sexta-feira, 26 de março de 2010

O monge e o mundo

O mosteiro não é nem um museu, nem um asilo. O monge permanece no mundo que abandonou, e é, nele, uma força poderosa, embora oculta. Para além de todas as tarefas que poderão acidentalmente se ligar à vocação do monge, este age sobre o mundo pelo simples fato de ser monge. A presença dos contemplativos é para o mundo o que o fermento é para a massa, pois há vinte séculos o próprio Cristo declarou nitidamente que o Reino dos céus se assemelha ao fermento oculto em três medidas de farinha.

Mesmo sem nunca sair do mosteiro em que vive, nem pronunciar uma palavra ouvida pelos demais homens, está o monge inextricavelmente envolvido nos sofrimentos e problemas da sociedade a que pertence. Deles não lhe é possível escapar, nem ele o deseja. Não está isento de prestar serviço nas grandes lutas de seu tempo, antes como soldado de Cristo, está designado para tomar parte nessas batalhas, combatendo no front espiritual, no mistério, pelo sacrifício de si próprio e pela oração. Isso ele faz unido a Cristo crucificado, unido também a todos aqueles por quem Cristo morreu. Está consciente de que o combate não está dirigido contra a carne e o sangue, e sim “contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo de trevas, contra os espíritos malignos espalhados pelos ares” (Ef 6,12).

O mundo contemporâneo está em plena confusão. Está atingido o ápice da maior crise da história. Nunca, antes, houve tamanha reviravolta na raça humana inteira. Forças tremendas: espirituais, econômicas, sociológicas, tecnológicas e políticas estão em movimento. A humanidade se vê a beira dum abismo de nova barbárie; restam, todavia, ao mesmo tempo, possibilidades quase incríveis de soluções imprevistas, a criação de um mundo novo e de uma nova civilização, tal como jamais se viu.

Estamos enfrentando o Anticristo ou o Milênio; ninguém sabe dizer se um ou o outro.

Neste mundo em perpétua mutação, permanece o monge como baluarte de uma Igreja que não muda, contra a qual as portas do inferno não podem prevalecer. É verdade que a própria Igreja se adapta porque é ela um Corpo vivo, um organismo em constante movimento. Onde há vida, tem de haver desenvolvimento. Na ordem monástica, também deverá manifestar-se adaptação, desenvolvimento, crescimento.

Diante de Deus, diante dos homens, diante do mundo de concupiscência, seu antagonista, está o monge carregado de tremenda responsabilidade, a responsabilidade de continuar a ser aquilo que seu nome significa: um monge, um homem de Deus. Não apenas alguém que abandonou o mundo, mas alguém capaz de representar Deus neste mundo que o Filho de Deus salvou pela morte na Cruz.

O mosteiro nunca poderá ser, simplesmente, o refúgio duma arquitetura de falso estilo gótico, de cultura clássica e de piedade convencional. Se o monge nada mais é do que um burguês bem estabelecido na vida, com os preconceitos e o bem-estar de um membro da classe média e a habitual mediocridade que daí deriva, descobrirá que sua vida não foi dedicada a Deus, e sim ao “serviço da corrupção”, e desaparecerá com tudo que é efêmero.

Por outro lado, a vocação do monge proíbe-lhe descer à planície para tomar parte nas lutas que aí se travam. Só poderá considerar como tentações as opções que o mundo lhe oferece e as oportunidades de tomar posição em favor de uns ou contra outros. A vocação do monge chama-o exclusivamente ao que é transcendente. Está e deverá sempre se manter acima das facções humanas. Isso quer dizer que é susceptível de se tornar vítima de todas elas. Contudo, não deve renunciar à posição exclusivamente espiritual que lhe cabe, de maneira a proteger a própria pele ou ter um teto para si.

