quinta-feira, 4 de março de 2010

A pureza de coração - 1

A pureza de coração (...) não é tanto um estado psicológico como um novo nível de realidade. É a condição de uma alma transformada pela caridade perfeita. Essa alma é elevada acima de si mesma e para fora de si. Não só pensa e age num mais alto nível, mas é ela própria um novo ser, uma nova criatura.

Os Padres da Igreja explicavam esse “novo ser” pela seguinte doutrina: o homem, criado à imagem de Deus, perdeu a semelhança com Deus porque, voltando-se para si, ficou centrado em si mesmo. Perdendo essa semelhança divina, mergulhou o homem na irrealidade, pois não está mais unido à fonte da sua realidade. Existe ainda. É ainda “imagem” de seu Criador. Não tem, entretanto, em si, a vida de caridade que é a vida do próprio Deus – uma vez que Deus é caridade. Já que não tem essa vida em si, é ele irreal, está morto. Não é o que deveria ser. É caricatura de si mesmo. Uma imagem que é dessemelhante daquilo que representa é, necessariamente, uma distorção. E essa distorção é, em verdade, uma completa oposição espiritual à vontade e ao amor de Deus. Criado para realizar-se pela perfeita semelhança a Deus que é perfeito amor, destrói o homem suas potencialidades centralizando em si mesmo todo o seu amor. Criado para dar testemunho da infinita verdade e do infinito poder, realidade e existência de Deus, em quem todas as coisas vivem, se movem e têm o ser, nega o homem a realidade e volta as costas à verdade, de maneira a fazer de si o centro e a razão de ser do universo.

Para voltar a ser “real”, deve o homem purificar o coração da treva da irrealidade e da ilusão. Essa treva, porém, submerge-lhe o coração enquanto ele vive apoiado na vontade própria egoísta. A luz só pode brilhar em nossos corações quando nos decidimos a renunciar à nossa determinação de nos rebelar contra a vontade infinita de Deus, a aceitar a realidade tal como Ele a quis e a colocarmos nossa vontade a serviço da perfeita liberdade dele. Quando amamos como Ele ama somos puros. Quando queremos o que Ele quer somos livres. Então, nossos olhos se abrem e vemos a realidade como Ele a vê e podemos nos alegrar com a alegria dele porque todas as coisas são “muito boas” (Gn 1,31).

O coração “impuro” do homem decaído não é apenas sujeito à paixão carnal. “Pureza” e “impureza”, nesse contexto, significam algo mais que a castidade. O coração impuro é um coração repleto de temores, ansiedades, conflitos, ódios, invejas, necessidades e apegos apaixonados. Todas essas e mil outras “impurezas” obscurecem a luz interior da alma. Não são, contudo, sua impureza capital nem a causa dessas impurezas. A corrupção íntima, básica, metafísica do homem é sua convicção profunda e ilusória de que ele é um deus e de que o universo está centrado nele. Notai que essa convicção tem base na verdade, uma vez que o homem vê em si a imagem obscurecida de Deus. Que imagem é essa? S. Bernardo diz que é a liberdade do homem sentindo, então, em si, esse profundo, inalienável poder de autodeterminação espiritual, essa liberdade de moldar o próprio destino pela livre escolha, sente-se o homem “deífico”. Essa liberdade nos vem de Deus nosso Pai.

Mas, embora Deus, nosso Pai, nos tenha criado livres, não nos fez onipotentes. Não somos deuses de direito próprio, capazes de realizar tudo o que desejamos. Não podemos criar e desmanchar mundos, nem nos impor a adoração e o serviço de todos os outros espíritos! Somos capazes de nos tornar perfeitamente “deíficos”, recebendo livremente de Deus o dom de sua Luz, de seu Amor e de sua Liberdade em Cristo, o Logos Encarnado. Mas, na medida em que estamos implicitamente convencidos de que devemos ser onipotentes, por nós mesmos, usurpamos uma semelhança com Deus que não nos pertence.

MERTON, Thomas. A vida silenciosa. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 27-30.

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