ainda conservava lá: “...pois isso nos permitiu ter hoje, da situação, dos sofrimentos, das tarefas, das necessidades dos católicos na Alemanha aquele conhecimento aprofundado que só pode nascer da experiência pessoal direta e prolongada ao longo de muitos anos”. Com o início da guerra, essas relações diretas iriam se tornar ainda mais preciosas. Convidando-os a escrever-lhe, o Papa lhes mostrava que a nunciatura de Berlim possuía uma via segura de correspondência com Roma. A correspondência, que foi mantida até o último ano da guerra, mostra como os bispos se serviram amplamente dessa possibilidade que lhes era oferecida extraordinariamente de se comunicar com o chefe da Igreja, enviando regularmente ao Papa todas as informações possíveis, anexando a elas as cópias dos documentos mais importantes.

As Lettres de Pie XII aux évêques allemands, documentos conhecidos dos estudiosos, continuam, no entanto, ainda desconhecidos da maioria. Mesmo assim, as declarações contidas nessas cartas são de importância capital para compreender não apenas a resistência católica na Alemanha, o estado de perseguição sob o nazismo e a posição do episcopado alemão, com muita freqüência considerado, erroneamente, filonazista, mas também, como explica o jesuíta padre Pierre Blet em seu Pio XII e la Seconda guerra mondiale negli Archivi vaticani, “constituem um documento excepcional do pensamento de Pio XII, de suas intenções e de sua obra”. Intenções e pensamento comuns àquele que, sem temor, tinha ousado gritar na cara dos nazistas: “Não posso ter comunhão de povo com assassinos que justificam a morte de inocentes. [...] O Deus de vocês é o ventre”.