Todavia, nunca a vida monástica deverá ser de tal modo “espiritual” que chegue a impedir toda encarnação. Aqui também haveria infidelidade. O monge tem de permanecer real, e só o poderá ser mantendo-se em contato com a realidade. Mas, para ele, a realidade está encarnada na Criação, obra de Deus, na humanidade, suas dores, duas lutas e seus perigos. Cristo, o Verbo, se encarnou de maneira a viver, sofrer, morrer e ressuscitar em todos os homens, libertando-os, assim, do mal, pela espiritualização do mundo material. O monge, portanto, permanece neste mundo em caos, mundo de carne em que ele e sua Igreja proclamam incansavelmente a primazia do espírito, mas fazem-no dando testemunho da realidade da Encarnação do Verbo. Para o monge, como para todo cristão, “viver é o Cristo”. A comunidade monástica, já o vimos, vive da caridade e para a caridade, uma caridade que mantém a lumen Christi, a luz de Cristo ardendo na escuridão de um mundo incrédulo. O mosteiro é um tabernáculo em que o Altíssimo habita entre os homens santificando-os e unindo-os a si em seu Espírito. A comunidade monástica se dedica incansavelmente a todas as obras de misericórdia, em especial, às obras espirituais de misericórdia. Aos olhos do mundo, o mosteiro se ergue como incompreensível sacramento da misericórdia de Deus para com os homens. Incompreensível; portanto, incompreendido. Que há nisso de surpreendente? O próprio monge não consegue avaliar plenamente sua vocação; ainda menos pode ele compreendê-la. Contudo, a misericórdia de Deus está nele. Se assim não fosse, ele nada seria. Isso é algo que o monge não pode ignorar, se é verdadeiramente monge.

Se, em certo sentido, o monge se mantém acima das divisões da sociedade humana, não quer isso dizer que não lhe caiba um lugar na história das nações. Sempre teve e terá por vocação uma atitude de simpatia e compreensão para com todo movimento cultural e social que favoreça o desenvolvimento do espírito humano; por vocação, continuará a fazê-lo. Os beneditinos se celebrizaram por seu humanismo, e ninguém ignora que os monges preservaram as tradições culturais da Antiguidade. Os monges serão sempre parte integrante de qualquer sociedade que favoreça a verdadeira liberdade, pois os próprios mosteiros são centros de liberdade espiritual e transcendente. Como tal, o mosteiro representa, neste mundo, a caridade divina de que todas as liberdades e comunhões humanas nada mais são do que a sombra.

Por isso é que importa ao monge, acima de tudo, ser aquilo que seu nome significa: um solitário, alguém que, pelo desapego de tudo, se tornou “só”. Mas, na solidão e no desapego, o monge está de posse duma vocação à caridade que atinge dimensões muito maiores do que a de qualquer outra. Pois aquele que tudo abandonou tudo possui, aquele que deixou a companhia dos homens permanece com todos pela caridade de Cristo que nele vive, e aquele que renunciou a si próprio por amor a Deus é capaz de se dedicar à salvação de seus irmãos, com o poder irresistível do próprio Deus.

MERTON, Thomas. A vida silenciosa. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 159-163.

domingo, 21 de março de 2010

Igreja, minha Igreja

Igreja, minha Igreja, desde que, povo da aliança, tu foste criada por Deus em Isaac, o filho imprevisível da velhice de Abraão e Sara, tu te encontras em marcha. E é como um imenso povo a caminho, atravessando lenta e penosamente a História, que eu te vejo.

Não um pelotão de anjos, nem de heróis, mas de homens e mulheres sempre prontos a resistir, a se estabelecer, a sonhar com as cebolas do Egito, a procurar as fontes ou a se prostrar diante dos bezerros de ouro e dos baals. “Povo obstinado”, dizia-se de ti antes que Jesus viesse te agregar a imensa multidão dos gentios. “Povo obstinado”, mas ao mesmo tempo “luz das nações”, pequeno pelotão tão querido por Deus que ele se faz lírico para afirmar que “as montanhas poderão se mover e as colinas oscilar, mas meu amor não te deixará e minha aliança de paz não será abalada” e ainda que “uma mulher pudesse esquecer sua criança; eu não poderia esquecer meu povo”.

E eis que, vindo Jesus, foi firmada contigo uma nova aliança, concluída não no sangue de bois e ovelhas, mas no sangue do Cristo. E tu te tornas a Sião do fim dos tempos. Estéril, tu te tornas Alegre (Isaías), que dá à luz seu messias através das dores da cruz e lhe dá uma multidão de irmãos.

