sexta-feira, 31 de julho de 2009

A oração do Senhor VI - O pão nosso de cada dia nos dai hoje

Do Tratado sobre a oração do Senhor, de São Cipriano, bispo e mártir
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Continuando a oração, fazemos o pedido: O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Pode-se entendê-lo tanto espiritual como naturalmente. De ambos os modos Deus se serve para nossa salvação. Cristo é o pão da vida e este pão não é de todos, é nosso. Assim como dizemos Pai nosso, por ser Pai dos que entendem e crêem, assim dizemos pão nosso, porque Cristo é o pão dos que comem o seu corpo. Pedimos a dádiva deste pão, todos os dias; não aconteça que nós, que estamos em Cristo e diariamente recebemos sua eucaristia como alimento de salvação, sobrevindo alguma falta mais grave, nos abstenhamos e sejamos privados de comungar o pão celeste e venhamos a nos separar do corpo de Cristo, porque são suas as palavras: Eu sou o pão da vida, que desci do céu. Se alguém comer deste pão viverá eternamente. O pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo (Jo 6,51).
Assim, dizendo ele que viverá eternamente quem comer deste pão, como é evidente que vivem aqueles que pertencem ao seu corpo e recebem a eucaristia nas devidas disposições, é de se temer, pelo contrário, que se afaste da salvação aquele que se abstém do corpo de Cristo, conforme a advertência do Senhor: Se não comerdes da carne do Filho do homem e não beberdes de seu sangue, não tereis a vida em vós (Jo 6,53). Por este motivo, pedimos que nos seja dado diariamente nosso pão, o Cristo, para que não nos apartemos de sua santificação e de seu corpo, nós os que permanecemos e vivemos em Cristo.
Pode-se, na verdade, interpretar de outra maneira estas palavras. Pode-se entender que nós, que renunciamos ao século e rejeitamos as suas riquezas e pompas, pela fé na graça espiritual, não peçamos senão o alimento indispensável para o nosso sustento, conforme a palavra do Senhor: Quem renunciar a tudo que possui, não pode ser meu discípulo (Lc 14,33). Quem, portanto, seguindo a palavra do Mestre renunciou a tudo e começou a ser discípulo de Cristo, deve pedir o alimento para o dia que passa e não estender os seus desejos em longos pedidos. Assim ele preceituou, dizendo: Não penseis no dia de amanhã, porque o dia de amanhã trará os seus cuidados. Basta a cada dia a sua própria pena (Mt 6,34). Assim, o discípulo de Cristo, proibido de preocupar-se com o dia de amanhã, pede apenas o alimento de cada dia. Aliás, seria estranho e contraditório pedirmos que o reino de Deus venha a nós em breve e ao mesmo tempo cuidarmos de viver no mundo mais longamente. Também o Apóstolo aconselha, fortalecendo e consolidando nossa fé e esperança: Nada trouxemos para este mundo; e nada, na verdade, podemos levar. Se temos o que comer e vestir, estejamos contentes. Os que desejam enriquecer caem na tentação, no laço e em muitos desejos nocivos que lançam o homem na perdição e na morte. Com efeito, a raiz de todos os males é a cobiça; por ela alguns se afastaram da fé e acarretaram para si muitas dores (1Tm 6,7-10).
Essa doutrina ensina, não só que as riquezas devam ser desprezadas, mas que são perigosas, achando-se nelas a raiz dos males que afagam e enganam, por disfarces e seduções, a cega mente humana. Daí, Deus ter respondido ao rico insensato que pensava nos seus bens terrenos e se vangloriava da abundância dos seus frutos: Insensato, esta noite ainda, entregarás a tua alma; para quem ficará o que preparaste? (Lc 12,20) Alegrava-se o insensato com seus frutos na noite em que ia morrer, preocupava-se com a abundância de alimento no momento em que a vida já se afastava.
O Senhor ensina, ao contrário, tornar-se perfeito e íntegro quem vende tudo o que possui e dá aos pobres. Prepara este seu tesouro no céu. Diz o Senhor que só pode segui-lo e imitar a glória de sua paixão, pronto e sem empecilhos, esta livre para acompanhar com a própria pessoa a doação já feita dos bens. Em preparação para isso aprenda-se a orar dessa maneira e a descobrir assim como se deve ser.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Breve história do aristotelismo cristão - V

Aula em uma universidade medieval

Na medida em que as obras de Aristóteles foram sendo traduzidas para o latim, copiadas e chegaram às bibliotecas européias, o processo de leitura e re-leitura do Filósofo segundo a doutrina cristã foi crescendo de tal forma que, aliado ao também crescente fervor religioso, fez explodir revoltas contra a autoridade intelectual e moral da Igreja. Assim foi que Arnaldo de Brescia sacudiu a Itália numa rebelião contra o papado; no entanto, o perigo maior veio depois: a heresia cátara.
Os cátaros ou albigenses eram fiéis que ansiavam por uma renovação espiritual em moldes semelhantes aos inúmeros movimentos evangélicos que pululavam pela Europa naqueles séculos XII e XIII. Viviam um ideal de pobreza e retorno aos valores evangélicos e criticavam asperamente o clero e a Igreja romana em geral pela posse exagerada de bens e pela atuação dos bispos como nobres feudais. A hierarquia, vendo superficialmente o movimento, parecido com tantos outros, não lhe deu tanta atenção; somente quando o número de adeptos aumentou e a hostilidade à Igreja cresceu é que esta passou a olhar o movimento com preocupação.
O perigo chegou ao limite quando os intelectuais cátaros passaram a utilizar as ideias aristotélicas para afirmar pontos diferentes da doutrina católica ortodoxa. O principal problema era o do mal. Rejeitando o princípio segundo o qual este problema deveria ser compreendido apenas à luz da fé e não da razão, os cátaros, utilizando a definição de Aristóteles de que o conhecimento das coisas provém da compreensão das causas, chegaram a afirmar que Deus não pode ser bom e onipotente ao mesmo tempo, porque, segundo o princípio Aristotélico, o Bem só poderia causar o bem, nunca o mal; daí segue duas conclusões igualmente heterodoxas: que Deus, se permite o mal, não é onipotente e o mal, tendo de ter uma causa primeira, foi criado por um Deus ou um princípio maligno.
O choque que estas ideias causaram na Igreja foi enorme, não por causa do seu conteúdo em si, mas pelo mau uso das ideias aristotélicas. Assim, a reação da Igreja foi a violência contra os cátaros e a proibição do ensino das obras naturais aristotélicas nas universidades.
Estas últimas foram fundadas a partir de meados do século XII como um desenvolvimento das antigas escolas catedrais e foram um viveiro de debates calorosos – e, às vezes, até mesmo violentos, verbal e fisicamente – tendo como ponto de partida as ideias de Aristóteles. A própria estrutura das universidades favorecia tal estado de coisas: apesar de a autoridade eclesiástica ser a ultima instância, o corpos docente e discente das instituições gozavam de extrema liberdade, podendo decidir o currículo a ser estudado, bem como as competências necessárias a cada área, a admissão ou rejeição de membros e até mesmo a eleição dos reitores.
Somente a partir dos tempos de Inocêncio III, no início do século XIII, é que as ideias aristotélicas começaram a ganhar espaço no pensamento cristão ortodoxo, por obra de uma genial manobra do papado, que, ao regularizar os movimentos evangélicos nas ordens mendicantes, deu a estas o papel de inserir as ideias do Filósofo na doutrina cristã e, desta forma, renovar o pensamento da época, respondendo ao anseio tão sofregamente sentido de melhores explicações para os dados da fé.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

"Senhor, sem o vosso auxílio ninguém é forte, ninguém é santo!" - XVII Domingo do Tempo Comum


Devido a problemas internos, não foi possível publicarmos ontem a reflexão da liturgia dominical. Pedimos desculpas e a compreensão de nossos leitores. Segue-se, então, e reflexão, que, dessa vez, foi preparada por Pe. Thiago Henrique, presbítero da Igreja de Palmeira dos Índios, reitor do Seminário Cura D'ars da mesma diocese, e nosso amigo e irmão.

