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III - A LIBERTAÇÃO, TEMA CRISTÃO
1. Considerada em si mesma, a aspiração pela libertação não pode deixar de encontrar eco amplo e fraterno no coração e no espírito dos cristãos.
2. Assim, em consonância com esta aspiração, nasceu o movimento teológico e pastoral conhecido pelo nome de "teologia da libertação": num primeiro momento nos países da América Latina, marcados pela herança religiosa e cultural do cristianismo; em seguida, nas outras regiões do Terceiro Mundo, bem como em alguns ambientes dos países industrializados.
3. A expressão "teologia da libertação" designa primeiramente uma preocupação privilegiada, geradora de compromisso pela justiça, voltada para os pobres e para as vítimas da opressão. A partir desta abordagem podem-se distinguir diversas maneiras, freqüentemente inconciliáveis, de conceber a significação cristã da pobreza e o tipo de compromisso pela justiça que ela exige. Como todo movimento de idéias, as "teologias da libertação" englobam posições teológicas diversificadas; suas fronteiras doutrinais são mal definidas.
4. A aspiração pela libertação, como o próprio termo indica, refere-se a um tema fundamental do Antigo e do Novo Testamento. Por isso, tomada em si mesma a expressão "teologia da libertação" é uma expressão perfeitamente válida: designa, neste caso, uma reflexão teológica centrada no tema bíblico da libertação e da liberdade e na urgência de suas incidências práticas. A convergência entre a aspiração pela libertação e as teologias da libertação não é, pois, fortuita. O significado desta convergência não pode ser compreendido corretamente senão à luz da especificidade da mensagem da Revelação, autenticamente interpretada pelo Magistério da Igreja.
IV - FUNDAMENTOS BÍBLICOS
1. Uma teologia da libertação corretamente entendida constitui, pois, um convite aos teólogos a aprofundar certos temas bíblicos essenciais, com o espírito atento às graves e urgentes questões que a atual aspiração pela libertação e os movimentos de libertação, ecomais ou menos fiel dessa aspiração, põem à Igreja. Não é possível esquecer, por um só instante, as situações de dramática miséria de onde brota a interpelação assim lançada aos teólogos.
2. A experiência radical da liberdade cristã constitui aqui o primeiro ponto de referência. Cristo, nosso Libertador, libertou-nos do pecado e da escravidão da lei e da carne, que constitui a marca da condição do homem pecador. É, pois, a vida nova da graça, fruto da justificação, que nos torna livres. Isto significa que a mais radical das escravidões é a escravidão do pecado. As demais formas de escravidão encontram, pois, na escravidão do pecado, a sua raiz mais profunda. É por isso que liberdade, no pleno sentido cristão, caracterizada pela vida no Espírito, não pode ser confundida com a licença de ceder aos desejos da carne. Ela é vida nova na caridade.
3. As "teologias da libertação" recorrem amplamente à narração do Livro do Êxodo. Este constitui, de fato, o acontecimento fundamental na formação do povo eleito. É preciso não perder de vista, contudo, que a significação específica do acontecimento provém de sua finalidade, já que esta libertação está orientada para a constituição do povo de Deus e para o culto da Aliança celebrado no Monte Sinai.
Por isso, a libertação do Êxodo não pode ser reduzida a uma libertação de natureza prevalentemente ou exclusivamente política. É significativo, de resto, que o termo libertação seja às vezes substituído na Sagrada Escritura pelo outro, muito semelhante, de redenção.
4. Jamais se apagará da memória de Israel o episódio que originou o Êxodo. Ele é o ponto de referência quando, após a destruição de Jerusalém e o exílio de Babilônia, o povo eleito vive na esperança de uma nova libertação e, para além dessa, na expectativa de uma libertação definitiva. Nessa experiência, Deus é reconhecido como o Libertador. Ele estabelecerá com seu povo uma nova Aliança, marcada pelo dom do seu Espírito e pela conversão dos corações.