Mas, sinal elevado sobre as nações em marcha, testemunha da ressurreição, precisas te mostrar, minha Igreja. Mesmo que quisesses te esconder, te dissimular, tu não o poderias, pois os homens que te constituem têm os dois pés no chão; eles devem comer, beber, trabalhar e, antes de morrer, contemplar um pouco esta terra que Deus fez tão bela. Então, tu, que és o lugar de todos os mistérios, o sacramento de Jesus Cristo, apareces ao mesmo tempo como uma sociedade humana, falível e jurídica: permanente e frágil, santa e pecadora, uma e no entanto dividida, católica mas contestada, apostólica mas não tímida. E o mistério dos mistérios, que tanto nos custa admitir, é que esses dois aspectos são indissociáveis, que a ação de Deus é a um só tempo final e atual.

Igreja, minha Igreja, tu és um paradoxo vivo, um escândalo, pois, se tu és Jesus Cristo continuado, tu és também a Encarnação em nossa carne pecadora. Esposa, é bem verdade, mas não esposa sem mancha, mil vezes violada pelos poderosos, a cujas carícias enganosas frequentemente te abandonaste: “prostituta que Cristo re-desposa todos os dias”, como dizem os Padres. Esposa adúltera, mas que Deus “envolve com o manto da justiça”, como diz a Escritura.

E também quantas vezes nós não nos sentimos tentados a te abandonar, a te deixar lá, no caminho em que andamos, contigo, em ti, Igreja! Tentação de nos estabelecer, de nos confundir com essa terra quente pisada por nossos pés. Ou então tentação do refluxo, da volta atrás, para um ponto do caminho, um “momento” da história, que, segundo nós, tu apresentavas uma feição jovem e pura. A menos que, como o velho Joaquim di Fiori, não sejamos tentados pela miragem da Igreja de João sucedendo à Igreja de Pedro, do reino puro do Espírito sucedendo ao reino carnal de Cristo.

Ora, o Espírito, minha Igreja, nunca te faltou e não te faltará. É ele que te impele adiante, que te impede de te incrustar. Olha à tua volta: no pelotão formado pelos pecadores que bem ou mal te acompanha pelo caminho pelo caminho luminoso e também na imensa multidão que, de cada lado do caminho, ao infinito, volta para ti suas faces banhadas de sombras, vê como são numerosos os teus filhos que o Espírito conquistou. E não somente os santos dos calendários, mas também e sobretudo a multidão dos anônimos , de todas as nações e de todas as raças: os trabalhadores que gastaram seus olhos e seus pulmões no fundo das minas e nossas mães, nossas esposas, nossas irmãs, que fazem seu longo trabalho em silêncio. E estes, os pobres, que é preciso carregar porque não têm mais pé para caminhar, cabeça para pensar, braços para abraçar, coração para esperar; as velhas mulheres que recitam seus rosários sobre nossos últimos genuflexórios e os padres no trabalho, que estão sufocados por não poderem falar melhor de ti; todas essas crianças de cabeça branca que pereceram aos milhões ao longo do caminho antes de terem podido apenas pronunciar a palavra “sol” e nossas próprias crianças, nossas grandes crianças de longos cabelos selvagens, que esperam desesperadamente a palavra que as salvará.

Por te seguirmos, santa Igreja, por te crermos portadora da salvação, nós esperamos que tu sejas perfeita, bela, imaculada, conforme nossos esquemas, como se diz agora. Mas Catarina de Siena ajoelhava-se diante dos maus padres, suplicando-lhes que te salvassem. Mas quando Newman lança-se aos teus braços, no tempo de Gregório XVI, de seus zelanti sinistros e dos seus monsignori estabelecidos, tu não eras particularmente atraente: estavas inclusive condenada à morte pela Ciência e o positivismo triunfantes. Tu não estavas mais bela sob Pio X, acossada que eras então pela crise modernista, tão cruel para os teus melhores filhos; mas foi nessa época que, de Claudel a Psichari, de Bloy a Péguy, muitas belas inteligências te reconheceram como sua mãe.

E agora, ó minha Igreja, agora que o vento siroco – cujo fim ninguém pode prever – envolve a imensa multidão dos homens em marcha com seu oceano de poeira dessecante, barrando as perspectivas, nós somos mais que nunca tentados a te abandonar. Parecendo-nos que a bússola enlouqueceu, todos nós nos tornamos um pouco loucos; alguns de nós se despojam até ficarem completamente nus; arvorando-se francos, outros te condenam com termos sábios, ignorados pelos pobres, porque tu não soubeste prever e conjurar a tempestade.

