sábado, 24 de dezembro de 2011

Apareceu-nos a bondade de Deus - Natividade de Nosso Senhor Jesus Cristo


Eis a belíssima homilia do Santo Padre Bento XVI na Missa da Noite do Natal deste ano de 2011. É uma oportunidade para nos aproximarmos mais do Menino-Deus que veio até nós para nossa salvação. Um santo e abençoado Natal para todos! 

Amados irmãos e irmãs!
A leitura que ouvimos, tirada da Carta do Apóstolo São Paulo a Tito, começa solenemente com a palavra «apparuit», que encontramos de novo na leitura da Missa da Aurora: «apparuit – manifestou-se». Esta é uma palavra programática, escolhida pela Igreja para exprimir, resumidamente, a essência do Natal. Antes, os homens tinham falado e criado imagens humanas de Deus, das mais variadas formas; o próprio Deus falara de diversos modos aos homens (cf. Heb 1, 1: leitura da Missa do Dia). Agora, porém, aconteceu algo mais: Ele manifestou-Se, mostrou-Se, saiu da luz inacessível em que habita. Ele, em pessoa, veio para o meio de nós. Na Igreja antiga, esta era a grande alegria do Natal: Deus manifestou-Se. Já não é apenas uma ideia, nem algo que se há-de intuir a partir das palavras. Ele «manifestou-Se». Mas agora perguntamo-nos: Como Se manifestou? Ele verdadeiramente quem é? A este respeito, diz a leitura da Missa da Aurora: «Manifestaram-se a bondade de Deus (…) e o seu amor pelos homens» (Tt 3, 4). Para os homens do tempo pré-cristão – que, vendo os horrores e as contradições do mundo, temiam que o próprio Deus não fosse totalmente bom, mas pudesse, sem dúvida, ser também cruel e arbitrário –, esta era uma verdadeira «epifania», a grande luz que se nos manifestou: Deus é pura bondade. Ainda hoje há pessoas que, não conseguindo reconhecer a Deus na fé, se interrogam se a Força última que segura e sustenta o mundo seja verdadeiramente boa, ou então se o mal não seja tão poderoso e primordial como o bem e a beleza que, por breves instantes luminosos, se nos deparam no nosso cosmos. «Manifestaram-se a bondade de Deus (…) e o seu amor pelos homens»: eis a certeza nova e consoladora que nos é dada no Natal.
Na primeira das três leituras desta Missa de Natal, a liturgia cita um texto tirado do livro do Profeta Isaías, que descreve, de forma ainda mais concreta, a epifania que se verificou no Natal: «Um Menino nasceu para nós, um filho nos foi concedido. Tem o poder sobre os ombros, e dão-lhe o seguinte nome: “Conselheiro admirável! Deus valoroso! Pai para sempre! Príncipe da Paz!” O poder será engrandecido numa paz sem fim» (Is 9, 5-6). Não sabemos se o profeta, ao falar assim, tenha em mente um menino concreto nascido no seu período histórico. Mas isso parece ser impossível. Trata-se do único texto no Antigo Testamento, onde de um menino, de um ser humano, se diz: o seu nome será Deus valoroso, Pai para sempre. Estamos perante uma visão que se estende muito para além daquele momento histórico apontando para algo misterioso, colocado no futuro. Um menino, em toda a sua fragilidade, é Deus valoroso; um menino, em toda a sua indigência e dependência, é Pai para sempre. E isto «numa paz sem fim». Antes, o profeta falara duma espécie de «grande luz» e, a propósito da paz dimanada d’Ele, afirmara que o bastão do opressor, o calçado ruidoso da guerra, toda a veste manchada de sangue seriam lançados ao fogo (cf. Is 9, 1.3-4).
Deus manifestou-Se… como menino. É precisamente assim que Ele Se contrapõe a toda a violência e traz uma mensagem de paz. Neste tempo, em que o mundo está continuamente ameaçado pela violência em tantos lugares e de muitos modos, em que não cessam de reaparecer bastões do opressor e vestes manchadas de sangue, clamamos ao Senhor: Vós, o Deus forte, manifestastes-Vos como menino e mostrastes-Vos a nós como Aquele que nos ama e por meio de quem o amor há-de triunfar. Fizestes-nos compreender que, unidos convosco, devemos ser artífices de paz.  Amamos o vosso ser menino, a vossa não-violência, mas sofremos pelo facto de perdurar no mundo a violência, levando-nos a rezar assim: Demonstrai a vossa força, ó Deus. Fazei que, neste nosso tempo e neste nosso mundo, sejam queimados os bastões do opressor, as vestes manchadas de sangue e o calçado ruidoso da guerra, de tal modo que a vossa paz triunfe neste nosso mundo.
Natal é epifania: a manifestação de Deus e da sua grande luz num menino que nasceu para nós. Nascido no estábulo de Belém, não nos palácios do rei. Em 1223, quando Francisco de Assis celebrou em Greccio o Natal com um boi, um jumento e uma manjedoura cheia de feno, tornou-se visível uma nova dimensão do mistério do Natal. Francisco de Assis designou o Natal como «a festa das festas» – mais do que todas as outras solenidades – e celebrou-a com «solicitude inefável» (2 Celano, 199: Fontes Franciscanas, 787). Beijava, com grande devoção, as imagens do menino e balbuciava-lhes palavras de ternura como se faz com os meninos – refere Tomás de Celano (ibidem). Para a Igreja antiga, a festa das festas era a Páscoa: na ressurreição, Cristo arrombara as portas da morte, e assim mudou radicalmente o mundo: criara para o homem um lugar no próprio Deus. Pois bem! Francisco não mudou, nem quis mudar, esta hierarquia objectiva das festas, a estrutura interior da fé com o seu centro no mistério pascal. Mas, graças a Francisco e ao seu modo de crer, aconteceu algo de novo: ele descobriu, numa profundidade totalmente nova, a humanidade de Jesus. Este facto de Deus ser homem resultou-lhe evidente ao máximo, no momento em que o Filho de Deus, nascido da Virgem Maria, foi envolvido em panos e colocado numa manjedoura. A ressurreição pressupõe a encarnação. O Filho de Deus visto como menino, como verdadeiro filho de homem: isto tocou profundamente o coração do Santo de Assis, transformando a fé em amor. «Manifestaram-se a bondade de Deus e o seu amor pelos homens»: esta frase de São Paulo adquiria assim uma profundidade totalmente nova. No menino do estábulo de Belém, pode-se, por assim dizer, tocar Deus e acarinhá-Lo. E o Ano Litúrgico ganhou assim um segundo centro numa festa que é, antes de mais nada, uma festa do coração.
Tudo isto não tem nada de sentimentalismo. É precisamente na nova experiência da realidade da humanidade de Jesus que se revela o grande mistério da fé. Francisco amava Jesus menino, porque, neste ser menino, tornou-se-lhe clara a humildade de Deus. Deus tornou-Se pobre. O seu Filho nasceu na pobreza do estábulo. No menino Jesus, Deus fez-Se dependente, necessitado do amor de pessoas humanas, reduzido à condição de pedir o seu, o nosso, amor. Hoje, o Natal tornou-se uma festa dos negócios, cujo fulgor ofuscante esconde o mistério da humildade de Deus, que nos convida à humildade e à simplicidade. Peçamos ao Senhor que nos ajude a alongar o olhar para além das fachadas lampejantes deste tempo a fim de podermos encontrar o menino no estábulo de Belém e, assim, descobrimos a autêntica alegria e a verdadeira luz.
Francisco fazia celebrar a santíssima Eucaristia, sobre a manjedoura que estava colocada entre o boi e o jumento (cf. 1 Celano, 85: Fontes, 469). Depois, sobre esta manjedoura, construiu-se um altar para que, onde outrora os animais comeram o feno, os homens pudessem agora receber, para a salvação da alma e do corpo, a carne do Cordeiro imaculado – Jesus Cristo –, como narra Celano (cf. 1 Celano, 87: Fontes, 471). Na Noite santa de Greccio, Francisco – como diácono que era – cantara, pessoalmente e com voz sonora, o Evangelho do Natal. E toda a celebração parecia uma exultação contínua de alegria, graças aos magníficos cânticos natalícios dos Frades (cf. 1 Celano, 85 e 86: Fontes, 469 e 470). Era precisamente o encontro com a humildade de Deus que se transformava em júbilo: a sua bondade gera a verdadeira festa.
Hoje, quem entra na igreja da Natividade de Jesus em Belém dá-se conta de que o portal de outrora com cinco metros e meio de altura, por onde entravam no edifício os imperadores e os califas, foi em grande parte tapado, tendo ficado apenas uma entrada com metro e meio de altura. Provavelmente isso foi feito com a intenção de proteger melhor a igreja contra eventuais assaltos, mas sobretudo para evitar que se entrasse a cavalo na casa de Deus. Quem deseja entrar no lugar do nascimento de Jesus deve inclinar-se. Parece-me que nisto se encerra uma verdade mais profunda, pela qual nos queremos deixar tocar nesta noite santa: se quisermos encontrar Deus manifestado como menino, então devemos descer do cavalo da nossa razão «iluminada». Devemos depor as nossas falsas certezas, a nossa soberba intelectual, que nos impede de perceber a proximidade de Deus. Devemos seguir o caminho interior de São Francisco: o caminho rumo àquela extrema simplicidade exterior e interior que torna o coração capaz de ver. Devemos inclinar-nos, caminhar espiritualmente por assim dizer a pé, para podermos entrar pelo portal da fé e encontrar o Deus que é diverso dos nossos preconceitos e das nossas opiniões: o Deus que Se esconde na humildade dum menino acabado de nascer. Celebremos assim a liturgia desta Noite santa, renunciando a fixarmo-nos no que é material, mensurável e palpável. Deixemo-nos fazer simples por aquele Deus que Se manifesta ao coração que se tornou simples. E nesta hora rezemos também e sobretudo por todos aqueles que são obrigados a viver o Natal na pobreza, no sofrimento, na condição de emigrante, pedindo que se lhes manifeste a bondade de Deus no seu esplendor, que nos toque a todos, a eles e a nós, aquela bondade que Deus quis, com o nascimento de seu Filho no estábulo, trazer ao mundo. Amen.