Assim hoje rezamos na missa, assim hoje reconhecemos nossa fragilidade e nossa fortaleza... assim! Caríssimos, o mistério que hoje Deus nos revela certamente nos impressiona, mas não pela grandiosidade e sim por ser simples. De onde vem nossa vida, de onde vem nossa força, de onde vem nosso sustento? Influenciados pelo paganismo de hoje e sempre, também nós cristãos nos deixamos perder em labirintos traiçoeiros de pensamentos. É fácil achar que "a vida é minha", que minha força provem dos meus ideais e exercícios, que meu sustento é fruto do meu esforço... Quem de nós nunca pediu a Deus: "Senhor, dai-me saúde e o resto eu luto e consigo! Ou, "Se o Senhor me conceder 'tal coisa' eu não peço mais nada! Ou ainda,"Permite que eu consiga aquele trabalho e eu conseguirei tudo que me falta!"... quem já não se pegou, pelo menos uma vez rezando, pensando assim? Eis, amados em Cristo, parece que nossa consciência acerca da vida está meio desviada. Por isso veio hoje o Senhor nos falar, nos curar dessa cegueira, nos fazer perceber a verdade que nos falta sobre a vida, a nossa vida!
Na primeira leitura de hoje, do segundo Livro dos Reis, encontramos Eliseu, sucessor de Elias, tendo revivificado o filho da mulher sunamita, encontra-se com o Povo de Deus que sofre com a seca e passa fome. O profeta não pode fazer nada... Ele pôde ressuscitar um morto, mas não pode impedir que o povo morra na seca... Meus irmãos, será que aquela mulher merecia ter seu filho ao seu lado mais que a outras mulheres? Por que Deus dá ao profeta poder de ressuscitar o menino e não lhe dá poder para impedir que o povo padeça e morra de fome? Na verdade, meus filhos, Deus fala na Verdade ao agir. Vejamos, como em todas as épocas, o povo se afastou de Deus e buscou sozinho seu sustento, sua força, sua vida. O povo perdeu seu rumo ao se afastar de seu Pastor e saiu errante em busca de pastagens. Deus fala, alerta, exora, lamenta, implora a volta do povo, mas seu coração esta obstinado na busca dos ídolos, tudo que traga uma certa satisfação é idolatrado em tempos difíceis e Deus vai sempre ficando de lado. Por isso o povo sofre a seca, não porque Deus o castigou impiedosamente, mas por que a consequência de andar num deserto é passar sede! O Povo escolheu outros deuses para adorar e Deus respeitou a decisão do povo.
Mas a notícia que o homem de Deus (Eliseu) havia ressuscitado um morto trouxe ânimo e esperança uma pequena parte do povo (100 homens) que pôde olhar para o lugar certo. Como quem encontra um oásis no deserto o povo olhou para Eliseu e este olhou para Deus! "Todos os olhos, ó Senhor, em vós esperam e vós lhes dais no tempo certo o alimento; vós abris a vossa mão prodigamente e saciais todo ser vivo com fartura". Como foi penoso para aquele povo chegar a este momento de conversão, como foi chorada a jornada pelo deserto, como foi escaldante o sol, fria a noite, sem alegria o dia... como foi vazia e sem sentido a decisão de buscar seu sustento, sua força, sua vida sozinho, sem o Autor da vida! "Ó povo insensato, que buscas a força em tua exaustão e cansaço, que buscas teu sustento plantando em terra seca e que buscas tua vida numa estrada de morte, olha para o alto e pensa: se o sol não brilhar, se a chuva não vier e se o vento não soprar de onde virá o teu sustento e a tua força? E se de mim te afastares, se minhas palavras desprezares, se meu amor rejeitares, de onde virá a tua vida? Eu sou o Senhor que faço brilhar o sol, cair a chuva, soprar o vento. Eu sou o Senhor que ponho vida em teu barro, que te revelo meus segredos, que te renovo e te salvo por amor! Eu Sou!" . É então que, diante da dor do profeta impotente e desanimado, que Deus envia um homem de Baal-Salisa levando consigo 20 pães para Eliseu e este, ao ver o presente disse: "Geazi, dá ao povo!"; e este lhe responde: "O que é 20 pães para 100 homens?". De fato, Geazi, servo de Eliseu, tinha razão. Mas quem disse que a razão do homem pode impedir o Amor de Deus? "Dá ao povo!" - insistiu Eliseu. E todos comeram, ficaram satisfeitos e ainda sobrou!
Caríssimos, tantas vezes fazemos o mesmo! Sabemos quem é Deus, o que já fez para o seu povo amado, o que já fez para conosco e ainda somos arrastados a buscar outras seguranças, outra força, outro sustento, outra vida... é por isso que vivemos mendigando no mundo o que Deus quer nos dá com fartura, é por isso que vivemos com medo do amanhã, preocupados com as secas da vida! É por isso que nunca sobra nada! Como é mais fácil confiar nos amigos influentes, nas oportunidades, nos trabalhos, na autoridades, nas reservas... como é mais fácil endeusar o prazer, o poder a riqueza e viver por eles nossos dias. Por isso que hoje Jesus nos convida a um novo lugar: do deserto ao campo coberto de relva! Ovelhas que éramos sem pastor no domingo passado, agora nos assentamos com Ele no pasto! "Onde vamos comprar comida para eles?" Ou seja, onde buscaremos a força, o sustento, a vida para o meu rebanho? Assim como o profeta não sabia o que fazer, os discípulos também não sabem, mas um menino - assim como o homem de Baal-Salisa - vem enviado por Deus com uma porção de alimento. E os discípulos questionam da mesma maneira que Geazi: "Mas o que é isso para tanta gente? Jesus, então, toma o pão e dá graças! Vejam, meus amados, onde Jesus busca o sustento, a força, a vida para seu povo? "e deu graças", agradeceu ao Pai. É no Pai, caríssimos, no Pai que está nossa força, nosso sustento, nossa vida! Não foi à toa que Jesus rezou na cruz: "Em Tuas Mãos, ó Pai, eu entrego o meu espírito".
Quanto tempo perdemos caminhando pelo deserto de uma vida voltada para interesses particulares e mesquinhos, quanto cansaço enfrentamos tendo de buscar sozinhos nosso sustento, quanto desfalecimento frente aos problemas da "seca" de nossa caminhada, e quanta morte sem sentido ao buscar a felicidade onde ela não está! Por isso Jesus, no final do Evangelho de hoje, vai embora a um lugar deserto e não aceita ser proclamado rei. Vejam, quem rejeitaria uma promoção assim? Quem não tremeria diante da possibilidade de ser poderoso e rico instantaneamente? Quem não faria de tudo por um futuro garantido para si e os seus? Mas se Jesus aceitasse ser rei ali, naquela hora, estaria colocando sua confiança nas coisas que passam, estaria buscando a vida sem o Pai, estaria escolhendo caminhar no deserto. Não! A força, o sustento, a vida não provém do mundo, mas de Deus! O mundo passa, meus caros, tudo vai passar! Para quê procurar longe o que está perto? Para quê lutar pelo que nos é oferecido pacificamente? Para quê viver em função do supérfluo se o Essencial nos ama e nos quer? Pensemos nisso: em quem colocamos nossa esperança, em quem depositamos nossa confiança, em Deus ou no mundo? Na Graça ou no meu esforço? No amor ou no interesse? E continuemos nossa caminhada com Jesus, nosso Pastor, pedindo a Pai que não desista de nós, que nos dê sua Força, seu Sustento e sua Vida, na unidade do Espírito Santo! Amém.

A oração do Senhor V - Seja feita a Vossa Vontade assim na terra como no céu

Do Tratado sobre a oração do Senhor, de São Cipriano, bispo e mártir
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Acrescentamos ainda: Seja feita a vossa vontade assim na terra como no céu. Não para que Deus faça o que quer, mas para que possamos fazer o que Deus quer.
Pois quem impedirá a Deus de fazer tudo quanto quiser? Mas porque o diabo se opõe a que nossa vontade e ações em tudo obedeçam a Deus, oramos e pedimos que se faça em nós a vontade de Deus. Que se faça em nós é obra da vontade de Deus, isto é, resultado de seu auxílio e proteção, porque ninguém é forte por suas próprias forças. Com efeito, é a indulgência e a misericórdia de Deus que o protegem. Finalmente, manifestando a fraqueza de homem, diz o Senhor: Pai, se possível, afaste-se de mim este cálice (Mt 26,39) e, dando aos discípulos o exemplo de renunciar à própria vontade e de aceitar a de Deus, acrescentou: Contudo não o que eu quero, mas o que tu queres. O mesmo ele diz em outro lugar: Não desci do céu para fazer a minha vontade, mas a daquele que me enviou (Jo 6,38).
Se o Filho esteve atento no cumprir a vontade do Pai, quanto mais deve estar o servo em relação ao Senhor. São João nos exorta igualmente, em sua epístola, a cumprir a vontade do Pai: Não ameis o mundo, nem o que está no mundo. Se alguém ama o mundo, a caridade do Pai não está nele. Pois tudo que está no mundo é concupiscência da carne, concupiscência do mundo. O mundo passará, e igualmente a sua concupiscência; aquele, porém, que cumprir a vontade de Deus permanece eternamente (1Jo 2,15-17). Os que quisermos permanecer eternamente devemos, pois, cumprir a vontade do eterno Deus.
A vida humilde, a fidelidade inabalável, a modéstia nas palavras, a justiça nas ações, a misericórdia nas obras, a disciplina nos costumes; o não fazer injúrias; o tolerar as recebidas; o manter a paz com os irmãos; o amar a Deus de todo o coração; o amá-lo por ser Pai; o temê-lo por ser Deus; o nada absolutamente antepor a Cristo, pois também ele não antepôs coisa alguma a nós; o aderir inseparavelmente à sua caridade; o estar ao pé de sua cruz com coragem e confiança, quando se tratar de luta por seu nome e sua honra, o mostrar firmeza ao confessá-lo por palavras, e, no interrogatório, o manter a confiança naquele por quem combatemos, e, na morte, o conservar a paciência que nos coroará, tudo isto é querer ser co-herdeiro de Cristo, é cumprir o preceito de Deus, é realizar a vontade do Pai.
Pedimos que seja feita a vontade do Pai assim na terra como no céu, pois em ambos os casos está em jogo nossa segurança e salvação. Possuímos um corpo da terra e um espírito do céu, somos a um tempo terra e céu. Oramos para que em ambos, corpo e espírito, seja feita a vontade de Deus. Na verdade, há luta entre a carne e o espírito, e essa discórdia diária acarreta-nos embaraços para fazer o que queremos. De um lado o espírito procura o que é celeste, o divino; de outro lado a carne cobiça o secular, o terreno. Por isso pedimos que pelo auxílio de Deus se estabeleça a harmonia entre ambos, que graças à sua vontade, realizada na carne e no espírito, seja salva a vida por ele renascida.
Pode-se ainda, irmãos caríssimos, entender de outra maneira. Como o Senhor quer e exige que amemos até os inimigos, que oremos até pelos que nos perseguem, pode-se entender que devamos pedir também pelos que ainda são da terra e não começaram a ser celestes, para que neles se realize a vontade de Deus, a vontade que Cristo cumpriu conservando e reintegrando o homem. O Senhor já não chama seus discípulos terra, mas sal da terra, e o Apóstolo diz que o primeiro homem é limo da terra, ao passo que o segundo é celeste; portanto, nós, que devemos ser semelhantes ao Pai – (o qual faz nascer o sol sobre bons e maus, chover sobre justos e injustos) – seguindo o conselho de Cristo, oramos e pedimos numa única prece pela salvação de todos. Assim como a vontade de Deus foi feita no céu, isto é, em nós – que pela fé nos tornamos céu – assim se faça também na terra, isto é, nos que ainda não crêem, que anda são terrenos pelo primeiro nascimento a fim de começarem a ser celestes pelo renascimento na água e no Espírito.

sábado, 25 de julho de 2009

XII - Meu Amigo, meu Herói! (Para Luciano e Dos Anjos)

Escrevi este texto no dia 20 de Julho, O Dia do Amigo. Queria homenagear dois dos meu amigos (e por meio deles homenagear os outros meus amigos). Eles sabem que significam muito pra mim. Sabem também que eu os amo.
No entanto, não consegui postar o texto no Dia do Amigo. Mas consegui hoje!
Tudo foi bem pensado: a foto, as palavras e o sentimento principalmente. Tudo é verdadeiro.
Bom... aí está o texto. Espero que tanto os meus dois amigos quanto os nossos leitores gostem... um abraço!
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Ás vezes em certos momentos difíceis da vida
Em que precisamos de alguém para ajudar na saída
A sua palavra de força, de fé e de carinho
Me dá a certeza de que eu nunca estive sozinho.
Roberto Carlos & Erasmo Carlos, Amigo (1977).