Então, eu venho testemunhar que, no essencial, tu não fracassaste em tua missão, pois te encontro ainda serva e pobre, portadora da Palavra e da Eucaristia, a ti confiadas séculos atrás. E mais: constato que nunca como agora a Palavra derramou-se com tanta alegria em nossos corações e comunidades. Quanto à Eucaristia, eis que mais do que nunca estamos sedentos por ela e que ela se torna, inclusive em nossos lares, o lugar de uma fé que se coloca ao mesmo tempo diante da presença de Cristo e da presença de nossos irmãos.

Santa Igreja, nossa Igreja, venho dizer-te, vasta e velha nave barroca, com tua linha de flutuação sempre ao nível das vagas, que sem ti nós não passaríamos de miseráveis barcaças perdidas na neblina e na tempestade.

P. Pierrard.

sexta-feira, 5 de março de 2010

A pureza de coração - 2

Não somos, é claro, bastante tolos para imaginarmos que devemos encontrar em nós mesmos a onipotência absoluta de Deus. Entretanto, em nosso desejo de sermos “como deuses” – uma deformidade que perdura, impressa em nossa natureza pelo pecado original – procuramos o que se poderia chamar uma onipotência relativa; isto é, o poder de possuir tudo que queremos, de gozar de tudo que desejamos, de exigir que todos os nossos desejos sejam satisfeitos e que nossa vontade nunca se veja frustrada ou contrariada. É a necessidade de ver toda gente se curvar à nossa opinião e acatar nossas declarações como lei. É a sede insaciável pelo reconhecimento de nossa própria excelência, que tanto precisamos achar em nós mesmos para evitar o desespero. Essa pretensão à onipotência, nosso mais profundo segredo e nossa mais íntima vergonha, é, de fato, a fonte de todos os desgostos, de toda a infelicidade, de toda a insatisfação, de todos os enganos e decepções que sofremos. É uma falsidade radical que faz apodrecer nossa vida moral em suas raízes, porque torna tudo que fazemos mais ou menos uma mentira. Só os pensamentos e atos que estão livres da contaminação dessa secreta pretensão possuem alguma verdade, nobreza e valor.

Essa pretensão radical, psicológica à onipotência é a profunda impureza que mancha e divide a alma pura do homem. Essa exigência da parte de uma criatura limitada para ser tratada como o Ser Supremo e Absoluto é a terrível ilusão que nos condena à escravidão das paixões, da loucura e do pecado.

Evidentemente, só os psicopatas são capazes de declarar abertamente, com toda a franqueza, essa oculta pretensão. E é isso que os faz psicopatas. Desistiram da relativa normalidade, que exige que ocultemos essa absoluta fantasia nas profundezas de nossa alma. Arrogaram-se o direito de não fazer caso algum da realidade, para viver num mundo que convém ao seu ideal imaginário; isto é, mostram-se abertamente como “deus”, fazendo surgir um universo que eles próprios fabricaram, aniquilando (tanto quanto podem) toda outra realidade.

Aqueles que entre nós concordamos em chamar “sãos”, são os que mantêm a pretensão pessoal à absoluta perfeição e onipotência recalcada e disfarçada debaixo de certos símbolos mentais aceitos, e só fazem valer a sua pretensão em atos tornados aceitos por uma aparência externa de inocuidade e utilidade social.

(...)

O grande inimigo da pureza monástica de coração é, portanto, o projeto básico, oculto, de ser melhor do que os outros, de fazer valer a própria liberdade à custa da liberdade alheia, de exaltar a própria vontade sobre a vontade dos outros e de elevar o próprio espírito acima dos espíritos dos que julgamos medíocres.

Desse projeto básico, central, vêm todos os outros projetos e ideais ilusórios. A alma vê-se devorada e dividida pelos incessantes esforços que envida para fazer valer sua pretensão radical, enquanto a mantém disfarçada debaixo de um exterior aceitável.