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quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O desenvolvimento orgânico da Liturgia


Ao contrário do que pensam os reformistas radicais e seus adversários intransigentes, um desenvolvimento adequado da liturgia só é possível quando se dá atenção às leis internas que sustentam esse “organismo”

de Joseph Ratzinger

Nas últimas décadas, a questão da correta celebração da liturgia tornou-se cada vez mais um dos pontos centrais da controvérsia em torno do Concílio Vaticano II, ou seja, de como o Concílio deveria ser avaliado e acolhido na vida da Igreja.

Há quem defenda tenazmente a reforma e considere uma culpa intolerável que, em certas condições, tenha sido readmitida a celebração da santa Eucaristia segundo a última edição do Missal feita antes do Concílio, a de 1962. Ao mesmo tempo, porém, a liturgia é considerada como “semper reformanda”, de forma tal que, no fim das contas, cada “comunidade” faz sua liturgia “própria”, na qual exprime a si mesma. Um Liturgisches Kompendium (Compêndio litúrgico, ndr.) protestante (organizado por Christian Grethlein e Günter Ruddat, Göttingen, 2003) apresentou recentemente o culto como “projeto de reforma” (pp. 13-41), refletindo a maneira de pensar também de muitos liturgistas católicos.
Por outro lado, há também os críticos ferozes da reforma litúrgica, os quais não apenas criticam sua aplicação prática, mas também suas bases conciliares. Eles só vêem salvação na total recusa da reforma.
Entre esses dois grupos, os reformistas radicais e seus adversários intransigentes, freqüentemente se perde a voz daqueles que consideram a liturgia algo vivo, algo que cresce e se renova ao ser recebida e ao concretizar-se. Estes, além de tudo, com base na mesma lógica, insistem em que só se dá crescimento quando se preserva a identidade da liturgia, e sublinham que um desenvolvimento adequado só é possível quando se dá atenção às leis internas que sustentam esse “organismo”. Tal como um jardineiro acompanha uma planta durante seu crescimento, dando a devida atenção à suas energias vitais e à suas leis, da mesma forma a Igreja deveria acompanhar respeitosamente o caminho da liturgia através dos tempos, distinguindo o que ajuda e cura daquilo que violenta e destrói.
Se as coisas caminham dessa forma, devemos tentar definir qual é a estrutura interna de um rito, e também quais são suas leis vitais, de forma a encontrar os caminhos adequados para preservar sua energia vital nas mudanças que ocorrem ao longo do tempo, para incrementá-la e renová-la.
O livro de dom Alcuin Reid se insere nessa linha. Percorrendo a história do Rito Romano (missa e breviário) desde suas origens até a vigília do Concílio Vaticano II, ele busca estabelecer quais são os princípios de seu desenvolvimento litúrgico, haurindo, assim, da história, com seus altos e baixos, os critérios nos quais qualquer reforma deve se basear.
O livro se divide em três partes. A primeira, muito breve, analisa a história da reforma do Rito Romano desde suas origens até o fim do século XIX. A segunda é dedicada ao movimento litúrgico até 1948. A terceira - de longe a mais extensa - trata da reforma litúrgica sob Pio XII, até a vigília do Concílio Vaticano II. Essa parte se revela muito útil, justamente porque essa fase da reforma litúrgica já não é muito lembrada, apesar de se encontrarem justamente nela - como também na história do movimento litúrgico, evidentemente - todas as questões acerca das formas corretas de realizar uma reforma, permitindo também adquirir critérios de juízo. A decisão do autor de deter-se no limiar do Concílio Vaticano II é muito sábia. Ele evita, assim, entrar na controvérsia ligada à interpretação e à recepção do Concílio, ilustrando o momento histórico e a estrutura das várias tendências, o que resulta determinante para a questão dos critérios da reforma.
No final de seu livro, o autor relaciona os princípios de uma correta reforma: ela deveria ser em igual medida aberta ao desenvolvimento e à continuidade da Tradição; deveria saber-se ligada a uma tradição litúrgica objetiva e fazer com que a continuidade subs­tancial seja salvaguardada.
O autor, depois, concordando com o Catecismo da Igreja Católica, sublinha que “mesmo a suprema autoridade da Igreja não deve modificar a liturgia arbitrariamente, mas tão-somente em obediência à fé e com respeito religioso pelo mistério da liturgia” (nº 1125; no livro, na p. 258). Por fim, encontramos ainda, como outros critérios, a legitimidade das tradições litúrgicas locais e o interesse pela eficácia pastoral.
Eu gostaria de sublinhar ainda mais, do meu ponto de vista pessoal, alguns dos critérios da renovação litúrgica já brevemente indicados. Começarei com os últimos critérios fundamentais. Parece-me muito importante que o Catecismo, ao mencionar os limites do poder da suprema autoridade da Igreja com relação à reforma, chame a atenção para aquela que é a essência do primado, tal como é sublinhado pelos Concílios Vaticanos I e II: o papa não é um monarca absoluto cuja vontade é lei, mas o guardião da autêntica Tradição e, por isso, o primeiro a garantir a obediência. Ele não pode fazer o que quiser, e justamente por isso pode se opor àqueles que pretendem fazer tudo o que querem. A lei a que deve se ater não é a ação ad libitum, mas a obediência à fé. Por isso, diante da liturgia, tem a função de um jardineiro e não a de um técnico que constrói máquinas novas e joga as velhas fora. O “rito”, ou seja, a forma de celebração e de oração que amadurece na fé e na vida da Igreja, é forma condensada da Tradição viva, na qual a esfera do rito expressa o conjunto de sua fé e de sua oração, tornando assim experimentáveis, ao mesmo tempo, a comunhão entre as gerações e a comunhão com aqueles que rezam antes de nós e depois de nós. Assim, o rito é como um dom concedido à Igreja, uma forma viva de parádosis.
É importante, nesse sentido, interpretar corretamente a “continuidade substancial”. O autor nos alerta expressamente contra o caminho errado ao qual poderíamos ser conduzidos por uma teologia sacramental neo-escolástica desligada da forma viva da liturgia. Partindo dessa teologia, poderíamos reduzir a “substância” à matéria e à forma do sacramento, e dizer: o pão e o vinho são a matéria do sacramento, as palavras da instituição são sua forma; só essas duas coisas são necessárias, todo o resto pode mudar. Nesse ponto, modernistas e tradicionalistas estão de acordo. Basta que haja a matéria e que sejam pronunciadas as palavras da instituição: todo o resto é “a gosto”. Infelizmente, muitos sacerdotes agem hoje com base nesse esquema; e até mesmo as teorias de muitos liturgistas, desafortunadamente, movem-se nessa direção. Eles querem superar o rito como algo rígido e constróem produtos de sua fantasia, considerada pastoral, em torno desse núcleo residual, que, assim, é relegado ao reino da magia ou completamente privado de seu significado.

