quinta-feira, 29 de abril de 2010

Mãe das graças, caçula do gênero humano

“E para a Virgem, você ora para a Virgem Santa?” – “Francamente!” – “É, dizemos isso, mas será que você reza para ela como se deve rezar, você reza bem? Ela é nossa mãe, já se sabe. Ela é a mãe do gênero humano, a nova Eva. Mas é também sua filha. O mundo antigo, o mundo doloroso, o mundo anterior à graça a embalou por muito tempo em seu coração desolado – por séculos e séculos –, à espera obscura e incompreensível de uma virgo genitrix... Durante séculos e séculos, ele protegeu com suas velhas mãos carregadas de crimes, com suas mãos pesadas, aquela menina maravilhosa cujo nome nem sabia. Uma menina, a rainha dos anjos! E ela continua sendo, não se esqueça! A Idade Média havia compreendido muito bem isso, a Idade Média compreendeu tudo. (...) Pense só! O Verbo se fez carne, e os jornalistas daqueles tempos não souberam de nada! (...) A santidade de Deus! A simplicidade de Deus, a espantosa simplicidade de Deus, que danou o orgulho dos anjos! Sim, o demônio deve ter tentado olhá-la de frente, e a imensa tocha flamejante no cimo da criação mergulhou de uma só vez na noite. O povo judeu tinha a cabeça dura, sem o quê teria compreendido que um Deus feito homem, realizando a perfeição do homem, estava arriscado a passar desapercebido, e que era preciso abrir o olho. E veja, justamente este episódio da entrada triunfal em Jerusalém, eu o acho tão belo! Nosso Senhor se dignou gozar do triunfo como de todo o resto, como da morte, não recusou nenhuma de nossas alegrias, somente recusou o pecado. Mas a sua morte, puxa! caprichou nela, nada lhe falta. Ao passo que seu triunfo é triunfo para as crianças, não acha? Uma gravura de Espiral, com o filhote de asno, os ramos verdes e a gente do campo que bate palmas. Uma gentil paródia, um tanto irônica, das magnificências imperiais. Nosso Senhor parece sorrir. – Nosso Senhor sorri com freqüência; e nos diz: ‘Não levem esse tipo de coisas demasiado a sério, mas afinal existem triunfos legítimos; não é proibido triunfar: quando Joana d’Arc entrar em Orleans sob as flores e as flâmulas, com seu belo traje de tecido de ouro, não quero que ela possa pensar que estivesse agindo mal. Uma vez que vocês gostam tanto disso, meus pobres filhos, eu santifiquei o seu triunfo, abençoei-o, assim como abençoei o vinho de seus vinhedos. ’ E quanto aos milagres, veja bem, é a mesma coisa. Ele não faz mais milagres do que o necessário. Os milagres são imagens do livro, as imagens bonitas! Mas agora observe muito bem, criança: a Virgem não teve triunfo nem milagres. Seu filho não permitiu que a glória humana a tocasse, ainda que com a mais tênue extremidade de sua grande asa selvagem. Ninguém viveu, sofreu e morreu tão simplesmente e numa ignorância tão profunda da própria dignidade, de uma dignidade que no entanto a coloca acima dos anjos. Pois afinal ela havia nascido sem pecado, que espantosa solidão! Uma fronte tão pura, tão límpida, tão pura e tão límpida, que ela nem podia ver nela a própria imagem, feita apenas para a alegria do Pai – ah, a solidão sagrada! Os antigos demônios familiares dos homens, senhores e servidores reunidos, os terríveis patriarcas que guiaram os primeiros passos de Adão na soleira do mundo maldito, a astúcia e o orgulho, você percebe que estão olhando de longe essa criatura milagrosa colocada fora de seu alcance, invulnerável e desarmada. Por certo, nossa pobre espécie não vale muito, mas infância sempre emociona suas entranhas, a ignorância dos pequenos faz com que ela baixe os olhos – olhos que conhecem o bem e o mal, olhos que viram tantas coisas! Mas é apenas ignorância, no final das contas. A Virgem era a inocência. Você tem consciência daquilo que somos para ela, nós, a raça humana? Ah, naturalmente, ela detesta o pecado, mas afinal não tem qualquer experiência dele, aquela experiência que não faltou aos maiores santos, até mesmo ao santo de Assis, por mais seráfico que seja. O olhar da Virgem é o único olhar verdadeiramente infantil, o único olhar de criança que jamais foi erguido sobre nossa vergonha e nossa infelicidade. Sim,meu filho, para bem rezar a ela, é preciso sentir sobre si esse olhar que não é inteiramente o olhar da indulgência – pois a indulgência não existe sem alguma experiência amarga – mas o da terna compaixão, da surpresa dolorosa, de não se sabe ainda qual sentimento, inconcebível, inexprimível, que a torna mais jovem do que o pecado, mais jovem do que a raça da qual provém, e que ela, apesar de mãe pela graça, mãe das graças, é a caçula do gênero humano”.


Geroge Bernanos, Diário de um pároco de aldeia. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2000, p. 209-211.