sábado, 25 de outubro de 2008

As bem-aventuranças – I


Do Livro Jesus de Nazaré, de Bento XVI


As bem-aventuranças não raramente são apresentadas como a alternativa do Novo Testamento a respeito do Decálogo, por assim dizer a mais elevada ética dos cristãos ante os mandamentos do Antigo Testamento. Com tal concepção distorce-se totalmente o sentido destas palavras de Jesus. Jesus sempre pressupôs como evidente a validade do Decálogo (ver, por exemplo, Mc 10,19; Lc 16,17); no Sermão da Montanha são assumidos e aprofundados os mandamentos da segunda tábua, mas não abolidos (Mt 5,21-48); isso contradiria, ainda que diametralmente, a proposição fundamental que este diálogo sobre o Decálogo pressupõe: “Não penseis que vim revogar a lei ou os profetas; não vim revogá-la, mas completá-la. Porque, em verdade vos digo: até que passem o céu e a terra, não passará um só jota ou um só ápice da lei, sem que tudo se cumpra” (Mt 5,17s). (...) Jesus não pensa em anular o Decálogo; pelo contrário: Ele o reforça.

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Mas, então, o que são as bem-aventuranças? Elas se inserem, antes de mais, numa longa tradição da mensagem do Antigo Testamento, tal como a encontramos, por exemplo, no salmo 1 e no texto paralelo de Jeremias (Jr 17,7s): bem-aventurado o homem que confia no Senhor... São palavras que traduzem uma promessa, mas que servem ao mesmo tempo para o discernimento dos espíritos e assim se tornam instruções que indicam o caminho da sabedoria. A disposição que S. Lucas dá ao Sermão da Montanha elucida a direção especial das bem-aventuranças: “Erguendo os olhos para os seus discípulos...”. Cada um dos elementos das bem-aventuranças resulta do olhar para os discípulos; descrevem o estado dos discípulos de Jesus: são pobres, famintos, que choram, odiados e perseguidos (Lc 6,20ss). Trata-se não só de qualificações práticas, mas também teológicas dos discípulos – daqueles que passaram a seguir Jesus e se tornaram sua família.
Mas a situação empírica de ameaça, na qual Jesus vê os seus, torna-se promessa quando o olhar sobre eles for iluminado a partir do Pai. Na perspectiva da comunidade dos discípulos de Jesus, as bem-aventuranças são um paradoxo – os critérios mundanos são subvertidos, desde que as coisas sejam vistas na perspectiva correta, nomeadamente a partir do valor de Deus, que é diferente dos valores do mundo. Justamente os que são considerados pelo mundo como pobres e como perdidos são verdadeiramente os que são felizes, os que são abençoados e podem, em todos os seus sofrimentos, alegrar-se e rejubilar-se. As bem-aventuranças são promessas nas quais resplandece a nova imagem do mundo e do homem, que Jesus inaugura, a “inversão dos valores”. São promessas escatológicas, mas não devem ser entendidas como se a felicidade anunciada fosse adiada para um futuro distante e sem fim ou exclusivamente para o além. Quando o homem começa a ver e a viver a partir de Deus, quando ele se encontra na comunidade caminhando com Jesus, então ele vive com base em novos critérios, e já se torna presente algo do “eschaton”, do que ainda há de vir. De Jesus vem a felicidade para o meio da aflição.

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