O movimento litúrgico buscou superar esse reducionismo, produto de uma teologia sacramental abstrata, e ensinar-nos a considerar a liturgia como o conjunto vivo da Tradição transformada em forma, que não pode ser rasgado em pequenos pedaços, mas deve ser visto e vivido em sua totalidade viva. Quem, como eu, na fase do movimento litúrgico que precedeu o Concílio Vaticano II, foi tocado por essa concepção só pode constatar com profunda dor a destruição daquilo que era caro a este movimento.

Gostaria de comentar brevemente outras duas intuições que aparecem no livro de dom Alcuin Reid. O arqueologismo e o pragmatismo pastoral - este último, aliás, é muitas vezes um racionalismo pastoral - são ambos errados. Poderiam ser descritos como um par de gêmeos profanos. Os liturgistas da primeira geração eram, em sua maioria, historiadores, inclinados, conseqüentemente, ao arqueologismo. Queriam desenterrar as formas mais antigas, em sua pureza original; viam os livros litúrgicos em uso, com seus ritos, como expressão de proliferações históricas, fruto de mal-entendidos e ignorância do passado. Buscavam reconstruir a Liturgia Romana mais antiga e limpá-la de todos os acréscimos posteriores. Não era uma coisa totalmente errada; mas a reforma litúrgica é de certa forma algo diferente de uma escavação arqueológica, e nem todos os desdobramentos de algo vivo devem ter a lógica de um critério racionalista/historicista. Essa é também a razão pela qual - como o autor justamente observa -, não deve caber aos especialistas a última palavra na reforma litúrgica. Especialistas e pastores têm cada um o seu papel (tal como, na política, os técnicos e aqueles que são chamados a decidir representam dois níveis diferentes). Os conhecimentos dos estudiosos são importantes, mas não podem ser transformados imediatamente em decisões dos pastores, os quais têm a responsabilidade de ouvir os fiéis para identificar com inteligência, ao lado deles, aquilo que ajuda ou não a celebrar os sacramentos com fé hoje. Uma das fraquezas da primeira fase da reforma depois do Concílio foi que quase apenas os especialistas ti­nham voz no capítulo. Teria sido importante uma maior autonomia por parte dos pastores.
Sendo que muitas vezes, obviamente, fica impossível elevar o conhecimento histórico à condição de nova norma litúrgica, foi muito fácil que esse “arqueologismo” se ligasse ao pragmatismo pastoral. Decidiu-se, em primeiro lugar, eliminar tudo o que não era reconhecido como original, e conseqüentemente como “subs­tancial”, para depois integrar à “escavação arqueológica” - quando ainda parecesse insuficiente - e “o ponto de vista pastoral”. Mas o que é “pastoral”? Os juízos intelectualistas dos professores sobre essas questões eram muitas vezes determinados por suas considerações racionais e não levavam em conta o que realmente sustenta a vida dos fiéis. De tal forma que hoje, depois da vasta racionalização da liturgia na primeira fase da reforma, está-se de novo em busca de formas de solenidade, de atmosferas “místicas” e de uma certa sacralidade. Mas, sendo que existem - necessariamente e de maneira cada vez mais evidente - juízos largamente divergentes sobre o que é pastoralmente eficaz, o aspecto “pastoral” tornou-se a passagem para a irrupção da “criatividade”, a qual dissolve a unidade da liturgia e nos põe com freqüência diante de uma banalidade deplorável. Não se quer dizer com isso que a liturgia eucarística, como também a liturgia da Palavra, não sejam muitas vezes celebradas, a partir da fé, de modo respeitoso e “belo”, no melhor sentido da palavra. Mas, dado que estamos buscando os critérios da reforma, devemos também mencionar os perigos que, infelizmente, nas últimas décadas, não se limitaram a ser apenas fantasias de tradicionalistas inimigos da reforma.
Eu gostaria de me deter ainda no fato de que, no compêndio litúrgico citado acima, o culto foi apresentado como “projeto de reforma”, ou seja, como um canteiro de obras no qual a atividade é incessante. Semelhante, ainda que diferente em alguns pontos, é a sugestão dada por alguns liturgistas católicos de adaptar a reforma litúrgica à mutação antropológica da modernidade e construí-la de maneira antropocêntrica. Se a liturgia aparece antes de mais nada como o canteiro de obras da nossa atividade, isso significa que se esquece a coisa essencial: Deus, uma vez que na liturgia a questão não somos nós, mas Deus. O esquecimento de Deus é o perigo mais iminente do nosso tempo. A essa tendência, a liturgia deveria opor a presença de Deus. Mas o que acontece se o esquecimento de Deus entra até mesmo na liturgia, se, na liturgia, pensamos apenas em nós mesmos? Em qualquer reforma litúrgica e em qualquer celebração litúrgica, o primado de Deus deveria ocupar sempre o primeiríssimo lugar.
Com isso, fui muito além do livro de dom Alcuin. Mas acredito que, de alguma forma, tenha ficado claro que esse livro, com a riqueza de suas observações, nos ensina critérios e nos convida a outras reflexões. Por isso, recomendo sua leitura.

Fonte: http://www.30giorni.it/articoli_id_7298_l6.htm

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Natal no século XXI...

Muito interessante!

Desconstruindo mitos: a Igreja condenou a escravidão


A cada dia que passa, à medida que estudo mais a História da Igreja, percebo mais que a verdade habita nela. A Verdade é Nosso Senhor Jesus Cristo (Jo 14,6) e, portanto, nenhuma mentira - nem as portas do inferno! (Mt 16,18) - prevalecerão contra ela. Uma das mentiras sobre a Igreja que ouvimos  espalhada por aí (eu mesmo as ouvi na Faculdade de História, de professores ignorantes) é a de que a Igreja foi conivente com a escravidão dos negros. Bem, nada como uma fonte primária (vocês sabem o que é isso, senhores historiadores?) para desmentir as mentiras (permitam-me a redundância!). Vejam que interessante o comentário achado no site a seguir e, melhor ainda, o documento do Papa Paulo III, de 1537, sobre a Escravidão, a Bula Veritas Ipsa. Aprendam isto, católicos: da Igreja e de sua História, nós devemos sentir é orgulho! Não tenham medo de estudar e pesquisar a verdade histórica: cavem cada vez mais profundamente, e acharão cumprida a promessa do Senhor: as portas do inferno JAMAIS prevalecerão contra ela (Mt 16,18).

Clique aqui: Estudos Católicos Monárquicos: VERITAS IPSA:

terça-feira, 29 de novembro de 2011

A fé de código de barras

Sentir com a Igreja: A fé de código de barras: Pense nos códigos de barras hoje usados nos produtos da maioria das lojas. O scanner lê somente o código de barras. Pouco importa o que há...

