Ao mesmo tempo, São Vicente socorria católicos da Escócia, Irlanda e Inglaterra, com missionários e esmolas, trazendo-os para a França, onde se refugiavam. Foi o salvador da Lorena contra a guerra, a peste e a fome.
As guerras da Fronde devastaram a Champagne e a Picardia. Vicente de Paulo correu a socorrê-las. Encarregou missionários do enterramento dos mortos nos campos de batalha, com o cuidado especial de trazerem os soldados sempre voltados para Deus.
Colaborou com São Francisco de Sales no que diz respeito ao instituto da visitação.
Tantos cuidados e trabalhos fizeram com que o santo adoecesse gravemente. Era em 1644. um amigo íntimo, o padre Saint-Jure, jesuíta célebre pelas obras de piedade, foi vê-lo. Encontrou-o num violento delírio, a dizer, debatendo-se febrilmente:
- In spiritu humilitatis, et in animo contrito suscipiamur a te, Domine.
As crianças que o santo cuidava estavam aflitas, sem saber o que fazer: choravam, gemiam, desoladas. Afinal, acabaram fazendo uma promessa a Nossa Senhora de Chartres. Um jovem missionário, Antônio Dufour, também doente, sabendo que o doce e santo ancião estava enfermo, e em perigo de morte, rogou a Deus, sincera e ardentemente:
- Senhor, ouvi-me, tomai-me em seu lugar!
Vicente, então, começou a sentir-se melhor e o jovem Antônio Dufour pior, morrendo pouco depois. Era meia-noite, e três pancadas ressoaram na porta do quarto de Vicente. Abriram-na, mas não havia ninguém. Vicente, que ainda não sabia da morte de Dufour, ordenara que se começasse o ofício dos mortos: não havia dúvida de que fora instruído pelo sobrenatural.
Apenas restabelecido, foi o santo solicitado pelo papa Urbano VIII, que lhe pedia missionários para a Babilônia e às Índias Ocidentais. Antes que pudesse satisfazer o santo padre, Urbano falecia, suspendo-se a empresa.
Mais tarde, a congregação romana para a propagação da fé a ele também recorreu, pedindo missionários para a ilha de Madagascar. Apesar das revoltas da França, as tempestades e os naufrágios, os perigos do país, Vicente enviou sucessivamente muitos homens apostólicos, que morreram todos eles, vítimas do devotamento. Mas Vicente não se desencorajava, dizendo que a Igreja universal fora estabelecida pela morte do Filho de Deus.
- Foi consolidada pela morte dos apóstolos, dos soberanos pontífices e dos bispos martirizados. Multiplicou-se pela perseguição, e o sangue dos mártires foi a semente dos cristãos. Deus costuma provar os filhos, premiando-lhes, afinal, a perseverança.
Outra caridade ainda ocupava Vicente de Paulo: os escravos cristãos na África ou da Barbaria. Ele mesmo pertencera ao número deles e, pois, não podia esquecê-los.
Os religiosos para a redenção dos cativos conseguiam, de quando em quando, recambiar alguns deles, mas não havia sacerdotes que consolassem os que na servidão viviam, sustendo-lhes a fé, incutindo-lhes força e esperança numa próxima libertação. Vicente empreendeu tal obra de misericórdia. A providência auxiliou-o.
Havia em Tunis um cônsul francês, que o era também de vários países cristãos, e tinha direito a um capelão. Vicente enviou-lhe um zeloso missionário, Luís Guérin, pois outro, Jean de Vacher, o primeiro, morrera vitimado pela peste.
Luís Guérin, depois de ter trabalhado por mais de trinta e três anos na salvação dos escravos, e dos turcos mesmo de Tunis e de Argel, teve morte terrível: metido dentro da boca de um canhão, espalhou o sangue pela fé em Jesus Cristo. Há as vidas de mais de vinte companheiros seus, que lhe foram sucessores, em manuscritos que se guardam nos arquivos de São Lázaro.
Quanto ao estado geral dos escravos cristãos, Luís Guérin escrevia a São Vicente de Paulo:
“Atendemos a uma quantidade enorme de doentes nas galeras. Se estes muito sofrem no mar, os de terra firme não sofrem menos. Todos os dias, fazem-nos talhar o mármore, expostos aos ardores do sol, que são tais quais os duma fornalha ardente. É espantoso como possam resistir a trabalho tão excessivo e a calor tão abrasador. É capaz de matar cavalos, quanto mais esses pobres cristãos. Vejo-os sempre com a língua de fora, como acontece aos cães, o que nunca pensei fosse possível a um ser humano.