A amizade é uma escolha. Os amigos são os irmãos que escolhemos quando já somos adultos. O amigo é aquela metade que nos falta, é o nosso outro eu. A Igreja – comunidade de fé, esperança e caridade – é o lugar privilegiado de fazer a nobre experiência da amizade. Por isso, são os santos que nos dão os grandes exemplos de amizade.
Nessa caminhada de fé, à procura de Jesus Cristo, encontrei você, que não demorou muito para se tornar meu amigo de fé, meu irmão e meu camarada. Bem devagar, você chegou... sem invadir a minha vida, sem violar a minha intimidade. Simplesmente... cativou-me, criando laços que nem mesmo as maiores dificuldades foram capazes de desfazer. Por isso, hoje, agradecendo ao Senhor, rezo estas palavras do Eclesiástico: “Amigo fiel é um poderoso refúgio, quem o descobriu, descobriu um tesouro” (6,14). Você é um dos meus tesouros...
Quando, na caminha da vida, corri o risco de me esquecer da minha vocação e caminhar pelo outro caminho, você me recordou o Caminho por onde eu deveria seguir. Você veio comigo, fazendo-se companheiro de caminhada. Quantas conversas, sinceras confidências...! Quantas vezes deixamos o tempo correr, enquanto partilhávamos a vida...! Quantas vezes decretamos feriado no nosso dia-a-dia, para falarmos daquelas coisas tão banais e tão sérias...! Quantas vezes lhe procurei: com o coração vazio, confuso, querendo desistir de mim mesmo, de todos, de tudo...! Nesses momentos, pelos quais os seres humanos passamos, você sempre esteve “do meu lado”, dizendo-me “as verdades com frases abertas”. Por essas e outras razões, eu lhe digo: “Amigo você é o mais certo das horas incertas”.
“O seu coração é uma casa de portas abertas”. Eu sempre posso entrar e ficar o tempo que for preciso. Como é bom ter e ser amigo! Do livro O Valor da Amizade, do Padre Atilano Alaiz, dedico-lhe estas singelas palavras: “A amizade requer um converter-se em um ser hospitaleiro, casa sempre aberta: ‘entrada livre’. [...] Morada onde se possa entrar, sair e repousar como se fosse casa própria. Casa onde possamos deixar, com toda confiança, pacotes que incomodam: os problemas, as angústias. Casa onde a porta é sempre aberta com solicitude e que tenha corrimão para se subir as escadas”.
O Padre Henri J. M. Nouwen, no seu livro Podeis Beber o Cálice?, está certíssimo quando afirma: “Deus envia amigos maravilhosos aos que fazem dEle seu único ponto de referência”. Amigos que enriquecem a nossa existência. Por isso: muito obrigado por partilhar comigo a sua vida, a sua vocação, a sua felicidade. Obrigado por existir e ser o que você é. Você e eu sabemos o quanto significa estas palavras do Eclesiástico: “Amigo fiel é bálsamo vital e os que temem o Senhor o encontrarão” (6,16). É Palavra de Deus, por isso não falha. Obrigado, meu amigo e meu herói.

25 DE JULHO: Festa de São Tiago Maior, Apóstolo


No grupo dos Doze, existiam dois Apóstolos de Jesus por nome de Tiago: um chamado Maior; outro, Menor. São chamados assim devido o destaque que recebem no Novo Testamento e na vida terrena de Jesus. Tiago, o Maior, era irmão do Apóstolo João, e, ambos, filhos de Zebedeu (cf. Mc 3,17). São Tiago Maior ocupava um lugar privilegiado na Igreja de Jerusalém, o que o teria levado ao martírio, por volta do ano 42, durante o reinado de Herodes Agripa (cf. At 12,1-2). De fato, o Apóstolo Tiago respondeu com a própria vida àquela pergunta feita pelo Mestre: “Podeis beber o cálice que hei de beber?” (Mt 20,22).
A fé que recebemos da Igreja é, verdadeiramente, um “tesouro em vasos de argila” (2Cor 4,7). De fato, a fé é um dom de Deus. Esse dom nos acompanha em todos os momentos da nossa vida, dando-nos força para caminharmos com esperança, e a “esperança não decepciona” (Rm 5,5). O caminho de fé é difícil. É cheio de pedras, que são as nossas dificuldades de cada dia. O homem de fé é, a todo instante, tentado, caluniado e perseguido. O espírito mundano nos violenta. Mas continuamos firmes e animados pelo Espírito Santo, assim como o foi São Tiago, fiel testemunha do Evangelho de Cristo.
“Sim, bebereis de meu cálice” (Mt 20,23). A vida cristã é um constante beber de cálice: às vezes de alegria, às vezes de dor. Mas, na maioria das vezes, bebemos um cálice de dor... e muito amargo! O cristão é um homem que, conscientemente, caminha sem temer o sofrimento. O cristão assume a cruz, carregando-a com perseverança, como o fez Jesus, o nosso Senhor e Mestre. Por isso, todo aquele que ignora a realidade da cruz na sua existência, torna-se um falso seguidor de Jesus Cristo, como o são muitos que pertencem a certas seitas dentro do Cristianismo. Devemos beber o Cálice do Senhor com alegria e coragem, uma coragem de entregar a vida por amor ao Reino de Deus, conforme nos ensina o testemunho dos nossos pais na fé.
“Portanto, de São Tiago podemos aprender muitas coisas: a abertura para aceitar a chamada do Senhor também quando nos pede que deixemos a ‘barca’ das nossas seguranças humanas, o entusiasmo em segui-lo pelos caminhos que Ele nos indica além de qualquer presunção ilusória, a disponibilidade a testemunhá-lo com coragem, se for necessário, até ao sacrifício supremo da vida. Assim, Tiago o Maior, apresenta-se diante de nós como exemplo eloquente de adesão generosa a Cristo. [...]” (Papa Bento XVI, Audiência Geral, 21 de Junho de 2006).

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Breve história do aristotelismo cristão - IV

Santo Anselmo de Aosta, bispo e doutor da Igreja
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Neste artigo, veremos o desenvolvimento do pensamento aristotélico nos séculos XI e XII, período no qual houve uma “revivescência da razão”, e cujas figuras de fundo são Anselmo de Aosta e Pedro Abelardo.
A Baixa Idade Média (séc. XI-XV) foi um período de renovação social, cultural e religiosa no Ocidente. Quando cessaram as invasões bárbaras e as condições naturais se tornaram mais propícias, juntamente com uma série de outros fatores, possibilitou-se o surgimento de um novo modo de vida na Europa, muito mais civilizado e ordeiro e de uma generalizada ânsia de saber e de ardor religioso, ambas sendo expressas no que poderíamos chamar de “casamento” da fé e da razão, descobertas de uma nova maneira pelos europeus.
Esta época exigia uma nova forma de interpretação das verdades estabelecidas, sejam de natureza religiosa sejam de natureza secular. Isto se deveu a uma enorme curiosidade, ou sede de saber, sede de um conhecimento mais elaborado e exato. É nesse contexto que as obras de Aristóteles vão fornecer métodos e conceitos que cairão como uma luva nos anseios intelectuais dos homens medievais.
A primeira das figuras fundamentais no pensamento desta época e que mostra a efetividade deste “casamento” é Santo Anselmo de Aosta. Duas frases suas exprimem suas preocupações filosóficas sobre as relações fé-razão: “fides quaerens intellectum” (a fé que procura a inteligência) e “credo ut intellligam” (creio para compreender), que juntas querem dizer, segundo Giovanni Reale: “a fé se ilumina pela inteligência” (História da Filosofia: Antiguidade e Idade Média. São Paulo: Paulus, 1990, p 501). Também se deve a Santo Anselmo as regras dos debates intelectuais que dentro em breve iriam multiplicar-se na Europa medieval. O método consistia em reproduzir a crítica do opositor junto da própria obra, acrescentando-lhe a réplica para reafirmar a primeira asserção. Tal método, segundo Rubenstein, é a pura “dialética” de Aristóteles.
Anselmo chama a atenção para os problemas das relações dos termos e conceitos com as realidades que eles significam, num primeiro aceno sobre a questão da analogia entis. Este problema – os universais –, que é a antecipação do debate contemporâneo acerca da linguagem, constitui o cerne das questões mais tratadas na época, aquelas relativas à teoria do conhecimento.
Depois, temos a figura de Pedro Abelardo, esse gigante da dialética, famoso por sua história de amor com Heloísa pelo histórico embate com São Bernardo de Claraval, embate que lhe acabou a carreira. A principal contribuição de Abelardo está no esforço feito por ele no sentido de oferecer uma resposta mais elaborada à questão dos universais. Segundo ele, os universais existem de fato (ao contrário do que dizia Roscelin), mas não como entes reais (ou ideais, no sentido platônico), apenas como formas existentes na mente. Essa sua doutrina foi conhecida como “conceitulismo”. Abelardo surge, então, como a figura que vai dar a guinada definitiva do homem medieval em direção à razão, a qual está intrinsecamente unida, ao menos no áureo período medieval dos séculos XII e XIII até Guilherme de Occam, à fé.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Quando encontramos um amigo verdadeiro?