João Paulo II celebrando a Eucaristia

Para quem não viu ou para quem não se lembra, o Bem-Aventurado João Paulo II oferecendo o Santo Sacrifício... Solenidade de São Pedro e São Paulo, 29 de junho de 1982.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

O Calvário da Romênia




Repassando este texto importantíssimo sobre a Igreja perseguida pelo Comunismo, que deve nos fazer pensar. Repasso como o encontro no site Doce Cristo (http://www.docecristo.com/2011/09/o-calvario-da-romenia.html).


Queridos irmãos em Cristo, estou postando um artigo de muita importancia, referindo-se a perseguição sofrida pela Igreja Católica pelos comunistas, uma parte da história não divulgada pela mídia, não contada nas escolas e universidades, e omissa pela maioria dos Padres que deveriam divulgar, para que os fiéis católicos saibam o que ocorreu e ainda ocorre pelo mundo vitimando milhóes de cristãos, católicos, ortodoxos e protestantes por todo o mundo. Nós católicos nunca ficamos sabendo sobre as perseguições que sofremos, como salientou o professor Alexandre del Valle, professor de Relações Internacionais na Universidade de Metz, França, e consultor de Geopolítica em diversas importantes instituições europeias, “as notícias divulgadas pela mídia são apenas a ponta do iceberg da perseguição que os cristão sofrem”. Por esse motivo, cabe a nós divulgarmos todas as atrocidades cometidas contra nós que professamos a fé em Jesus Cristo.



