
Igreja, minha Igreja, desde que, povo da aliança, tu foste criada por Deus em Isaac, o filho imprevisível da velhice de Abraão e Sara, tu te encontras em marcha. E é como um imenso povo a caminho, atravessando lenta e penosamente a História, que eu te vejo.
Não um pelotão de anjos, nem de heróis, mas de homens e mulheres sempre prontos a resistir, a se estabelecer, a sonhar com as cebolas do Egito, a procurar as fontes ou a se prostrar diante dos bezerros de ouro e dos baals. “Povo obstinado”, dizia-se de ti antes que Jesus viesse te agregar a imensa multidão dos gentios. “Povo obstinado”, mas ao mesmo tempo “luz das nações”, pequeno pelotão tão querido por Deus que ele se faz lírico para afirmar que “as montanhas poderão se mover e as colinas oscilar, mas meu amor não te deixará e minha aliança de paz não será abalada” e ainda que “uma mulher pudesse esquecer sua criança; eu não poderia esquecer meu povo”.
E eis que, vindo Jesus, foi firmada contigo uma nova aliança, concluída não no sangue de bois e ovelhas, mas no sangue do Cristo. E tu te tornas a Sião do fim dos tempos. Estéril, tu te tornas Alegre (Isaías), que dá à luz seu messias através das dores da cruz e lhe dá uma multidão de irmãos.
Mas, sinal elevado sobre as nações em marcha, testemunha da ressurreição, precisas te mostrar, minha Igreja. Mesmo que quisesses te esconder, te dissimular, tu não o poderias, pois os homens que te constituem têm os dois pés no chão; eles devem comer, beber, trabalhar e, antes de morrer, contemplar um pouco esta terra que Deus fez tão bela. Então, tu, que és o lugar de todos os mistérios, o sacramento de Jesus Cristo, apareces ao mesmo tempo como uma sociedade humana, falível e jurídica: permanente e frágil, santa e pecadora, uma e no entanto dividida, católica mas contestada, apostólica mas não tímida. E o mistério dos mistérios, que tanto nos custa admitir, é que esses dois aspectos são indissociáveis, que a ação de Deus é a um só tempo final e atual.
Igreja, minha Igreja, tu és um paradoxo vivo, um escândalo, pois, se tu és Jesus Cristo continuado, tu és também a Encarnação em nossa carne pecadora. Esposa, é bem verdade, mas não esposa sem mancha, mil vezes violada pelos poderosos, a cujas carícias enganosas frequentemente te abandonaste: “prostituta que Cristo re-desposa todos os dias”, como dizem os Padres. Esposa adúltera, mas que Deus “envolve com o manto da justiça”, como diz a Escritura.
E também quantas vezes nós não nos sentimos tentados a te abandonar, a te deixar lá, no caminho em que andamos, contigo, em ti, Igreja! Tentação de nos estabelecer, de nos confundir com essa terra quente pisada por nossos pés. Ou então tentação do refluxo, da volta atrás, para um ponto do caminho, um “momento” da história, que, segundo nós, tu apresentavas uma feição jovem e pura. A menos que, como o velho Joaquim di Fiori, não sejamos tentados pela miragem da Igreja de João sucedendo à Igreja de Pedro, do reino puro do Espírito sucedendo ao reino carnal de Cristo.
Ora, o Espírito, minha Igreja, nunca te faltou e não te faltará. É ele que te impele adiante, que te impede de te incrustar. Olha à tua volta: no pelotão formado pelos pecadores que bem ou mal te acompanha pelo caminho pelo caminho luminoso e também na imensa multidão que, de cada lado do caminho, ao infinito, volta para ti suas faces banhadas de sombras, vê como são numerosos os teus filhos que o Espírito conquistou. E não somente os santos dos calendários, mas também e sobretudo a multidão dos anônimos , de todas as nações e de todas as raças: os trabalhadores que gastaram seus olhos e seus pulmões no fundo das minas e nossas mães, nossas esposas, nossas irmãs, que fazem seu longo trabalho em silêncio. E estes, os pobres, que é preciso carregar porque não têm mais pé para caminhar, cabeça para pensar, braços para abraçar, coração para esperar; as velhas mulheres que recitam seus rosários sobre nossos últimos genuflexórios e os padres no trabalho, que estão sufocados por não poderem falar melhor de ti; todas essas crianças de cabeça branca que pereceram aos milhões ao longo do caminho antes de terem podido apenas pronunciar a palavra “sol” e nossas próprias crianças, nossas grandes crianças de longos cabelos selvagens, que esperam desesperadamente a palavra que as salvará.
Por te seguirmos, santa Igreja, por te crermos portadora da salvação, nós esperamos que tu sejas perfeita, bela, imaculada, conforme nossos esquemas, como se diz agora. Mas Catarina de Siena ajoelhava-se diante dos maus padres, suplicando-lhes que te salvassem. Mas quando Newman lança-se aos teus braços, no tempo de Gregório XVI, de seus zelanti sinistros e dos seus monsignori estabelecidos, tu não eras particularmente atraente: estavas inclusive condenada à morte pela Ciência e o positivismo triunfantes. Tu não estavas mais bela sob Pio X, acossada que eras então pela crise modernista, tão cruel para os teus melhores filhos; mas foi nessa época que, de Claudel a Psichari, de Bloy a Péguy, muitas belas inteligências te reconheceram como sua mãe.
E agora, ó minha Igreja, agora que o vento siroco – cujo fim ninguém pode prever – envolve a imensa multidão dos homens em marcha com seu oceano de poeira dessecante, barrando as perspectivas, nós somos mais que nunca tentados a te abandonar. Parecendo-nos que a bússola enlouqueceu, todos nós nos tornamos um pouco loucos; alguns de nós se despojam até ficarem completamente nus; arvorando-se francos, outros te condenam com termos sábios, ignorados pelos pobres, porque tu não soubeste prever e conjurar a tempestade.
Então, eu venho testemunhar que, no essencial, tu não fracassaste em tua missão, pois te encontro ainda serva e pobre, portadora da Palavra e da Eucaristia, a ti confiadas séculos atrás. E mais: constato que nunca como agora a Palavra derramou-se com tanta alegria em nossos corações e comunidades. Quanto à Eucaristia, eis que mais do que nunca estamos sedentos por ela e que ela se torna, inclusive em nossos lares, o lugar de uma fé que se coloca ao mesmo tempo diante da presença de Cristo e da presença de nossos irmãos.
Santa Igreja, nossa Igreja, venho dizer-te, vasta e velha nave barroca, com tua linha de flutuação sempre ao nível das vagas, que sem ti nós não passaríamos de miseráveis barcaças perdidas na neblina e na tempestade.
P. Pierrard.
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