Essa talvez seja a grande pergunta que procuramos responder, e que, de certa forma, nos inquieta, tanto aqueles que já possuem amigos, quanto aqueles que pretendem tê-los. Porque os que possuem amigos buscam entender de que maneira conseguiram entrar na vida dessas pessoas, enquanto os que ainda não gozam de amizades verdadeiras permanecem procurando uma forma de entrar de vez na vida de um possível amigo.
Se prestarmos atenção, iremos perceber que não escolhemos os nossos amigos, eles surgem em nossas vidas, manifestam-se, e, quando nos damos conta, já ganhamos um novo amigo.
Por isso é muito bonito quando Deus vai formando uma pessoa para ser amigo de outra, pois para ser amigo é preciso saber partilhar a vida, as coisas do outro ganham importância para nós, o que o outro está vivendo é importante e não passa despercebido. A alegria do outro, assim como a tristeza também é nossa. Enfim Deus nos prepara pessoas que experimentam conosco as mesmas situações, sobretudo os sofrimentos da alma e da carne.
Podemos construir uma amizade em minutos ou talvez quem sabe em anos de convivência, porque para se fazer um amigo verdadeiro o tempo não conta, pois quem gera essa amizade é o próprio Deus, e bem sabemos que o tempo de Deus é diferente do nosso tempo.
Portanto, uma frase bem conhecida por todos e verdadeira diz que quem encontrou um amigo, encontrou um tesouro. De fato encontrou, porque os amigos que temos foi o próprio Deus que escolheu, preparou e colocou em nossas vidas. Por isso, essas pessoas são dons de Deus verdadeiramente, são sinais do amor bondoso de Deus e de sua misericórdia para conosco.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Rito Romano: sem saudosismo, sem rubricismo


Há um movimento estranho na Igreja. É o movimento do saudosimo e do rubricismo. Esse movimento, composto principalmente por pessoas jovens, decidiu sacralizar o rito romano vigente na Igreja até a reforma promovida pelo Concílio Vaticano II, o XXI concílio ecumênico legitimamente válido da história da Igreja.
Os diversos grupos que defendem e promovem o rito de s. Pio V são movidos pela saudade daquilo que simplesmente eles não experimentaram. Acrescente-se a isso um certo rubricismo que se deixa perceber nos diversos blogs e sites do gênero. Discutir se a assembléia deve ou não erguer os braços durante a oração do Pai nosso na celebração eucarística é puro rubricismo “letra morta”.
O Santo Padre Bento XVI acertadamente permitiu o uso extraordinário da missa segundo o missal de Pio V. Assim, na compreensão do Romano Pontífice, na Igreja latina temos um único rito ordinário, segundo o chamado missal de Paulo VI. Extraordinariamente pode-se celebrar sob as rubricas do rito tridentino, sempre reservado a um grupo que o deseje, desde que não seja por oposição ao rito atual. Não era intenção, portanto, de Bento XVI voltar ao passado, mas tão somente deixar claro que não há ruptura na tradição litúrgica da Igreja.
Houve, de fato, após o Concílio Vaticano II, uma verdadeira deturpação da proposta da reforma litúrgica. No entanto, a missa segundo o missal de Paulo VI é sóbria, rica e restabelece o equilíbrio entre as duas dimensões da celebração eucarística: sacrifício e banquete. Esta não é uma “sub-missa”, ou não se trata de um rito pejorativamente denominado de “moderno” ou "missa nova" por esses movimentos. Trata-se da celebração eucarística legitimamente aprovada pelos padres conciliares junto a Pedro. Na Igreja não há missa moderna ou nova, há a sagrada liturgia, a mesmíssima de todos os tempos, expressão da experiência de fé da Igreja nesses mais de dois milênios de história.
O que se faz necessário é colocar em prática seriamente a reforma litúrgica conciliar, fazer valer a letra do que está contido na Sacrossanctum Concilium. Aqui deve ser a preocupação e tarefa de todos os católicos, inclusive dos “tridentinos”: promover a formação litúrgica dos leigos, exigir um clero liturgicamente bem instruído e corrigir abusos.
Solenidade e sobriedade não são sinônimos de rubricismo, mas devem ser expressão da fé e incidir na vida cristã. O rito bem celebrado não deve apontar para um beleza mundana. O rito bem celebrado, o bom gosto pelo paramentos e pelo espaço sagrado nos colocam diante da beleza do mistério pascal de Cristo, sacrifício redentor sacramentalizado por Ele sob a forma de ceia. Toda essa riqueza está contida nas rubricas da missa romana ordinária. Não há, portanto, do que sentir saudade.

domingo, 19 de julho de 2009

"Teve compaixão, porque eram como ovelhas sem pastor" (Mc 6,34) - XVI Domingo do Tempo Comum


As leituras da liturgia do XVI Domingo do Tempo Comum nos mostram o amor e a solicitude de Deus por aquelas ovelhas que estão sem pastor (cf Mc 6,34). E todo esse amor e solicitude o próprio Cristo Bom Pastor já o ofertou a todos nós, quando se entregou livremente na cruz. E com essa oferta Cristo deu vida nova e plena a todos os homens, fazendo-os criaturas novas (cf. Ef 2,15).
Já pela voz do profeta Jeremias o próprio Senhor condena aqueles pastores que descuidam do rebanho a eles confiados (cf. Jr 23, 1-2). E, mais adiante, anuncia que Ele próprio tomar conta do seu rebanho, dando-lhe fecundidade e vida em abundância (cf. Jr 23, 3-4). Deus irá suscitar um descendente de Davi que irá reunir as ovelhas dispersas (cf. Jr 23,5-6).
Esse descendente de Davi é o próprio Cristo que no Evangelho de hoje se apresenta como o Pastor entranhado de compaixão pelas ovelhas sem pastor (cf. Mc 6,34).É Cristo que, segundo S. Paulo, reaproxima os dispersos, reconciliando-os com Deus (cf. Ef 2,13-14). Por isso o Bom Pastor é a nossa paz, pois Nele estamos em paz com Deus. Em Jesus a promessa de Deus de reunir os afastados, abatidos, sem rumo e sem sentido na vida, encontra a sua plena realização.
O grupo do doze discípulos de Jesus, por sua vez, são testemunhas do amor, da bondade e da solicitude de Deus pela humanidade, por esses homens e mulheres que caminham pelo mundo perdidos e sem rumo “como ovelhas sem pastor” (cf Mc 6,30), participando de sua compaixão de Jesus pelo rebanho.
Essa participação no pastoreio de Jesus implica estar em constante diálogo com o Pai para que os chefes do povo não percam de vista a sua missão, como o próprio Cristo o fazia, recolhendo-se um lugar deserto (cf, Mc 6,31-32).
Cristo é, portanto, o verdadeiro e único pastor, prometido pelo Pai. Ele convida os seus discípulos, e de um modo particular aqueles que são seus ministros, a participarem de sua solicitude e compaixão pelo rebanho. Tal participação se dá pelo diálogo constante com o próprio Senhor.