O Calvário da Romênia

O Cristianismo chegou primeiramente na Romênia em 106 a.C., quando os exércitos do imperador romano Trajano conquistaram a região conhecida como Dacia, levando com eles a nova fé.
Embora a Romênia, situada na Europa oriental, sofresse naturalmente influência eslávica há muitos séculos — principalmente pelas invasões búlgaras nos séculos seis e sete — ela conservou uma profunda conexão com a civilização latina. E mesmo hoje, quase dois mil anos após a conquista romana, o Romeno é classificado por lingüistas como uma língua basicamente latina. No decurso da longa história do Cristianismo romeno, a população dividia-se entre os Ortodoxos, de longe a maior denominação, abrangendo cerca de 87 por cento da população, os Católicos somando 6 por cento, e os Protestantes com 5 por cento. Embora as cifras do censo não sejam inteiramente confiáveis, isso significa que, em termos concretos, havia cerca de 1.560.000 católicos na Romênia antes do advento do Comunismo em 1948. (Em contraste, o Partido Comunista na Romênia não possuía mais do que mil membros quando o regime Marxista foi imposto à Nação através de tramas internas e pressão soviética.) Porém, após cinqüenta anos de uma das piores perseguições do século, ainda existiam mais de meio milhão de católicos na Romênia1.
Os católicos romenos dividiam-se principalmente em dois grandes grupos. A Igreja Católica Romana de rito latino situava-se primeiramente em Timisoara (uma grande cidade de uma região cujos católicos eram predominantemente de ascendência alemã) e na Transilvânia (uma área de concentrações relativamente grandes de católicos húngaros). Essa Igreja Latina, embora fortemente pressionada, provou-se surpreendentemente resistente às perseguições do comunismo romeno, devido talvez à sua particular composição étnica. Infelizmente isso não ocorreu com a Igreja Católica Grega romena. Conforme ocorrido na Ucrânia liderada pelos soviéticos, as autoridades comunistas romenas organizaram um conselho ilegítimo de padres dessa igreja, o qual nenhum bispo católico romeno, mesmo sob tortura e outras pressões, concordou em participar. O conselho foi forçado a declarar que era desejo dos fiéis tornarem-se ortodoxos, embora a Ortodoxia romena estivesse disponível como opção para qualquer um que desejasse se converter há muitos séculos. Em outubro de 1948, a Igreja Católica Grega foi liquidada, suas milhares de igrejas confiscadas e convertidas para o uso ortodoxo. A data foi escolhida para entrar em atrito, visto ser o 250º. Aniversário da Declaração de Unificação da Igreja com o Vaticano em 1698. A justificativa pelo ato foi propaganda pura: a de que os bispos católicos gregos “haviam se distanciado das pessoas para servir a interesses imperialistas, obedecendo ao Papa de Roma” 2. Havia seis bispos católicos gregos na Romênia nessa época. Todos foram presos no fim de 1948. Cinco morreram na prisão (Ion Suciu, Valeriu Traian Frentiu, Alexandru Rusu, Vasile Aftenie e Ion Balan). O único sobrevivente, o bispo de Cluj-Gherla, Iuliu Hossu, ficou os próximos vinte dois anos na prisão e em prisão domiciliar antes de sua morte, ainda sob detenção3.
Os secretários de dois bispos também foram aprisionados: os padres Alexander Rusu e Foisor. Mas a limpeza foi ainda maior: forças de segurança apreenderam o Vigário Geral de Blaj Victor Macavei, cônegos Victor e Nicholae Pop, Ion Moldovan, Dumitru Neda e Ion Folea, juntamente com os professores de Teologia Septimius Todoran e Eugen Popa. A Côrte de Bucareste inteira foi presa: os padres Liviu Chinezu, Ion Chertes e Mare Vasile, e muitos outros. Em todos os lugares os detidos eram claramente escolhidos para enfraquecer a liderança católica: na cidade de Cluj, o padre Joseph Bal e o cônego Dumitru Manu; em Oradea, o cônego Juliu Hirtea; e em Lugoj, o padre Vasile Teglasiu4. Ion Ploscaru, consagrado bispo em 1948, foi também aprisionado no ano seguinte.
No início, todos os bispos eram mantidos em Dragoslavele, a residência de verão do patriarcado ortodoxo. O patriarca Justinian visitava-os freqüentemente, insistindo para que se tornassem ortodoxos. O Governo criara propaganda informando que os bispos estariam fora devido a um “retiro espiritual” 5. O regime necessitava que pelo menos um bispo cometesse apostasia para alegar a unificação da Igreja Católica com a Ortodoxa como lícita. Nenhum bispo os favoreceu. Quando falhou a persuasão por meios não violentos, os bispos foram então separados e mandados para diferentes localidades. Em 10 de maio de 1950, Vasile Aftenie, após sofrer terríveis torturas na prisão de Vacaresti, enlouqueceu e morreu, embora fosse ainda relativamente jovem e gozasse de boa saúde6. Os destinos dos outros bispos logo seguiram passos similares. Seiscentos membros do clero foram presos, cerca de um terço deles na União Soviética; apenas a metade sobreviveu7. O papa Pio XII reagiu à esse massacre com um tocante manifesto, na carta apostólica Veritatem Facientes, de 27 de março de 1952: “Desejamos beijar as correntes daqueles que, aprisionados injustamente, choram e se afligem pelos ataques contra a Religião, a ruína das instituições sagradas, pela salvação eterna de seu povo, agora correndo perigo, mais do que pelos seus próprios sofrimentos e liberdade perdida”.
Infelizmente, mais ou menos um quarto do clero católico grego romeno desistiu e se tornou formalmente ortodoxo durante a perseguição, temendo as repercussões para si mesmos e suas famílias. Como, antes do início do regime comunista, houvesse diversas oportunidades para que esses homens se tornassem parte da majoritária Igreja Ortodoxa Romena caso o desejassem, não há razão para acreditarmos que nenhuma dessas conversões “voluntárias” fosse sincera. (Muitos se retrataram mais tarde8). Os meios necessários para convencê-los são a prova: um padre foi atirado num esgoto cheio de ratos por dois dias. Acabou cedendo. Outro foi lançado num pântano, com resultados similares. Na cidade de Oradea, o padre Damian foi submetido à tortura por fogo e eletricidade até que cedesse. Em Sibiu, padre Onofreiu sobreviveu miraculosamente após ser pendurado, quando a corda arrebentou. Ele ainda se recusava a aceitar a Ortodoxia, e foi então declarado como louco e liberado — temporariamente. É fácil compreender porque um quarto do clero, sujeitado a tratamento desse quilate em tantos lugares diferentes, não foi forte o suficiente para opor-se a tudo isso.
O povo católico grego, porém, não se sujeitou facilmente a essa mudança forçada. O bispo de Oradea, Ion Suciu, antes de sua prisão, apelou ao seu povo por apoio financeiro após a suspensão do pagamento dos professores católicos pelo Governo. Os paroquianos responderam fervorosamente: o bispo recebeu mais do que o necessário para manter as escolas funcionando9. Enquanto os ataques anti-católicos se fortaleciam, o mesmo se dava com a defesa dos leigos. Quando agentes da polícia secreta romena, a Securitate, pretendiam prender o monastério inteiro em Bixad, a população local forçou o destacamento a abortar a missão. Entretanto, poucos dias depois, quinze caminhões cheios de agentes retornaram e levaram os monges remanescentes enquanto cercavam as pessoas com suas armas. Os monges apanharam e eram obrigados a renunciar ao Papa. Eles se recusaram. Um membro do grupo Securitate gritou: “Esses monges idiotas se importam mais com o papa do que com Deus e a Igreja. Vamos ver se depois de calarmos suas bocas o Papa virá salvá-los” 10. Padres, monges e freiras ortodoxos foram instalados à força nesse e em outros monastérios, conventos e igrejas. Onde houvesse resistência, eram presos e mandados à cadeia. Mas o povo freqüentemente boicotava o novo regime religioso.
As catedrais de Blaj, Oradea, Cluj e Lugoj foram “reconsagradas” como ortodoxas por bispos ortodoxos colaboradores. Em Lugoj, os fiéis tiveram de ser expulsos. Um deles, observando que a polícia estava lacrando as portas, gritou: “Lacrem quantas quiserem, senhores; os judeus também lacraram a tumba de Cristo, mas ele ressuscitou no terceiro dia” 11. Desnecessário dizer que a doutrina ortodoxa não permite conversão forçada ou o confisco de igrejas de seita diferenciada. Setenta e seis corajosos padres ortodoxos recusaram-se a se responsabilizar por igrejas confiscadas e participar desse abuso de poder político e religioso. Foram, então, encarcerados12. E pelo menos um bispo ortodoxo que se recusou a colaborar com os outros, Nicolas Popovici, foi preso e morreu — talvez por envenenamento — em 195813. Mas no geral a liderança ortodoxa foi responsável por grande injustiça contra os católicos.
Entretanto, os próprios ortodoxos também sofreram. Os antigos metropolitanos ortodoxos, Mihalcescu e Criveanu, não sendo simpáticos ao Comunismo, foram trocados pelo Governo por “abades do povo”. Para atingir esse objetivo, os abades e o regime difamaram os antigos líderes e pressionaram as instituições religiosas a removê-los de seus cargos. O próprio Mihalcescu teve provavelmente uma morte digna de um mártir. Após sua substituição e exílio em um monastério, onde gozava somente de liberdade limitada, é provável que tenha sido envenenado14.