A vida de uma alma pura tornar-se extremamente simples. Mas a alma impura é e deve ser singularmente complicada. Há tanta coisa a fazer! É preciso fazer-se valer e se exaltar e, ao mesmo tempo, crer-se humilde e pronto ao sacrifício de si. É preciso acariciar, a todo custo, o sentimento de santidade e nobreza de que dependem a paz e a felicidade dessa alma. Portanto, é necessário estar alerta para notar todas as fraquezas e imperfeições dos outros, porque são, potencialmente, rivais. E é necessário ainda que esses outros sejam punidos “caridosamente” para que não levantem a cabeça à altura da nossa no caminho real da santidade. É preciso tomar cuidado para que, enquanto, abertamente, faz-se alarde de renunciar à vontade própria, essa vontade seja secretamente satisfeita. É preciso assegurar-se de que desejo algum deixe de ser satisfeito. Em uma palavra, cumpra-se a nossa vontade na terra como se cumpre, no céu, a vontade de Deus!

Uma vez que tudo isso é manifestamente impossível, S. Bernardo faz notar que essa alma está inevitavelmente sujeita à insegurança e ao medo. O medo é a “cor” que escurece a alma e torna obscura a imagem divina, retorcendo-a em um ídolo e uma caricatura. O medo é a “impureza” da alma que aspira a ser onipotente.

O homem decaído, portanto, é alguém em quem a Imagem Divina, ou o livre-arbítrio, se tornou escravo por se ter feito o seu próprio ídolo. A imagem de Deus é falseada pela “dessemelhança”. Sob a tirania desse ídolo, a própria liberdade se transforma em escravidão e o homem se atormenta, tentando querer o impossível, tentando verificar e provar sua absurda pretensão de ser um “deus”.

Qual é a resposta? Já a encontramos. É o sacramento da cruz, a fé e a obediência de Cristo, que, como diz S. Pedro, purificam nossos corações. O orgulho íntimo do homem decaído tem de ser crucificado na cruz da Verdade. O amor da Verdade e da cruz põe por terra o ídolo, coloca o homem em seu verdadeiro nível, devolve-lhe a liberdade, liberta-o do medo, fortifica-lhe a caridade e o torna capaz de viver e agir como filho de Deus. “A verdade vos libertará” (Jo 8,32).

MERTON, Thomas. A vida silenciosa. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 30-33.

quinta-feira, 4 de março de 2010

A pureza de coração - 1

A pureza de coração (...) não é tanto um estado psicológico como um novo nível de realidade. É a condição de uma alma transformada pela caridade perfeita. Essa alma é elevada acima de si mesma e para fora de si. Não só pensa e age num mais alto nível, mas é ela própria um novo ser, uma nova criatura.

Os Padres da Igreja explicavam esse “novo ser” pela seguinte doutrina: o homem, criado à imagem de Deus, perdeu a semelhança com Deus porque, voltando-se para si, ficou centrado em si mesmo. Perdendo essa semelhança divina, mergulhou o homem na irrealidade, pois não está mais unido à fonte da sua realidade. Existe ainda. É ainda “imagem” de seu Criador. Não tem, entretanto, em si, a vida de caridade que é a vida do próprio Deus – uma vez que Deus é caridade. Já que não tem essa vida em si, é ele irreal, está morto. Não é o que deveria ser. É caricatura de si mesmo. Uma imagem que é dessemelhante daquilo que representa é, necessariamente, uma distorção. E essa distorção é, em verdade, uma completa oposição espiritual à vontade e ao amor de Deus. Criado para realizar-se pela perfeita semelhança a Deus que é perfeito amor, destrói o homem suas potencialidades centralizando em si mesmo todo o seu amor. Criado para dar testemunho da infinita verdade e do infinito poder, realidade e existência de Deus, em quem todas as coisas vivem, se movem e têm o ser, nega o homem a realidade e volta as costas à verdade, de maneira a fazer de si o centro e a razão de ser do universo.

Para voltar a ser “real”, deve o homem purificar o coração da treva da irrealidade e da ilusão. Essa treva, porém, submerge-lhe o coração enquanto ele vive apoiado na vontade própria egoísta. A luz só pode brilhar em nossos corações quando nos decidimos a renunciar à nossa determinação de nos rebelar contra a vontade infinita de Deus, a aceitar a realidade tal como Ele a quis e a colocarmos nossa vontade a serviço da perfeita liberdade dele. Quando amamos como Ele ama somos puros. Quando queremos o que Ele quer somos livres. Então, nossos olhos se abrem e vemos a realidade como Ele a vê e podemos nos alegrar com a alegria dele porque todas as coisas são “muito boas” (Gn 1,31).