sábado, 18 de julho de 2009

Uma menina chinesa

Por Juan del Carmelo
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Há quatro anos, escrevi um livro de relatos de caráter espiritual intitulado “Os vestígios de Deus”, em que recolhi uma história narrada pelo arcebispo Fulton J. Sheen, que merece a pena recordar. Num dos programas, não sei se de televisão ou rádio, em que interviu Monsenhor Sheen, poucos meses antes de sua morte, o entrevistador lhe perguntou: “Bispo Sheen, o senhor inspirou a milhões de pessoas em todo o mundo. Quem foi ou o que foi que mais o impressionou ao longo de sua vida? Foi, por acaso, o Papa atual ou o anterior? E o bispo lhe respondeu: “Não foi um Papa, nem um Cardeal, ou outro Bispo, e nem sequer foi um sacerdote ou uma monja. Foi uma menina chinesa de onze anos de idade.
Então o bispo contou a seguinte história: quando os comunistas ocuparam toda a China, seu ódio ao catolicismo os levou a encarcerar, quando não a assassinar, todos os religiosos e religiosas, especialmente os que, tendo a nacionalidade chinesa, ali se encontravam. Um destes religiosos contou ao bispo Sheen o que havia se passado em sua igreja. Explicou-lhe que encarceraram a ele em sua própria reitoria, junto à igreja. O sacerdote observou aterrado, desde sua janela, como os comunistas penetraram na igreja e se dirigiram ao sacrário. Cheios de ódio, tomaram a âmbula e a atiraram ao chão, espalhando as Hóstias Consagradas. Como eram tempos de perseguição, o sacerdote havia tomado a precaução de saber exatamente quantas Hóstias continha a âmbula: trinta e duas.
Uma vez cometida a maldade, os comunistas se foram, deixando uma sentinela de guarda para vigiar o padre e não permitir o culto na igreja. Mas não repararam, ou não deram importância, a uma menina de uns onze anos que estava na penumbra, rezando no fundo da igreja.
A menina observou tudo o que havia acontecido e foi para sua casa. Mas, à noite, voltou à igreja, evitando o guarda comunista que mais se preocupava em vigiar a reitoria onde estava recluso o sacerdote, que a igreja, que estava vazia com os destroços que seus companheiros e ele mesmo haviam feito, e o mais importante para nós do que para o guarda: as trinta e duas Hóstias consagradas, derramadas no chão.
Uma vez na igreja, a menina se colocou na parte de trás da mesma, rezando durante uma hora; um ato de amor em reparação ao ódio que haviam demonstrado seus irmãos de raça. Depois de sua hora santa, a menina se aproximou com muito cuidado do presbitério, se ajoelhou e, baixando a cabeça até o chão, com sua língua tomou uma das Sagradas Hóstias, que estavam esparramadas. Tenha-se em conta que naquela época, ainda não estavam vigentes as atuais normas sobre a comunhão: o jejum era rigoroso, não se podia comer nem beber nas doze horas anteriores, e aos leigos não era lícito tocar com suas mãos, não consagradas, as Sagradas Hóstias.
A menina regressou todas as noites seguintes, fazendo primeiro sua hora santa e aproximando-se, depois, do presbitério, para tomar com a língua o Corpo de Nosso Senhor. Na trigésima segunda noite, depois de haver realizado a última comunhão, tropeçou, provocando acidentalmente um ruído que despertou o comunista que estava de guarda. A menina tratou de fugir, mas o comunista correu atrás dela, a agarrou, e a golpeou até matá-la com a culatra de seu rifle. Este ato de martírio heróico foi visto, desde a reitoria, pelo sacerdote que, sumamente abatido, olhava desde a janela do quarto onde estava preso, sem poder fazer nada.
O bispo Sheen declarou ao entrevistador que, quando escutou este relato, ficou tão impressionado, que prometeu ao Senhor que faria uma hora santa de oração defronte a Jesus Sacramentado todos os dias, pelo resto de sua vida.
Se aquela pequena menina chinesa havia sido capaz e podido dar testemunho, com sua vida, da presença real de Jesus no Santíssimo Sacramento, então o bispo se via obrigado a fazer o mesmo. Seu único desejo desde então seria atrair o mundo ao Coração Ardente de Jesus no Santíssimo Sacramento.
Esta é uma história bonita cujo final não nos agrada tanto. Não nos agrada que, no final, o soldado comunista terminasse matando a menina, esmagando sua cabeça a golpes de fuzil. E a razão última de nosso desgosto está em que nós somos de corpo e alma, matéria e espírito: a preponderância que geralmente tem em todos nós o corpo sobre o espírito nos pede um final mais ditoso, mais alegre, mais ao estilo de “Hollywood”, não com a tristeza da morte da protagonista, esta desconhecida menina chinesa.
O que acontece é que, por causa deste apego que temos às coisas deste mundo, valorizamos mais o continuar nele, a qualquer preço, do que a glória que esta menina adquiriu com seu martírio. Nossa corporeidade humana nos cega, e não nos damos conta que precisamente a parte mais bela da história é o seu final, é a dádiva da palma do martírio, que Deus doou à alma desta menina chinesa, a qual é uma privilegiada, uma eleita do Senhor.

Publicado em http://congregacionobispoaloishudal.blogspot.com/.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Breve história do aristotelismo cristão - III

Boécio ensinando, numa iluminura medieval: o último dos romanos e o primeiro dos escolásticos

Nos primeiros séculos de existência do cristianismo não se sabia ao certo que visão de mundo este abraçaria: a aristotélica ou a platônica. Na visão aristotélica de mundo predomina a confiança na razão, a admiração pela natureza, a sensação de estar em casa neste mundo. Já a visão platônica, tem como traços característicos uma desconfiança da natureza, da humanidade e das coisas sensíveis e um apelo a um mundo extramundano.
Foi Santo Agostinho, o maior dos Padres e doutores da Igreja, quem deu a orientação predominantemente platônica (mais especificamente, neoplatônica) ao cristianismo nascente, influenciado, sem dúvida, pelas incertezas de sua época, onde reinava o caos das movimentações dos bárbaros, já presentes num Império Romano desagregado e em escombros.
A importância do pensamento de Agostinho nos sete séculos seguintes nunca será suficientemente medida: depois da Sagrada Escritura, ele era “a” autoridade. Sua obra A Cidade de Deus (só superada pelas Confissões e pela Bíblia) deu o tom do pensamento ocidental. Foi Agostinho quem estabeleceu a opção do cristianismo pela visão platônica do mundo em detrimento da visão aristotélica; isto aconteceu, provavelmente, porque não houve até ali alguém capaz de “batizar Aristóteles”, ou seja, ninguém havia conseguido fazer uma síntese da doutrina cristã com as noções aristotélicas, ao contrário do que havia conseguido fazer o santo Doutor de Hipona com o pensamento de Platão.
Depois de Agostinho, apenas Boécio e Cassiodoro são dignos de nota no campo da filosofia entre os séculos VI e X. Boécio foi de uma importância ímpar: foi ele que traduziu para o latim todas as obras de Aristóteles que o Ocidente conheceu nos séculos seguintes, além de obras de Platão e outros pensadores gregos, além de nos deixar uma original obra-prima, o De consolatione philosophiae. Já Cassiodoro tentou junto ao papa a criação de uma universidade em Roma; as contingências histórias, entretanto, não o permitiram. Mas ele teve o grande mérito de recolher as obras de Boécio e de muitos pensadores greco-romanos e retirar-se definitivamente para Vivarium, uma pequena vila no interior da Itália onde, ao utilizar uma abadia local para conservar as obras recolhidas, deu origem à tradição dos monges-copistas.
Enquanto isso, em Bizâncio, um cristianismo ortodoxo e extremamente passional rejeitou todo contato com a filosofia grega que não fora imediatamente posta em acordo com a doutrina cristã. Perdidos em batalhas teológicas, os cristãos do Oriente praticamente expulsaram a filosofia grega para terras além cristãs; assim, o tesouro filosófico grego e, em especial, aristotélico, foi herdado pelos persas e, posteriormente, pelos muçulmanos.
Apenas no século XI é que estas obras voltaram ao poder dos ocidentais através dos sábios de Toledo – salvo o que foi dito no primeiro artigo a respeito das obras aristotélicas do Monte Saint-Michel. No mundo islâmico, a filosofia aristotélica havia influenciado muito pouco da civilização muçulmana. Exceto por uma pequena elite intelectual, o pensamento filosófico não se estendeu nem se tornou tão importante no Islã quanto ao que aconteceria dentro em pouco com o cristianismo. Foram os filósofos cristãos que puderam dar o grande passo de “aristotelizar” a forma mentis do mundo de então, não sem a influência e as bênçãos da Igreja católica.

A Oração do Senhor IV – Venha o Vosso Reino

Do Tratado sobre a oração do Senhor, de São Cipriano, bispo e mártir
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A oração continua. Venha a nós o vosso reino. Pedimos que o reino de Deus se torne presente a nós, da mesma forma que solicitamos seja em nós santificado o seu nome. Porque, quando é que Deus não reina? Ou quando para ele começou o reino que sempre existiu e nunca deixará de ser? Pedimos a vinda de vosso reino, prometido por Deus e adquirido pelo sangue e paixão de Cristo, a fim de que nós que fomos, outrora, escravos do mundo, reinemos depois, conforme ele nos anunciou, pelo Cristo glorioso, ao dizer: Vinde, benditos de meu Pai, tomai posse do reino que vos está preparado desde a origem do mundo (Mt 25,34).
Pode-se igualmente, irmãos diletíssimos, entender que o próprio Cristo é o reino de Deus, cuja vinda pedimos todos os dias. Estamos ansiosos por ver esta vinda o mais depressa possível. Sendo ele a ressurreição, pois nele ressurgimos, assim também se pode pensar que ele é o reino de Deus, pois nele reinaremos. Pedimos, é claro, o reino de Deus, o reino celeste, já que há um reino terrestre. Mas quem já renunciou ao mundo está acima desse reino terrestre e de suas honrarias.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Elevação à Santíssima Trindade


Ó meu Deus, Trindade que adoro,
ajudai-me a esquecer-me inteiramente
para me fixar em Vós, imóvel e pacífica
como se minha alma já estivesse na eternidade.

Que nada possa perturbar minha paz
nem arrancar-me de Vós, ó meu imutável,
mas que cada minuto me transporte
mais profundamente em vosso mistério!

Pacificai minha alma
e fazei dela O vosso céu,
vossa morada querida
E o lugar de vosso repouso.

Que eu jamais vos deixe só,
mas fique inteiramente convosco,
com minha fé sempre desperta,
em atitude de adoração
e completamente entregue à vossa ação criadora.

Meu Cristo amado, crucificado por amor,
quanto desejaria ser uma esposa para o vosso coração,
quanto desejaria cobrir-vos de glória,
quanto desejaria amar-vos até morrer!

Mas sinto minha impotência e, por isso, peço-vos:
revesti-me de Vós, identificai minha alma
com todos os movimentos da vossa,
submergi-me, penetrai-me, substituí-vos a mim
a fim de que minha vida não seja senão uma irradiação da Vossa.

Vinde a mim como adorador,
como reparador, como salvador.
Ó Verbo eterno, Palavra de meu Deus,
quero passar minha vida a escutar-vos,
quero ser inteiramente dócil para aprender tudo de Vós.

Através de todas as noites, de todas as fraquezas,
quero ter sempre o olhos fitos em Vós
e ficar sob vossa grande luz.
Ó meu astro querido, fascinai-me a fim de que
eu não possa mais sair de vossos raios.

Ó fogo devorador, Espírito de amor,
vinde a mim para que em minha alma
se opere uma encarnação do Verbo.
Que eu seja para Ele, além disso,
uma humanidade na qual Ele renove o seu mistério.

E Vós, ó Pai, olhai para esta vossa pobre criatura,
cobri-a com vossa sombra,
vede nela somente o vosso Bem-Amado
no qual pusestes todas as vossas complacências.