Ironicamente, algumas das personalidades católicas marcadas pelo sofrimento foram generosas com os ortodoxos quando a situação se reverteu. De 1940 a 1944, a Hungria ocupou parte da Romênia, e o bispo Iuliu Hossu defendeu os direitos dos judeus15 e também dos ortodoxos, particularmente o bispo de Cluj, Nicolae Colan. Porém, quando o regime comunista ganhou poder, o mesmo bispo Colan confiscou e reconsagrou a catedral do bispo que havia sido seu benfeitor16. Compreensivelmente, eventos como esse e outros supracitados criaram um profundo racha entre ortodoxos e católicos durante todo os anos de governo comunista e nos anos pós-comunismo.
Em Paris, o superior de mosteiro Stefan Lucaciu escreveu ao Papa pedindo que rezasse para que fosse dada graça abundante aos católicos perseguidos. Em outra carta, ele lamentou o tratamento dado aos católicos gregos e romanos na Romênia, advertindo: “O oportunismo religioso que o regime comunista exibe hoje, amanhã se voltará furiosamente contra a Igreja Ortodoxa, pretendendo-se transformar lentamente numa plataforma política para alcançar objetivos políticos” 17. De fato, o governo romeno logo estaria perseguindo todos os grupos religiosos: Judeus, Ortodoxos, Católicos e Protestantes. Um dos mais emocionantes e aclamados relatos da perseguição nesse período é do pastor protestante Richard Wurmbrand, em seu Torturado por Cristo18. O rabino chefe da Romênia, Alexandru Safran foi sumariamente deposto e exilado. A campanha anti-católica, em razão da colocação religiosa e social especial dos católicos na Romênia, foi particularmente virulenta.
Ainda assim a cruel campanha não foi completamente bem sucedida. Em 1949, o ministro de cultos Stoian Stanciu, reclamou num discurso público dos sentimentos pró-catolicismo de alguns intelectuais19. “Pró-catolicismo” aqui pode significar tanto um apoio real à Igreja quanto uma simpatia generalizada pelos cristãos injustiçados. Em ambos os casos, porém, havia claramente uma séria oposição secular à política religiosa. Havia um precedente histórico para as inclinações pró-católicas entre os intelectuais romenos. I. C. Bratianu, figura de liderança político democrata no século dezenove, converteu-se ao Catolicismo em seu leito de morte. E Iuliu Maniu, líder do Partido Camponês Nacional, o mais importante político anti-fascista e democrata da nação, era um devotado católico grego (morreu nos anos 50 numa prisão comunista). Dentre a liderança ortodoxa, entretanto, a pressão governamental e a longa crença de que o catolicismo grego era ilegítimo na Romênia acabaram causando atos vergonhosos. O ilustre catedrático de religião Mircea Eliade externou a simpatia dos romenos pelos irmãos e irmãs católicos da época e lamentou que “não soubesse de um único bispo ortodoxo que tenha declarado publicamente seu desagravo à violência” 20.
O patriarca romeno Justinian teve um papel particularmente ruim nesse processo. Após a queda do Comunismo, seu nome foi lembrado com muita afeição pelos ortodoxos romenos pelos seus enérgicos esforços em favor da Igreja Ortodoxa21. Eliade, porém, pontificou que o patriarca brincava com fogo: “Hoje, em todo o mundo, o Cristianismo está sendo inteiramente atacado sem piedade, é atacado por aqueles que tempos atrás o condenaram à morte, e essas mesmas pessoas são as mesmas que acolheram Justinian... Hoje ou amanhã os bispos ortodoxos poderão estar junto aos seus irmãos na prisão e no exílio. Eles também serão mártires, mas após terem sido expostos e degradados sob os olhos dos fiéis”. Reconhecendo que ninguém tem o direito de exigir que outro se torne um mártir, Eliade apelou aos bispos que aceitassem que, sem o desejo de se tornar mártir pela verdade, os assessores do bispo tornam-se apenas madeira e metal.
Quaisquer que fossem as racionalizações históricas dos líderes ortodoxos contra a legitimidade da Igreja Católica Grega romena, elas não poderiam ser usadas também contra a Igreja católica Romana de rito latino. As igrejas romanas estavam, em sua maioria, localizadas na Transilvânia e na Moldavia e eram ligadas por etnias minoritárias historicamente conectadas à Roma desde os séculos XII e XIII. Essas igrejas estavam florescendo, e contavam com cerca de 1.200.000 adeptos antes do advento do Comunismo. Ainda assim, seus direitos plenos não poderiam ser reconhecidos sem o risco de reivindicações do reconhecimento do Estado das igrejas católicas gregas também. O reconhecimento de qualquer uma dessas igrejas nunca foi uma real possibilidade. Gheorghiu-Dej, Secretário do Partido Comunista, anunciou peremptoriamente em fevereiro de 1948 que o único obstáculo à “democracia” na Romênia era a Igreja Católica22. E continuou: “A nova Constituição romena não permitirá que os cidadãos católicos submetam-se às diretrizes de um mandante estrangeiro; não será permitido aos romenos serem tentados pelo filhote de ouro americano, em cujos pés o Vaticano deseja levar seus fiéis.” 23.
Quando as igrejas católicas romanas insistiram no reconhecimento oficial, o Regime Comunista romeno adotou a dupla estratégia de tentar silenciá-los com uma mão enquanto, com a outra, encorajava uma Igreja Católica Romana dividida e subserviente ao Estado — tudo isso sob a cobertura legal de impedimento dos “agentes do imperialismo” e proteção da “segurança do Estado”. Dois bispos foram acusados em nome de atitudes anti-democráticas: Aron Marton de Alba Julia na Transilvânia e Anton Durcovici de Jassy na Moldavia. Atos secretos começaram a ser usados para extirpar o clero recalcitrante. Em junho de 1949, Anton Bisoc, o Superior franciscano, recebeu um telegrama, provavelmente do bispo Durcovici, pedindo que fosse vê-lo imediatamente. Bisoc partiu e nunca mais foi visto novamente. Seu assistente, padre Herciu, foi procurá-lo. Ele também desapareceu sem deixar vestígios24. A mensagem era clara: a insistência da Igreja Romana seria tratada da mesma forma que com os católicos gregos.
Os bispos Marton e Durcovici logo foram presos. As outras quatro dioceses, sem os seus bispos, já haviam sido impedidas sob um caráter técnico legal: o Governo exigia que uma diocese tivesse pelo menos 750.000 fiéis para ser reconhecida — o que não seria problema para os ortodoxos, mas um impedimento virtual para quase todos os centros católicos. Durcovici foi tão maltratado na prisão que, ao ser atirado nu na cela, estava irreconhecível. Logo depois desapareceu e nunca mais ouviu-se falar dele. Padre Rafael Friedrich, um outro prisioneiro que passava por sua cela, ouviu seus gemidos. Dizendo “Laudetur Jesus Christus” [“Louvado seja Jesus Cristo”] para que o bispo soubesse que era católico, o padre ouviu a resposta: “Hic Antonius moribundus” [“Antônio está morrendo aqui”]. Por volta de 1949 não havia mais bispos católicos romanos na ativa na Romênia. Quase todas as igrejas estavam fechadas. Os católicos romanos eram marcados em suas carteiras de identidade. Na diocese de Jassy, 106 paróquias foram ocupadas por milícias. Durante uma das ocupações em Faraoani, os militares e o povo entraram em guerra. Foram ouvidos tiros. Uma pessoa caiu morta e quatro foram seriamente feridas nos degraus da igreja25. Cenas semelhantes ocorreram em vários lugares.
Em 1950, todas as nações comunistas estavam usando suas igrejas como apoio ao movimento anti-nuclear centralizado no Apelo de Estocolmo. Em termos restritos, qualquer cristão poderia apoiar uma oposição à guerra nuclear. Mas na verdade o apelo transformou-se numa arma ideológica contra o Ocidente e um apoio internacional para a União Soviética. A Igreja Católica Romana da Romênia teve especial importância nessa campanha promocional. Se seus líderes apoiassem o Governo, poder-se-ia argumentar plausivelmente que repudiavam o Vaticano e a política supostamente pró-Ocidente da Santa Sé.
O Governo romeno levou cerca de cem padres, leigos e líderes de paróquias de rito latino para um congresso em Targu-Mures para induzi-los a assinar uma petição e aceitar a posição que desejava que ocupassem dentro da sociedade do país. Eles se recusaram, porém acabaram cedendo após extremas ameaças. Foram ordenados então a conseguirem aprovação dos vigários que haviam substituído os bispos na posição de líderes de diversas dioceses — o que não conseguiram realizar. Mas no estado de fraqueza no qual se encontrava a Igreja, o Governo tentou outra trama, preparando um Estatuto da Igreja, na verdade uma espécie de concordata, que parecia dar à Igreja Católica Romana tudo que desejava: o Papa como líder moral e dogmático supremo, os bispos como soberanos em suas dioceses, assim como concessões em outros pontos contestados. O último artigo do estatuto, porém, estipulava que o exercício desses direitos seria dado apenas com a aprovação do Governo, o que efetivamente anulava tudo que havia antes. Mais além, o contato com a Santa Sé somente poderia realizar-se através dos Ministros do Culto e de Assuntos Exteriores. Ficava claro, até mesmo para os líderes católicos restantes, que era impossível assinar tal documento. Em maio de 1950 o Governo realizou sua última cartada. O vigário geral de Alba Iuliua, Louis Boga, foi preso, e Marcu Glasser, vigário de Jassy, preso, torturado e morto em 25 de maio26.