5. As múltiplas angústias e desgraças experimentadas pelo homem fiel ao Deus da Aliança servem de tema para diversos salmos: lamentações, pedidos de socorro, ações de graças referem-se à salvação religiosa e à libertação. Nesse contexto, a desgraça não se identifica pura e simplesmente com uma condição social de miséria ou com a sorte de quem sofre opressão política. Ela inclui também a hostilidade dos inimigos, a injustiça, a morte e a culpa. Os salmos nos remetem a uma experiência religiosa essencial: somente de Deus se espera a salvação e o remédio. Deus, e não o homem, tem o poder de mudar as situações de angústia. Assim, os "pobres do Senhor" vivem numa dependência total e confiante na providência amorosa de Deus. Aliás, durante toda a travessia do deserto, o Senhor nunca deixou de prover à libertação e à purificação espirituais de seu povo.
6. No Antigo Testamento, os profetas, desde Amós, não cessam de recordar, com particular vigor, as exigências da justiça e da solidariedade e de formular um juízo extremamente severo sobre os ricos que oprimem o pobre. Tomam a defesa da viúva e do órfão. Proferem ameaças contra os poderosos: a acumulação de iniquidade acarretará necessariamente terríveis castigos. Isto porque não se concebe a fidelidade à Aliança sem a prática da justiça. A justiça em relação a Deus e a justiça em relação aos homens são inseparáveis. Deus é o defensor e o libertador do pobre.
7. Semelhantes exigências encontram-se também no Novo Testamento. Ali são até radicalizadas, como demonstra o discurso das Bem-aventuranças. Conversão e renovação devem operar-se no mais íntimo do coração.
8. Já anunciado no Antigo Testamento, o mandamento do amor fraterno estendido a todos os homens constitui agora a suprema norma da vida social. Não há discriminações ou limites que possam opor-se ao reconhecimento de todo e qualquer homem como o próximo.
9. A pobreza por amor ao Reino é exaltada. E na figura do pobre somos levados a reconhecer a imagem e como que a presença misteriosa do Filho de Deus que se fez pobre por nosso amor. Este é o fundamento das inexauríveis palavras de Jesus sobre o Juízo, em Mt 25,31-46. Nosso Senhor é solidário com toda desgraça; toda desgraça leva a marca de sua Presença
10. Contemporaneamente, as exigências da justiça e da misericórdia, já enunciadas no Antigo Testamento, são aprofundadas a ponto de revestirem no Novo Testamento uma significação nova. Aqueles que sofrem ou são perseguidos são identificados com Cristo. A perfeição que Jesus exige de seus discípulos (Mt 5,18) consiste no dever de serem misericordiosos "como vosso Pai é misericordioso" (Lc 6,36).
11. É à luz da vocação cristã ao amor fraterno e à misericórdia que os ricos são severamente admoestados para que cumpram o seu dever. São Paulo, perante as desordens na Igreja de Corinto, acentua vigorosamente a ligação que existe entre tomar parte no sacramento do amor e repartir o pão com o irmão que se encontra em necessidade.
12. A Revelação do Novo Testamento nos ensina que o pecado é o mal mais profundo, que atinge o homem no cerne da sua personalidade. A primeira libertação, ponto de referência para as demais, é a do pecado.
13. Se o Novo Testamento se abstém de exigir previamente, como pressuposto para a conquista desta liberdade, uma mudança da condição política e social, é, sem dúvida, para salientar o caráter radical da emancipação trazida por Cristo, oferecida a todos os homens, sejam eles livres ou escravos politicamente. Contudo, a Carta a Filêmon mostra que a nova liberdade, trazida pela graça de Cristo, deve necessariamente ter repercussão também no campo social.
14. Não se pode, portanto, restringir o campo do pecado, cujo primeiro efeito é o de introduzir a desordem na relação entre o homem e Deus, àquilo que se denomina "pecado social". Na verdade, só uma adequada doutrina sobre o pecado permitirá insistir sobre a gravidade de seus efeitos sociais.
15. Não se pode tampouco situar o mal unicamente ou principalmente nas "estruturas" econômicas, sociais ou políticas, como se todos os outros males derivassem destas estruturas como de sua causa: neste caso, a criação de um "homem novo" dependeria da instauração de estruturas econômicas e sócio-políticas diferentes. Há, certamente, estruturas iníquas e geradoras de iniqüidade, e é preciso ter a coragem de mudá-las. Fruto da ação do homem, as estruturas boas ou más são conseqüências antes de serem causas. A raiz do mal se encontra, pois, nas pessoas livres e responsáveis, que devem ser convertidas pela graça de Jesus Cristo, para viver e agir como criaturas novas, no amor ao próximo, na busca eficaz da justiça, do autodomínio e do exercício das virtudes.
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