(Bem-aventurada Elisabeth da Trindade)

Festa de Nossa Senhora do Carmo

A piedade popular, abençoada pela Igreja, sempre deu à Santa Virgem os mais diversos títulos. O título de Nossa Senhora do Monte Carmelo, que hoje celebramos festivamente, foi dado à Virgem quando ela apareceu a São Simão Stock no século XII. Nesta época, a Terra Santa estava nas mãos dos cristãos, que recentemente a tinham libertado do jugo dos infiéis muçulmanos com as Cruzadas, e alguns eremitas foram para lá para estabelecerem-se como contemplativos. Simão Stock, um dos primeiros filhos da ordem dos carmelitas, na manhã de 16 de julho de 1251, estava a orar à Virgem com uma oração que ele mesmo tinha composto para ela, Flos Carmeli:

Flos Carmeli, Vitis florigera,
Splendor Cœli, Virgo puerpera, Singularis;
Mater mitis, sed viri nescia.
Carmelitis da privilegia, Stella maris!
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Flor do Carmelo, vide florífera,
Esplendor do Céu, Virgem incomparável, Singular!
Ó Mãe amável e sempre virgem,
dai aos Carmelitas os privilégios de vossa proteção, Estrela do Mar!

Enquanto Simão rezava, apareceu-lhe a Virgem Santíssima. Eis o seu próprio relato: “A Virgem me apareceu em grande cortejo, e, tendo na mão o hábito da Ordem, disse-me: ‘Recebe, diletíssimo filho, este Escapulário de tua Ordem como sinal distintivo e a marca do privilégio que eu obtive para ti e para todos os filhos do Carmelo; é um sinal de salvação, uma salvaguarda nos perigos, aliança de paz e de uma proteção sempiterna. Quem morrer revestido com ele será preservado do fogo eterno’”.
Desde então, a Ordem Carmelita cresceu e se espalhou por todo a Europa, visto que os sarracenos haviam tomado dos cristãos os Lugares Santos já desde a época de Simão. Hoje, os carmelitas estão espalhados por todo o mundo e deram inumeráveis e grandes santos para a Igreja, entre os quais se destacam Santa Teresa de Ávila, São João da Cruz, Santa Teresinha do Menino Jesus e, mais recentemente, a Santa Teresa Benedita da Cruz (Edith Stein) e a Bem-aventurada Elisabeth da Trindade.

domingo, 12 de julho de 2009

Consumindo sua vida - D. Fulton Sheen

Apresentamos a vocês que acompanham o Veni Creator Spiritus, essa interessante palestra, em três partes, de D. Fulton Sheen, ex-bispo de Rochester nos Estados Unidos, grande comunicador e orador. Autor de mais de 60 livros, inumeráveis artigos, ele teve grande sucesso na televisão americana durante as décadas de 50-70, num programa chamado "Life Is Worth Living".

Anunciar a filiação divina, eis a missão! - XV Domingo Comum


No texto da Carta aos Efésios desse XV Domingo Comum, S. Paulo nos diz que por Cristo nós ouvimos a palavra da verdade, o evangelho que nos salva.(cf. Ef 1,13a). O conteúdo dessa palavra da verdade o próprio Paulo apresenta-nos nessa mesma leitura: Deus nos predestinou a sermos seus filhos por meio do seu Filho Jesus (cf. Ef 1,1-5). Em Cristo e somente por Ele temos acesso à vida divina. Toda a humanidade é chamada a participar dessa vida, e o caminho é Cristo que nos redimiu do pecado, fazendo-nos santos e irrepreensíveis (cf. Ef 1,1-5). E o penhor dessa santidade é o Seu Santo Espírito derramado em nossos corações (cf. Ef 1,13b). É essa a finalidade da revelação divina, do projeto de Deus para a humanidade: tornar-nos participantes de sua vida divina, que já começa aqui nesse mundo a partir do nosso Batismo. É esse o Evangelho que apresenta ao homem o sentido de sua existência: vivermos em Deus.
Essa palavra da verdade anunciada por Cristo precisa ser proclamada ao mundo. Por isso, hoje, o Senhor envia os doze em missão (cf. Mc 6,7). O Senhor solicita que nada levem, além do estritamente essencial (cf. Mc 6,7-8). É porque o anúncio se faz urgente, não há tempo a perder. É preciso convencer o mundo à Boa-Nova, para que, assim, todos participem da vida em Deus.
É essa a missão de Igreja e de cada um de nós. É uma tarefa incômoda porque, assim como o profeta Amós contrariava as estruturas viciadas do coração humano de sua época (cf. Am 7, 12-15), anunciar o Evangelho será sempre o desafio de propor um estilo de vida diferente, a vida nova dos filhos de Deus.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Breve história do aristotelismo cristão - II

Platão aponta para cima, Aristóteles para baixo: modos diferentes de conceber o mundo
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ARISTÓTELES

Neste artigo, voltaremos um pouco em nossa história sobre a filosofia aristotélica no mundo cristão para olharmos a figura de Aristóteles.
Aristóteles nasceu em Estagira, na Macedônia, em 384 a.C. Seu pai, Nicômaco, era médico e freqüentador da corte do rei Amintas II, pai de Filipe II. Provavelmente foi a profissão do pai, a medicina, que desde cedo orientou o espírito do jovem Aristóteles para as ciências naturais. Aos 16 ou 17 ele chegou a Atenas para estudar na Academia de Platão e ficou por lá durante vinte anos, até a morte de seu mestre, em 347.
Saindo de Atenas, Aristóteles passou quatro anos em Assos e Mitilene, onde realizou grande parte de suas pesquisas biológicas. Em 343, ele foi chamado por Filipe II para ser o preceptor de Alexandre, cargo que exerceu até 336, quando Alexandre herdou o trono da Macedônia. Aristóteles voltou, então, a Atenas, onde fundou o Liceu, uma escola como a Academia platônica, mas que se distinguia pelo estudo privilegiado das ciências naturais.
Aristóteles possuía muitas convergências e outras tantas divergências doutrinárias com mestre Platão, tanto umas como as outras bastante marcantes. Eles concordavam, essencialmente, na inteligibilidade do mundo e na capacidade da razão humana de achar a estrutura real das coisas; divergiam, porém, significativamente, quanto ao modo de ver este mundo: Aristóteles o via como uma realidade em si mesmo, sendo a natureza capaz de oferecer as respostas para as perguntas dos homens, uma visão positivamente empírica, baseada nos sentidos; seu mestre, todavia, ao olhar o mundo, via apenas a projeção imperfeita de um mundo perfeito, que estaria além dos sentidos: o mundo das ideias. Rubenstein resume esta divergência dos filósofos quanto a visão do mundo de uma maneira interessante. Diz ele: “Enquanto Platão ouvia, através do ruído da imperfeição e da ilusão, a música imortal dos deuses, Aristóteles percebia ritmos e melodias ordeiros dentro da mesma cacofonia aparente” (RUBENSTEIN, p. 39).
Toda a filosofia natural – o principal interesse de Aristóteles – girava (tanto quanto isso possa parecer paradoxal) em torno de sua metafísica. Aristóteles, como já dito, achava o mundo dotado de sentido. Este sentido podia ser captado pela razão através dos sentidos que nos dão o conhecimento das coisas pelas suas causas. As causas, para Aristóteles, são aquelas quatro clássicas: formal, material, eficiente (ou motora) e final. É o conhecimento destas causas que permite o conhecimento de cada objeto analisado pelo sujeito. Assim, o universo, para o Filósofo, é finalisticamente ordenado. Ele também admite a existência de um Deus, não pessoal como no cristianismo, mas uma “Causa primeira”, co-eterna ao mundo, cuja função é inspirar a “atualização” do mundo, dando movimento e mudança a todas as coisas, mas não sendo nem movido nem mudado; consciente, mas não providente, perfeitamente autônomo, pensa somente em si mesmo. A visão aristotélica de Deus será uma das maiores dificuldades para conciliá-lo com a doutrina cristã de um Deus Criador e Providente.
Quando Aristóteles morreu, em 322 a.C., sua biblioteca foi confiada a seu discípulo e grande amigo Teofrasto. Posteriormente, as obras aristotélicas passaram para Neleu, que as guardou em sua Adega, onde ficaram por quase dois séculos. Essas obras foram achadas perto do século I, a.C. e ficaram aos cuidados de Andrônico de Rhodes, que as catalogou e levou para Roma, centro da cultura mundial na época. Depois disso, o grosso da obra de Aristóteles perdeu-se novamente por quase dois séculos.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Obrigado, Dom Henrique!

Publicamos esta pequena e comovente nota de agradecimento feita por um membro da comunidade de Nossa Senhora do Livramento, em nome dela, ao seu pastor, dom Henrique Soares, agora bispo auxiliar de Aracajú, na edição desta quinzena de O Semeador, o jornal da Arquidiocese de Maceió. Ela expressa o reconhecimento e o agradecimento pelo dom que nos foi dado por tantos anos e que, agora, o Senhor decidiu oferecer como dom ao rebanho de Deus em Aracajú. Mas não ficamos sozinhos: na fé, o Senhor - o seu nome é Fidelidade! - cuidará de nós, como cuidou através de D. Henrique durante esses anos.