Os comunistas romenos também aboliram qualquer contato com o Vaticano. (Até mesmo nos anos 60, aos bispos católicos romenos não era permitida a presença no Segundo Concílio do Vaticano, e padres ainda eram presos27). O Governo começou a cisão com o Vaticano ao expulsar o Embaixador Papal, Monsenhor Gerald O’Hara, americano de nascimento, marcado como espião da CIA e agente do Imperialismo americano. Sob ordens de Pio XII, O’Hara consagrou em segredo diversos bispos e administradores apostólicos. Esses homens — Ion Ploscaru, Ion Dragomir, Ion Chertes, Iuliu Hirtea e Alexandru Todea (mais tarde feito Cardeal) enfrentaram tremendas dificuldades; quase todos sobreviveram às perseguições, mostrando que a estratégia de Pio XII havia tido sucesso. Eles providenciaram uma certa continuidade à Igreja no momento de sua reerguida após a queda do Comunismo em 1989. Mais além, antes da expulsão de O’Hara, bispos católicos de rito grego e latino editaram uma declaração conjunta ao Governo protestando que “três milhões de cidadãos estão sendo tratados como inimigos do povo”. Duas centenas de padres foram presos por conta disso. Muito embora o governo tramasse lentamente contra os católicos de rito latino por medo de provocar uma reação por parte das Nações — Hungria, Alemanha, Croácia, Eslováquia e Bulgária — de cujos lugares provinham essas minorias étnicas católicas, ele se movia firmemente buscando a eliminação do Catolicismo. Todos os leais padres católicos listados na Embaixada acabaram na prisão28.
Podemos ter uma vaga idéia do notadamente terrível tratamento que os prisioneiros católicos receberam na Romênia através dos relatos dos que sobreviveram para contar suas próprias histórias e as dos outros internos. Um dos mais proeminentes dentre estes, padre Tertullian, antigo vigário-geral da diocese de Cluj, foi preso durante as primeiras ondas de repressão em 1947. Seu crime, de acordo com o juiz que deu-lhe a sentença: “Não há evidências contra você, mas desde o momento que está preso, deve ser culpado. Culpado por ter sido preso” 29. Com essa compreensão de Justiça por parte do Regime, não é surpresa para nós que tenha sido solto somente dezessete anos depois, após acumular diversas experiências na prisão.
Como muitos que sobreviveram às injustiças, padre Langa retomou a liberdade acreditando que “fui preso como parte de um plano para realizar a santificação de minha vida”. Ele confortou e acabou por converter muitos prisioneiros, aprendendo algo sobre os sofrimentos necessários à vida cristã: “A prisão para mim foi como um seminário nunca freqüentado antes”. E os dezessete anos foram “os mais belos e produtivos de minha existência” 30. É claro que somente um homem especial poderia dizer essas palavras, e os fatos terríveis que testemunhou para tirar essas conclusões fazem sua declaração ainda mais notável.
Uma das punições mais brutais era a que os presos chamavam de “maratona”. Ela consistia em fazê-los correr ou marchar enquanto um cachorro, treinado especialmente para saltar neles se parassem de se mover, seguia-os passo a passo. A ordem durava tanto que, às vezes, padre Langa começava a ter alucinações. Num episódio, “eu parecia estar andando sobre diamantes, mas na verdade as solas de meus pés tinham ficado completamente inchadas. Então comecei a ver, como se olhando através das paredes da cela, um belo jardim, um pomar cheio de maçãs...Então caí, inconsciente, batendo a cabeça na parede”. Naturalmente o cachorro o atacou e a dor o trouxe de volta. Começou então a correr novamente sem saber o que fazia. “Mais tarde, o guarda contou-me que continuei correndo por 59 horas sem parar. Parece inacreditável, mas por que o guarda iria mentir?” 31
Em outro exercício sádico, os presos descobriram que as autoridades haviam ordenados que fossem mortos por exposição ao frio. A única forma de se defenderem contra o congelamento mortal era caminharem fortemente sem parar. O preso da cela ao lado de Langa parou num dia. Ele levantou-o e fez com que se movesse novamente. O homem ressentiu ter sido acordado de um sonho belo: “Eu rezei ajoelhado para que Deus trouxesse a lua em minha cela e Ele ouviu minhas preces. Ele mandou-me a lua e estava me preparando para comê-la quando você me acordou”. Na manhã seguinte o corpo do homem foi levado embora. Seus colegas acreditaram que talvez seu sonho tivesse sido uma espécie de consolo, um símbolo Eucarístico, antes que ele deixasse este mundo32.
Vários outros também sucumbiram. Padre Langa atribui parcialmente sua sobrevivência aos “mestres espirituais” que teve a sorte de encontrar quando jovem, incluindo padre Iosif Pop, Ion Miclea (um filósofo amigo de Jacques Maritain) e Monsenhor Vladimir Ghika, todos que acabaram se tornando mártires ou confessores. Langa também fornece informações sobre alguns dos líderes religiosos que desapareceram cedo com as perseguições. Vasile Aftenie, o vigário geral de Bucareste, foi o primeiro bispo mártir na Romênia. Como sempre, as autoridades comunistas tentaram cooptá-lo, oferecendo imediatamente a ele a Sé Episcopal Ortodoxa da Moldavia, com a promessa de fazê-lo mais tarde um patriarca ortodoxo em Bucareste, se ele rompesse com Roma. Aftenie recusou-se, dizendo: “Minha Nação e tampouco minha fé estão à venda”. O resultado foi predestinado: “Ele foi subseqüentemente torturado até a morte. Seu corpo foi desfigurado, e os braços deslocados não se conectavam mais ao tronco” 33.
Igualmente corajoso foi o bispo Ion Suciu, um jovem cheio de energia que, antes de sua prisão, proclamara publicamente num discurso na Catedral de rito latino de São José em Bucareste: “Devemos ter a coragem e a dignidade de sermos cristãos mesmo nesse período de Comunismo e ateísmo”. Quando o procurador soviético Vychinski ouviu seu pronunciamento, disse: “Essa boca deve ser calada” — o que logo foi feito pelas autoridades romenas. Um outro bispo, Liviu Chinezu, consagrado secretamente, morreu em 195534 na prisão Sighet, uma instituição notoriamente terrível que era o lugar preferido para a detenção de líderes romenos religiosos e políticos. O diretor da prisão, Vasile Ciolpan, aparentemente desejou fingir que o bispo morrera de causas naturais. Ele ordenara que a janela de sua cela permanecesse aberta, apesar do tempo gelado do meio de janeiro. Chinezu então congelou até a morte35. Num período de cinco anos, sabe-se que pelo menos 52 presos de Sighet morreram, e provavelmente muitos desconhecidos morreram também36.
Essas primeiras mortes foram o prenúncio de maiores atrocidades. No início dos anos 50, aproximadamente 180.000 foram mandados aos campos de concentração, freqüentemente os mesmos campos usados pelos nazistas37. Os comunistas romenos foram os pioneiros no uso de técnicas de lavagem cerebral na Europa Oriental, muitas vezes dando a elas uma aparência satânica. O prisioneiro era forçado a denunciar todos aqueles que mais amava: “amigos e família, sua esposa ou namorada, e seu Deus se fosse um fiel” 38. O carcereiro romeno Eugen Turcanu criou um tratamento especial para seminaristas: “Alguns tiveram suas cabeças repetidamente enfiadas num balde com urina e fezes enquanto os guardas entoavam uma paródia do rito batismal. Uma vítima que havia sido sistematicamente torturada dessa maneira desenvolveu uma resposta automática que perdurou por dois meses: todas as manhãs, para grande deleite de seus re-educadores, ele mesmo enfiava sua cabeça no balde” 39.
Até mesmo uma degradação da religião como essa não foi suficiente:
Turcanu também obrigou os seminaristas a tomarem parte em missas negras regidas por ele mesmo, especialmente durante a Semana Santa ou na Sexta Feira da paixão. Alguns re-educadores participavam como coro; outros vestiam-se como padres. A liturgia de Tuscanu era extremamente pornográfica, e ele repaginava a original de maneira demoníaca.
[...]
Turcanu eventualmente foi preso e executado por “crimes contra a Humanidade, que desacreditaram o regime comunista aos olhos das pessoas e da opinião mundial” 40. De fato, ele estava cumprindo ordens de cima, provavelmente do General Nikolski, para conduzir a experiência de lavagem cerebral. Mil jovens, todos crentes, foram colocados em roda e sujeitados ao sistema “Pitesti”. De acordo com um relato: “Eram torturados de tal maneira que todos – absolutamente todos – tornaram-se delatores, porque foram privados de sua natureza humana, tornando-se meros robôs nas mãos dos oficiais políticos. Foram despersonalizados” 41. Na forma talvez mais brutal de técnicas de controle da mente do século, os meninos foram torturados, física e moralmente, até abandonarem suas antigas crenças. E, ainda pior, uma vez que estivessem dentro do processo, eram obrigados a exercer a mesma lavagem cerebral em outro grupo de estudantes, temendo todo o tempo que o mínimo esgar de fraqueza iria colocá-los novamente dentre os torturados. É fácil imaginar as dores de consciência produzidas por essa tática.