O coração “impuro” do homem decaído não é apenas sujeito à paixão carnal. “Pureza” e “impureza”, nesse contexto, significam algo mais que a castidade. O coração impuro é um coração repleto de temores, ansiedades, conflitos, ódios, invejas, necessidades e apegos apaixonados. Todas essas e mil outras “impurezas” obscurecem a luz interior da alma. Não são, contudo, sua impureza capital nem a causa dessas impurezas. A corrupção íntima, básica, metafísica do homem é sua convicção profunda e ilusória de que ele é um deus e de que o universo está centrado nele. Notai que essa convicção tem base na verdade, uma vez que o homem vê em si a imagem obscurecida de Deus. Que imagem é essa? S. Bernardo diz que é a liberdade do homem sentindo, então, em si, esse profundo, inalienável poder de autodeterminação espiritual, essa liberdade de moldar o próprio destino pela livre escolha, sente-se o homem “deífico”. Essa liberdade nos vem de Deus nosso Pai.

Mas, embora Deus, nosso Pai, nos tenha criado livres, não nos fez onipotentes. Não somos deuses de direito próprio, capazes de realizar tudo o que desejamos. Não podemos criar e desmanchar mundos, nem nos impor a adoração e o serviço de todos os outros espíritos! Somos capazes de nos tornar perfeitamente “deíficos”, recebendo livremente de Deus o dom de sua Luz, de seu Amor e de sua Liberdade em Cristo, o Logos Encarnado. Mas, na medida em que estamos implicitamente convencidos de que devemos ser onipotentes, por nós mesmos, usurpamos uma semelhança com Deus que não nos pertence.

MERTON, Thomas. A vida silenciosa. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 27-30.

terça-feira, 2 de março de 2010

A caridade não consiste em sentimentos, mas em obras

Há na comunidade uma Irmã que tem o dom de me desagradar em todas as coisas. Suas maneiras, suas palavras, seu caráter me pareciam muito desagradáveis, no entanto, é uma santa religiosa que deve ser muito agradável ao Bom Deus. Assim, não querendo ceder à antipatia natural que sentia, pensei comigo que a caridade não devia consistir em sentimentos, mas em obras. Apliquei-me, então, a fazer por esta Irmã o que teria feito pela pessoa mais amada. Cada vez que a encontrava, rezava por ela ao Bom Deus, oferecendo-lhe todas as suas virtudes e méritos. Percebia muito bem que isto agradava Jesus, pois não há artista que não goste de receber elogios por suas obras, e Jesus, o Artista das almas, alegra-se quando não nos detemos nos exterior, mas penetrando até o íntimo santuário que escolheu por morada, admiramos sua beleza. Não me dava por satisfeita em rezar muito pela Irmã que me causava tantos combates, procurava prestar-lhe todos os serviços possíveis e, quando tinha a tentação de responder-lhe com maus modos, contentava-me com dar-lhe o meu mais amável sorriso e tentava desviar a conversa, pois diz a Imitação: É melhor deixar cada um com seus sentimentos do que se pôr a contestar.

Muitas vezes também, quando não estava no recreio (quero dizer durante as horas de trabalho), tendo algumas relações por causa de ofício com esta Irmã e sendo meus combates por demais violentos, fugia tal qual um desertor. Como ignorasse absolutamente o que sentia por ela, nunca suspeitou dos motivos de minha conduta, e continua persuadida de que seu caráter me é agradável. Um dia, no recreio, disse-me mais ou menos estas palavras, com um ar muito contente: “Poderíeis dizer-me, minha Irmã Teresa do Menino Jesus, o que tanto vos atrai em mim? Cada vez que olhais, vos vejo sorrir...” Ah! O que atraía era Jesus escondido no fundo de sua alma... Jesus, que torna doce o que há de mais amargo... Respondi-lhe que sorria, porque ficava contente de vê-la (bem entendido, não acrescentei que era do ponto de vista espiritual).

TERESA DO MENINO JESUS, Santa. Manuscritos Autobiográficos. Manuscrito “C”, parágrafo 292. In: Obras completas: escritos e últimos colóquios. São Paulo: Paulus, 2002, p. 193.