“Ontem, um pobre escravo, velho, já bem velho mesmo, sentindo-se mal, pediu permissão para retirar-se que se não agüentava mais. Como resposta, porém, teve apenas um olhar para a pedra em que labutava, como se lhe dissessem: Continua! Queria que soubesses quanto essas crueldades me tocam o coração e me enchem de aflição!
“Há, todavia, o lado edificante. Como sofrem os pobres com paciência! Incrível a paciência que tem! E bendizem a Deus pelas crueldades todas que os fazem passar. Posso dizer com toda a razão que, nós, os franceses, vencemos todas as nações em bondade e virtude.
“Temos dois doentes nas últimas. Segundo todas as aparências, não se recuperarão, razão pela qual já lhes ministramos todos os sacramentos. A semana passada, morreram dois outros, dois perfeitos cristãos, cuja morte, posso dizer, foi tão preciosa aos olhos do Senhor. A compaixão que sinto por esses pobres afligidos, que trabalham a talhar o mármore, força-me a distribuir-lhes uma parte dos refrigerantes destinados aos doentes”.
Tal era, geralmente, a posição dos escravos cristãos de Tunis, em número de cinco a seis mil.
Alguns deles, pilhando patrões menos bárbaros, passavam menos mal, mas havia, a atormentá-los, o espantalho da venda: mais hoje, mais amanhã, poderiam ser vendidos a outros patrões mais cruéis – que a venda e a troca de escravos era comum entre os senhores.
Os escravos de Biserta, antiga Útica, sobretudo os de Argel, eram tratados mais desumanamente ainda que os de Tunis. Havia em Biserta, Argel e Tunis, somados, cerca de vinte e cinco a trinta mil almas na servidão, homens, mulheres e crianças vendidos como animais, como bestas de carga, pelos corsários muçulmanos.
Antes da chegada dos missionários de São Vicente de Paulo, os infortunados cativos não podiam nem mesmo dar notícias às famílias, relegadas ao abandono ou sem saber o que dos seus fora feito.
Jean de Vacher, duma feita, fora obrigado a ir a Biserta, a antiga Útica, e ao Santo escreveu nestes termos:
“Entre os escravos deste lugar, encontrei quarenta doentes num estábulo tão pequeno e estreito, que mal dava para andar. Não recebem ar senão por um suspiro, que se côa por uma gradezinha de ferro, preso no teto baixo. Todos estão acorrentados, dois a dois, e vivem adoentados desde que aqui vieram ter. No entanto, são forçados a trabalhar, o que fazem num moinho movido a braço, com a obrigação de fazer render uma determinada quantidade de farinha, que lhes vai além das forças.
“De que se alimentam estes pobres? De pão de dor, verdadeiramente. Estes, sim, podem dizer: Comemos o pão com o suor do rosto!”.
Em Argel, o próprio cônsul fora exposto a maus tratos pelos turcos. Quanto aos escravos, muitos deles, não suportando aquela vida, desesperados, matavam-se, e outros, acabavam por renegar a fé.
À chegada dos missionários, graças às palavras de consolação, às esmolas e principalmente às virtudes dos sacramentos, tudo, a pouco e pouco, foi melhorando. Uma nova igreja formou-se na África. Cada escravo era um confessor da fé. Houve, mesmo, mais de um mártir. Jesus Cristo, nos missionários, estava dia e noite entre aqueles sofredores. O tabernáculo onde repousava jamais ficou sem uma lâmpada a alumiá-lo. Todos os anos, por ocasião da festa do Corpo de Deus, e durante toda a oitava, ficava Ele exposto à veneração pública. As procissões mesmas eram periodicamente realizadas.
Qual seria alegria de São Vicente de Paulo, já então septuagenário, ao saber de tudo aquilo que os seus padres operavam?
Um dia, o cônsul da França em Argel, missionário, mas não das ordens, foi preso, espancado, torturado e, afinal, condenado à morte pelo sultão, que queria constrangê-lo a pagar imediatamente a bancarrota dum comerciante de Marselha. A importância ultrapassava doze mil libras, e o cônsul, chamava-se Barreau, não possuía mais do que umas pobres trezentas.
Ia, pois, ser degolado, quando foi resgatado pelos escravos mesmos. Sacrificando, todos eles, as pequenas economias, compraram-no, já que ele, para servi-los, deixara a pátria. E as minguadas economias perfizeram a soma exigida.
Haverá na história humana coisa mais bela?
Vicente de Paulo fez com que os cativos, aos poucos, fossem reembolsados. E o cônsul Barreau, quando voltou para a França, em 1661, consigo levava setenta escravos que conseguira libertar.
Vicente de Paulo resgatou, naquela época, mil e duzentos escravos, pagando por eles uma quantia fabulosa.