Nossa pequena comunidade do Livramento se tornou grande. Agigantou-se com o sim de um homem e a renúncia de si mesmo. Dia após dia, viu-se cumprir a vontade e testemunhou-se a fidelidade de Deus. Não com palavras apenas, mas com gestos concretos e um amor incondicional, nosso pai Henrique, consolidou esta comunidade, alicerçada no próprio Cristo. Seu sim paulatino e resoluto, forjou nossa comunidade e a tornou forte e madura na fé. Foram tantas aulas, tantos encontros, conselhos, direções e, acima de tudo, o exemplo que nos estimula continuamente a abraçar o caminho da Cruz. Aprendemos muito e, na fé, abraçamos os desígnios de Deus que, na Sua Sabedoria, não desampara aqueles que a Ele se confiam. Foram dias memoráveis de amizade construída na fé e no amor. Neste caminho, reconhecemos o Cristo, no rosto terno e paterno do nosso querido Pe. Henrique. No seu coração de pai, todos tiveram espaço, funcionários, coral, membros de grupo de oração, catequizandos, alunos do Instituto de Teologia e acólitos. A Igreja Nossa Senhora do Livramento, tantas vezes chamada por Pe. Henrique “pérola do meu sacerdócio” eleva o olhar a Deus agradecida e admirada por Sua fidelidade. À D. Henrique, bispo auxiliar de Aracaju, agradecemos o zelo e o cuidado pelos que o Senhor o confiou à frente da Reitoria. Rezamos pelo seu ministério, na certeza de que Deus, o Bom Pastor, o ajudará a apascentar este novo rebanho confiado. Obrigado Pe. Henrique, D. Henrique! Unidos em Cristo permaneceremos todos os dias!

A Oração do Senhor III – Santificado seja o vosso nome

Do Tratado sobre a oração do Senhor, de São Cipriano, bispo e mártir
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Quanta indulgência do Senhor, quanta consideração por nós e quanto riqueza de bondade em querer que realizássemos nossa oração, na presença de Deus, chamando-o de Pai, e que, da mesma forma que Cristo é Filho de Deus, também nós recebemos o nome de filhos de Deus. Nenhum de nós ousaria chamá-lo de Pai na oração, se ele próprio não nos permitisse orar assim. Irmãos diletíssimos, cumpre-nos ter sempre em mente e saber que, quando damos a Deus o nome de Pai, temos de agir como Filhos: como a nossa alegria está em Deus Pai, também se encontre sua alegria em nós.
Vivamos quais templos de Deus, para que se veja que em nós habita o Senhor. Não seja a nossa ação indigna do Espírito, pois se já começamos a ser espirituais e celestes, pensemos e façamos somente coisas celestes e espirituais, conforme disse o próprio Senhor Deus: Àqueles que me glorificam, eu os glorificarei e àqueles que me desprezam, os desprezarei (1Sm 2,30). Também o santo Apóstolo escreveu em uma epístola: Não vos possuís, pois fostes comprados por algo preço. Glorificai e levai a Deus em vosso corpo (1Cor 6,19).
Em seguida dizemos: Santificado seja o vosso nome, não que desejemos ser Deus santificado por nossas orações, mas que peçamos ao Senhor seja seu nome santificado em nós. Aliás, por quem seria Deus santificado, ele que santifica? Mas já que disse: Sede santos porque eu sou santo (Lv 20,26; 1Pd 1,16), pedimos e rogamos que nós, santificados pelo batismo perseveremos no que começamos a ser. Cada dia pedimos o mesmo. A santificação cotidiana é necessária para nós pois, cada dia, falhamos e temos de purificar nossos delitos por assídua santificação.
O Apóstolo descreve qual seja a santificação que, pela condescendência de Deus nos é dada: Nem fornicadores nem idólatras, adúlteros, nem efeminados, sodomitas, nem ladrões nem fraudulentos, nem ébrios, maldizentes, nem usurpadores alcançarão o reino de Deus. Na verdade fostes tudo isto, mas fostes lavados, fostes justificados, santificados, em nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de nosso Deus (1Cor 6,9-11). Diz-nos santificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de nosso Deus. Oramos para que esta santificação permaneça em nós. Se o Senhor e nosso juiz advertiu aquele que curara e vivificara de não mais pecar, para que não lhe adviesse coisa pior, fazemos este pedido por contínuas orações, suplicamos dia e noite a fim de que, por sua proteção, nos seja guardada a santificação vivificante que procede da graça de Deus.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Cristianismo e Marxismo não se coadunam

O texto a seguir é de autoria de Dom Estevão Bettencourt, Osb, publicado na revista “Pergunte e Responderemos”, nº197, Ano 1976, p. 187 . Nele, Dom Estevão apresenta a impossibilidade de conciliação entre Cristianismo e Marxismo. Segundo ele, quando os expoentes deste último apresentam-se como simpatizantes da fé, não significa que sejam crentes. Na realidade, a fé cristã para eles trata-se apenas de mais um instrumento para a revolução ou ascensão de idelogia marxista. Embora se trate de um texto antigo, continua sendo atual, pois hoje não faltam ideologias "esquerdistas" à moda marxista infiltrando-se nas estruturas eclesiais com as mesmas intenções. Lembremos sempre que é somente à luz de Cristo que as transformações no coração humano acontecem, e que qualquer ideologia com fundamentos marxistas são sempre imanentistas e secularistas, contrárias e inimigas, portanto, da fé cristã.

Verdade é que nos últimos anos alguns pensadores marxistas ocidentais (mesmos lideres de partidos comunistas na França, na Itália, na Espanha...) têm feito pronunciamentos que parecem valorizar de novo a fé. Dizem que um cristão, conservando sua fé, pode participar da luta de classes revolucionária; pode até encontrar na sua fé uma motivação e o estímulo para essa luta de classes; em nome do Evangelho e do Cristianismo é que o cristão faria a revolução social.
Parece que vários daqueles que assim falam estão iludidos, ignorando o que sejam propriamente marxismo e Cristianismo. Falam simploriamente porque ouviram falar ou porque a tendência a conciliar tudo se tornou um pouco “moda”.
Outros que defendem a tese a cima, defendem-na conscientemente. Não tencionam, porém, valorizar a fé como tal, pelo conteúdo intrínseco e as verdades que ela propõe, mas valorizam a fé na medida em que esta possa ser um fator político ou propulsivo em favor da revolução. Embora a fé fique sempre sendo uma grande ilusão para tais marxistas, eles julgam que a fé apresentada de certa maneira ou manipulada pode ter uma força revolucionária e pode ser um instrumental que acarrete vantagens para a ascensão do Partido Comunista. Em suma, julgam que também o homem “religioso” pode ser um colaborador na edificação do socialismo marxista, e é isto que lhes interessa. Nenhum marxista pode aceitar a hipótese de se tornar ele mesmo um homem religioso ou de considerar a fé como um valor em si, que mereça ser promovido como tal. Mesmo aqueles que se mostram mais chegados ao Cristianismo ou afirmam que o Cristianismo pode oferecer algo ao marxismo, como Garaudy e Bloch, ficam firmes no seu ateísmo. Disto se depreende que a fé, devidamente manipulada, pode fornecer subsídios à revolução, mas o marxismo não abandona seu ateísmo, nem o pode sem se autodestruir, fica sendo radicalmente ateu.
Ademais o marxismo, além de ser uma doutrina materialista e uma prática revolucionária, cria também uma atmosfera imanentista e secularista; quem a respira, corre grave perigo de, cedo ou tarde, perder a fé. É na observação deste fato que está a raiz das preocupações da Igreja quando vê que alguns de seus filhos pretendem aderir ao marxismo, levados não raro por motivos nobres, como sejam amor aos pobres e a aspiração de uma sociedade mas justa e amiga. Tais Cristãos dificilmente conservarão sua fé, e sem fé, não conseguirão realizar suas nobres aspirações, pois, se os homens não superam seu inato egoísmo por amor a Deus, também não o superarão por amor aos irmãos.
Nos princípios da fé cristã, elaborados pela doutrina social da Igreja, os discípulos de Cristo encontram as luzes e forças necessárias para dissipar situações iníquas e preparar nova sociedade, em quem o verdadeiro amor a Deus e aos homens transformará a face da terra. Os cristãos são assim incitados a descobrir e utilizar suas potencialidades contidas na doutrina de sua fé, com as quais se poderão aproximar melhor daquilo que o marxismo jamais conseguirá atingir.

Caritas in veritate

Caríssimos, já está disponível no site do Vaticano a nova Encíclica do Santo Padre Bento XVI, Caritas in Veritate. Mais adiante faremos alguns comentários sobre ela. A Carta pode ser encontrada em http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate_po.html .

Missa de despedida de Dom Henrique Soares na Igreja do Livramento




Com exclusividade para o Veni Creator Spiritus, algumas fotos da Missa celebrada por Dom Henrique Soares da Costa na Igreja do Livramento em Maceió, na qual ele foi Reitor por 16 anos. Os nossos agradecimentos a André Luiz e Miguel, que gentilmente nos cederam estas imagens.

terça-feira, 7 de julho de 2009

A Noite


Texto de um Autor Desconhecido


A natureza tem seus segredos e seus caprichos. A noite é cruel. Há noites em que o colchão se torna terrivelmente incômodo. Há noites em que o travesseiro se torna um instrumento de tortura. Há noites em que o corpo não encontra a posição adequada. Há noites em que os olhos teimam em não se fechar. Há noites em que os pensamentos voam... voam e não encontram um lugar seguro para pousar. Nessa hora, só resta se render e falar: você venceu, eu me entrego...
A noite é tempo de silêncio. A noite é momento de diálogo: não tanto com os outros, mas conosco mesmo. Muitas vezes, a noite é incômoda.
O que nos tira o sono...?
Algumas vezes, a noite é o espelho da vida e, em outras vezes, é o inverso dela.
Quando chega a noite, calam-se as vozes do cotidiano frenético. O único fundo é a lua emoldurada pelo cintilar das estrelas. Então, os corações se abrem em preciosas confidências, os namorados sussurram frases que ditas de dia não teriam a mesma poesia. Os amigos falam de aventuras secretas, de projetos futuros, de sonhos impossíveis; encontram momentos propícios para se recolherem e restaurar as energias para o dia seguinte. Há ainda aqueles que vêem na noite um momento propício para se encontrar com Deus. É a força do silêncio da noite. A noite também tem seus mistérios. Alias, a noite é um mistério. O escuro nos impede de ver claramente as coisas. À noite, tudo parece vulto, tudo parece sombra. No escuro, não conseguimos ver exatamente “quem é” e “o que é”. E quando não se vê claramente as coisas... surge o medo. A lua assume muito bem essa dimensão misteriosa da noite.
A noite continua revelando os seus mistérios. Por mais paradoxal que seja, a noite é luz. A noite realça a pessoa, porque todo o resto é penumbra.
A noite é o espaço das estrelas: de dia, elas são ofuscadas; mas, à noite, elas brilham.
À noite é sempre mais difícil de caminhar: há riscos de se perder pelo caminho, há riscos de se desviar. Há tanto lugar para se tramar coisas... e grande número das más ações humanas são pensadas no calar da noite. Mas a noite é também esperança do amanhã. Cada dia que nasce, é sempre de uma noite passada. O anoitecer já é semente do amanhecer.
A noite é lugar de esperanças e de sonhos...