A lavagem cerebral seguia os passos do método Pavloviano. Primeiramente pedia-se aos alunos que abjurassem suas antigas crenças ou seriam torturados. Quando se recusavam, o que a maioria inicialmente fazia, apanhavam, eram obrigados a limpar o chão com um farrapo entre os dentes, e tinham de comer feito animais em tigelas nas quais também defecavam. À noite, um aluno já “re-educado” sentava-se na cabeceira da cama de outro ainda em processo. No momento que o novo aluno adormecia, o outro batia em seus pés com um tubo de borracha. A dor funcionava para condicionar o jovem a ter uma reação inconsciente negativa a tudo que anteriormente era tido como bom42.
Após esses reflexos terem sido estabelecidos, a lavagem cerebral atacava as crenças religiosas. Cometiam-se sacrilégios como os descritos acima. Os sujeitos eram forçados a realizar crimes monstruosos e desvios sexuais tão freqüentes que, confusos pelas pancadas e a falta de sono, começavam a acreditar nos opressores e perder o contato com a verdade. Nesse ponto, eram induzidos a uma nova lealdade ao regime comunista, aos seus próprios torturadores. Eles mesmos tornavam-se torturadores, tendo de demonstrar sua sinceridade sob a constante ameaça de retorno à tortura: “O grande obstáculo... era o medo apavorante, debaixo de cada poro da vítima, de que um dia o terror pudesse recomeçar” 43. Temos a impressão que a experiência somente era interrompida para dar a eles um intervalo para computarem sua efetividade. Um dos jovens que sobreviveram para contar, Roman Braga, eventualmente tornou-se padre ortodoxo. Ele descreve a experiência de forma rigorosa: “Acredito que não haveria outra mente além de Lúcifer capaz de imaginar o sistema Pitesti, que mantém homens perdidos entre ser ou não ser, no limite entre a loucura e a realidade, torturados pela idéia de que possam desaparecer — não como entidade física, mas como um ser espiritual” 44. Embora as torturas fossem calculadas cuidadosamente para não matar os jovens, cerca de quinze deles morreram durante sua re-educação45.
Dentre tanto sofrimento e blasfêmia nas prisões, notavelmente podemos notar também pontos de grande luz. Um deles referia-se à grande figura de Monsenhor Vladimir Ghika, cujo processo de beatificação está em andamento. Ghika era neto do último Príncipe da Moldavia e também obtivera o título de mártir. Sua dedicação à causa católica era inabalável. Ele havia se convertido ao catolicismo anteriormente porque acreditava que ser católico era ser “ainda mais ortodoxo”46. Um homem de imensa cultura e inteligência e de muitos contatos internacionais, ele escolhera permanecer na Romênia após a Segunda Guerra Mundial, mesmo sabendo dos riscos dessa decisão para alguém com seu passado familiar e religioso. Muitas pessoas nos anos 90 ainda atestavam o fato, na Romênia, de que “deviam tudo a ele”, incluindo a resistência ao Comunismo, suas vocações, e sua própria fé47. Nas prisões, ele fora responsável pelo retorno à crença de muitos fiéis, e também por descrentes que desenvolveram ardentes vocações. Tragicamente terminou sua vida durante esse trabalho, ainda preso48.
Outro heróico líder religioso foi Aron Marton, bispo de Alba Iulia. Conforme já havíamos visto, foi logo preso e ficou de 1949 a 1955 na prisão. Foi gravemente ferido num “acidente de automóvel” criado por agentes do Governo, porém também sobreviveu. Os protestos de seu povo conseguiram soltá-lo e deixá-lo sob carceragem domiciliar. Sua coragem e seu ativismo, porém, a despeito de todas as ameaças, faziam dele uma figura muito adorada. Marton assistia ao culto da igreja grega tanto quanto podia, o que era incomum para um bispo de rito latino. Por décadas, antes de sua morte em 1980, ele precisou fazer seu caminho cuidadosamente por entre restrições impostas pelo Governo, censura, a presença de prováveis padres-espiões, e inúmeras outras dificuldades.
Padre Alexandru Ratiu, um sobrevivente de dezesseis anos no sistema prisional romeno (de 1948 até a anistia geral aos prisioneiros políticos ocorrida em 1964, quando Nicolae Ceaucescu tomou a liderança do país), comenta que a prisão teve efeito inesperado em padres e outros crentes, assim como em antigos ateus: “Na prisão, ou a pessoa enlouquece ou se torna um santo” 49. Para muitos que sofreram encarcerados, com freqüência este era o primeiro momento em suas vidas que eram obrigados a confiar somente na oração e no apoio de Deus: “Nunca fomos tão felizes. Nunca sentimos tão intimamente a presença de Deus; e nunca rezamos tão seriamente, confidencialmente e com tanto sucesso quanto dentro dos alojamentos da prisão” 50. Após os relatos angustiados das torturas, mortes e do sádico tratamento experimentado por todos os presos, essas palavras não devem ser ditas com leveza. Este foi, claro, um caminho terrível em direção à piedade e à virtude. Mas tantas pessoas de países diferentes, mesmo sob regimes divergentes como o Nazismo e o Comunismo, deram relatos similares, que podemos acreditar que talvez essas experiências tenham mesmo um efeito estimulante à espiritualidade, agora que em várias partes do mundo está novamente assegurada a liberdade religiosa.
[...]
A história da perseguição e do martírio romeno não encontra similares no século vinte ou em nenhum outro. Como foi escrito no Osservatore Romano em 1948, quando as perseguições ainda iniciavam: “Nenhum caso similar de violência moral, de perseguições, de Via Crucis pela liberdade, pela personalidade e pela dignidade humana pode ser encontrado em todas as páginas da História” 51. Pelo fato de que a Igreja já existe há dois milênios, essas são palavras fortes, porém verdadeiras. Talvez esse terrível exemplo da Romênia encoraje os povos de boa vontade a tentarem se certificar de que as páginas da história futura nunca mais tolerem tamanha infâmia.
(Robert Royal, “The Catholic Martyrs of the Twentieth Century”, Crossroad Publishing Company, New York, 2000)
  1. 1. Didier Rance, Roumanie: Courage et Fidelité, L’eglise gréco-catholique unie ( Paris: Bibliothèque AED, 1994 ), 22.
  2. 2. Abbé Pierre Gherman, L’âme roumaine écartelée: Faits et documents ( Paris: Les Editions du Cèdre, 1955 ), 135.
  3. 3. R.G.Roberson, “The Church in Romania”, New Catholic Encyclopedia, supplemental vol. 14, 335.
  4. 4. Gherman, L’âme roumaine écartelée, 135-36.
  5. 5. Alexander Ratiu e William Virtue, Stolen Church: Martyrdom in Communist Romania, ( Huntington, Ind.: Our Sunday Visitor Press, 1979 ), 27.
  6. 6. Gherman, L’âme roumaine écartelée, 136.
  7. 7. Alexander F. C. Webster, The Price of Prophecy: Orthodox Churches on Peace, Freedom, and Security ( Washington, D.C.: Ethics and Public Policy Center, 1993 ), 119.
  8. 8. Ion Ploscaru lista esses que se retrataram posteriormente em Lanturi si teroare (Timisoara: Signata, 1993).
  9. 9. Rance, Roumanie, 39.
  10. 10. Gherman, L’âme roumaine écartelée, 136.
  11. 11. Ibid.,142.
  12. 12. Webster, the Price of Prophecy, 119.
  13. 13. Ratiu e Virtue, Stolen Church, 17.
  14. 14. Ibid., 119.
  15. 15. S. A. Prundus, O.S.B.M., e C. Plaianu, Cardinalu Iuliu Hossu (Cluj: Unitas, 1995), 131-32.
  16. 16. Ratiu e Virtue, Stolen Church, 17.
  17. 17. Citado em sua carta de 12 de outubro de 1948 ao Cardeal Tisserant na Alemanha, L’âme roumaine écartelée, 148.
  18. 18. Richard Wurmbrand, Tortured for Christ: Today’s Martyr Church (London: Hodder & Staughton, 1967).
  19. 19. Gherman, L’âme roumaine écartelée, 147.
  20. 20. Ibid., 153.
  21. 21. Webster, The Price of Prophecy, 91.
  22. 22. Janice Broun, “The Latin-Rite Roman Catholic Church in Romania”, Religion in Communist Lands 12, no. 2 ( Summer 1984 ): 168.
  23. 23. Ratiu e Virtue, Stolen Church, 126.
  24. 24. Gherman, L’âme roumaine écartelée, 162.
  25. 25. Ibid., 163.
  26. 26. Ibid., 172.
  27. 27. Broun, “The Latin-Rite Roman Catholic Church in Romania”, 1970.
  28. 28. Ibid., 169.
  29. 29. Rance, Roumanie, 167.
  30. 30. Ibid., 167-68.
  31. 31. Ibid., 170.
  32. 32. Ibid., 172.
  33. 33. Ibid., 166.
  34. 34. Ibid.
  35. 35. Ratiu e Virtue, Stolen Church, 158.
  36. 36. Stéphane Cortois, Nicolas Werth, Jean-Louis Panné, Andrzej Paczkowski, Karel Bartosek e Jean-Louis Margolin, The Black Book of Communism: Crimes, Terror, Repression, trans. Jonathan Murphy e Mark Kramer ( Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1999 ), 400.
  37. 37. Ibid., 419.
  38. 38. Ibid., 420.
  39. 39. Ibid., 421.
  40. 40. Ratiu e Virtue, Stolen Church, 111.
  41. 41. Extraído do relato de D. Bacu, The Anti-Humans, em Ratiu e Virtue, Stolen Church, 92.
  42. 42. Ratiu e Virtue, Stolen Church, 100-101.
  43. 43. De Bacu, citado em ibid., 108.
  44. 44. Ibid., 110.
  45. 45. Ibid., 98.
  46. 46. Rance, Roumanie, 186.
  47. 47. Ibid., 187.
  48. 48. Em Ghika, veja Hélène Danubia, Prince et Martyr: Monseigneur Vladimir Ghika, l’apôtre du Danube (Paris: Pierre Téqui, 1993).
  49. 49. Ratiu e Virtue, Stolen Church, 26.
  50. 50. Ibid., 73.
  51. 51. Citado em Ratiu e Virtue, Stolen Church, 175.