domingo, 5 de julho de 2009

"Um profeta só não é estimado em sua pátria" - XIV Domingo Comum

De muitos modos e maneiras Deus nos falou a nós, que somos seu povo escolhido, por meio de seus santos e profetas. Hoje, porém, Ele nos fala em seu Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo. E isso nos mostra a Sagrada Escritura. Fazendo-nos conhecê-Lo na história de nossa salvação, se nos revelando e, assim, nos mostrando e manifestando Sua Imensa misericórdia, Deus Pai, em Cristo Jesus, nos mostra quem somos e nos dá seu próprio Filho como modelo de vida. Pois foi dito: "Ora, é para isto que fostes chamados. Também Cristo padeceu por vós, deixando-vos exemplo para que sigais os seus passos." (1Pd 2,21). No entanto, não é fácil sermos imitadores de Cristo. E nós sabemos como ele pagou o preço da verdade e da Justiça. Sabemos o que por ele foi anunciado e em que consistiu sua vida e missão: unicamente que se fizesse a vontade do Pai: "seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu" (Mt 6,10). E Cristo, obediente ao Pai anuncia o reino de Deus no Seu Espírito Santo, dando testemunho d’Aquele q o enviou pregando seu santo Evangelho.
Hoje Cristo prega em sua própria pátria. Nesta se encontram pessoas que o conhecem enquanto o filho de um carpinteiro e de uma mulher de sua região; o conhecem como simples cidadão. Eles não enxergam que quem está no meio deles é Deus no Seu Filho pelo poder de Seu Espírito Santo. Isso porque têm os olhos ofuscados pela mesma rebeldia e pelo pecado que outrora ofuscaram os olhos dos os antigos. (cf. Ez 2,3). Suas maldades lhes fecharam os olhos do coração e da fé! No entanto, ficam admirados e perplexos com tamanha sabedoria na qual é manifestado o poder de Deus. E Cristo não hesitou em pregar, mesmo admirado com a desconfiança daquele povo de testa dura e de coração insensível (cf. Ez 2,4) para o qual foi enviado. E por causa da dureza de seus corações e de sua falta de fé eles na aceitaram Cristo com eles. Mas o anúncio foi feito. E o salmista diz: "Ó povo, até quando tereis o coração endurecido, no amor das vaidades e na busca da mentira?" (Sl 4,3)
Irmãos, de muitos modos e maneiras também somos assaltados pelo mal, a começar pela nossa concupiscência. No entanto, quase que entregues às mãos da morte não caiamos, como aquele povo de cabeça dura e indomável, no mesmo erro. Mas, busquemos sempre a Deus no Seu Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, pela ação do Espírito Santo. No mais, se como criaturas frágeis sucumbirmos ao pecado e, assim mergulharmos na morte, recorramos as pressas à vida pela graça de Deus. E tendo-nos sido perdoados nossos pecados, que nos impede de ver Deus, corramos ao encontro de Deus novamente. Dessa forma nossos olhos, da fé e do coração, já não estarão ofuscados, mas reconhecerá Deus Emmanuel – Deus conosco. É nós reconheceremos que não só um profeta nos veio visitar, mas Deus verdadeiro de Deus Verdadeiro.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Festa de São Tomé


São Tomé era um dos doze apóstolos de Jesus. Segundo uma tradição, ele evangelizou os povos da Índia. A Igreja celebra a sua festa desde o século VI.
Na Primeira Leitura (Ef 2,19-22), a Palavra de Deus nos fala do fundamento sobre o qual está edificada a nossa fé. Esse fundamento são próprio Jesus (cf. 1Cor 3,11) e os apóstolos. Essa fé tem reunido os homens de todos os tempos, como “santos e membros da família de Deus” (Ef 2,19), que é a Igreja Una, Santa e Católica.
O Santo Evangelho (Jo 20,24-29) nos relata a falta de fé de Tomé, que, mesmo fazendo parte do grupo do Mestre, não acreditou que Ele tivesse aparecido aos outros apóstolos. Assim. Tomé duvida, exige provas. Essa dúvida também é a nossa dúvida. Essas provas também nós as exigimos. Mas quando o Senhor apareceu aos onze novamente, diante do corpo chagado e machucado de Jesus, Tomé faz a sua grande profissão de fé no Cristo ressuscitado, reconhecendo-o como Senhor e Deus: “Meu Senhor e meu Deus” (Jo 20,28). Essa é a fé pascal da Igreja! Porém, a advertência do Mestre doeu no seu coração de discípulo: “Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram!” (Jo 20,29) – como é possível exigir provas de tão infinito e fidedigno amor? Ter fé é justamente acreditar, é pular no escuro, é nada sentir, é nada ver, mas somente acreditar.
Na celebração da festa desse santo apóstolo, somos convidados a erguer a construção da nossa vida e da nossa fé em “Cristo Jesus a pedra angular” (Ef 2,20). Somos convidados a acreditar no Senhor sem exigir provas, porque aquela dúvida de São Tomé não somente curou a sua falta de fé, mas também curou a nossa, como nos diz São Gregório Magno, numa de suas homilias: “A clemência do alto agiu de modo admirável a fim de que, ao apalpar as chagas do corpo do mestre, aquele discípulo que duvidara curasse as chagas da nossa falta de fé” (Liturgia das Horas Vol. III, 3 de Julho, Ofício das Leituras da Festa de São Tomé, Apóstolo).

Breve história do aristotelismo cristão - I

Caros leitores, a partir de hoje, apresentaremos uma série de artigos sobre o pensamento filosófico cristão que se desenvolveu a partir do aristotelismo. Neles, veremos como as ideias aristotélicas foram paulatinamente entrando em contato e transformando o modo cristão de compreender o mundo e de explicar a realidade e a teologia. É a partir de Aristóteles que São Tomás de Aquino desenvolverá a sua doutrina chamada mais tarde de tomismo ou aristotelismo cristão e que será considerada a “filosofia oficial” da Igreja Católica. O ponto de referência para estes textos é, sobretudo, o livro de Richard Rubenstein, Herdeiros de Aristóteles (Rocco, 2005).

A REDESCOBERTA DAS OBRAS DE ARISTÓTELES NO OCIDENTE LATINO

Neste primeiro artigo, como que à guisa de prólogo, veremos o como ocorreu a redescoberta das obras perdidas de Aristóteles pelos medievais latinos.
A Espanha foi a terra de fronteira entre o islamismo e o cristianismo, duas civilizações parecidas em muitos aspectos, mas igualmente diferentes em pontos significativos. O vendaval muçulmano que varreu o Oriente Médio, o Norte da África e a Península Ibérica, todos anteriormente cristãos, deteve-se às portas dos Pirineus, na Batalha de Poitiers, em 732, quando os exércitos de Carlos Martel obrigaram os muçulmanos a parar sua investida. Assim, séculos de dominação islâmica na Península Ibérica e a presença de cristãos, judeus e islâmicos formaram um interessante cadinho cultural.
A atual historiografia medieval frequentemente ressalta a superioridade da civilização muçulmana que os letrados cristãos – o clero – encontraram nas cidades recém-conquistadas pelas cruzadas ibéricas do século XI. No entanto, a nosso ver, essa insistência carece de fundamento. Antes de tudo porque, como foi dito, não eram apenas os muçulmanos que estavam na região; havia uma mistura cultural entre as diversas etnias e religiões. Ainda assim, como mostrou o historiador e medievalista francês Sylvain Gouguenheim em sua obra Aristote au Mont Saint-Michel (Aristóteles no Monte Sant-Michel), a maior parte das traduções árabes da antiga sabedoria greco-romana, foi feita não por muçulmanos, mas por cristãos-árabes (considerando-se a diferença entre árabes e muçulmanos) que, inclusive, eram os únicos que estavam capacitados tecnicamente para tal trabalho. Assim, não é correto dizer que “o Islã nos legou Aristóteles e os clássicos gregos; se fôssemos depender da Igreja todo este conhecimento estaria perdido”, como muitos dizem nos meios acadêmicos. De fato, este trabalho em grande parte foi feito por cristãos que habitavam no império muçulmano dominante.
Além disso, sabe-se que os livros de Aristóteles já estavam traduzidos para o latim antes das descobertas das obras em árabe, pelos monges do Monte Saint-Michel na França. Richard Rubenstein, em sua obra Herdeiros de Aristóteles afirma: “Se o espírito de investigação na Europa já não houvesse começado a florescer, talvez a verdadeira importância dessa descoberta não tivesse sido reconhecida” (p. 29). Sabe-se, todavia, que foi esse espírito que levou tanto ao trabalho em Saint-Michel quanto ao desenvolvimento do pensamento ocidental com base na filosofia aristotélica, coisa que, provavelmente, teria acontecido mesmo sem a descoberta de suas obras em língua árabe. Dessa forma, não devemos tanto aos árabes quanto nos faz crer a semi-onipresente ideologia multiculturalista.
No próximo artigo, nos voltaremos para a figura de Aristóteles, suas principais ideias e convergências com seu mestre, Platão.

A abadia de Saint-Michel