sexta-feira, 21 de novembro de 2008

As bem-aventuranças – VII


Do Livro Jesus de Nazaré, de Bento XVI


Saltemos por um instante a segunda bem-aventurança do Evangelho de S. Mateus e avancemos para a terceira, que está intimamente ligada com a primeira: Felizes os simples (mansos), porque terão a terra como herança (5,5). A tradução alemã (Einheitsübersetzung) da Sagrada Escritura traduziu aqui a palavra grega que está subjacente, praus: que não emprega nenhuma violência. É um estreitamento da palavra grega, que leva em si uma rica carga na tradição. A bem-aventurança é praticamente a citação de um salmo: Os mansos (simples) herdarão a terra (Sl 36(37),11). A expressão os mansos – simples é na Bíblia grega a tradução da palavra hebraica anawin, com que os pobres de Deus são caracterizados, dos quais falamos a respeito da primeira bem-aventurança. Assim, a primeira e a terceira bem-aventuranças transitam consideravelmente uma para a outra. A terceira elucida ainda um aspecto essencial do que se entende com a pobreza vivida a partir de Deus e para Deus.
Mas o espectro alarga-se ainda quando consideramos outros textos, nos quais a mesma expressão ocorre. Em Números, diz-se: Moisés era um homem muito humilde, mais do que nenhum homem sobre a face da terra (Nm 12,3). Quem não haveria aqui de pensar na palavra de Jesus: Tomai o meu jugo sobre vós e aprendei de Mim que sou manso e humilde de coração (Mt 11,29)? Cristo é o novo, o verdadeiro Moisés (este é o pensamento contínuo do Sermão da Montanha) – n’Ele torna-se presente aquela pura bondade que é própria de quem é maior, do soberano.
Mais profundamente seremos ainda conduzidos se considerarmos outros elementos de ligação entre o Antigo e o Novo Testamento, em cujo centro se encontra outra vez a palavra praus: – manso – humilde. No profeta Zacarias encontra-se a seguinte promessa de salvação: Exulta de alegria, filha de Sião! Enche-te de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem ter contigo, justo e salvador, humilde, montado num jumento, no potrinho de uma jumenta. Ele exterminará os carros de guerra... o arco de guerra será quebrado. E ele proclamará a paz entre as nações; o seu império estender-se-á de um mar a outro mar... (Zc 9,9s). Aqui é anunciado um rei pobre, um rei que não domina por meio do poder político e militar. O seu ser íntimo é a humildade, a mansidão perante Deus e perante os homens. Este seu ser, pelo qual ele está em contraste com os grandes reis do mundo, torna-se visível no fato de ele vir montado num jumento – a cavalgadura dos pobres, que é o oposto dos carros de guerra, que ele põe em desuso. Ele é o rei da paz – e o é a partir do poder de Deus, não a partir do seu próprio poder.
Mas a isso se acrescenta mais um elemento: o seu império é universal, envolve a terra. De um mar a outro mar – a imagem do globo terrestre envolvido por água em toda a sua volta está aqui subjacente e deixa antever a extensão mundial do seu domínio. Assim, pode com razão dizer Karl Elliger que, para nós, se torna visível de um modo notavelmente claro a figura daquele que agora realmente trouxe a paz para todo o mundo, que está acima de toda a razão, na medida em que ele em obediência filial renunciou a todo o uso de violência e sofre até ser pelo Pai liberto do sofrimento, e que edifica o seu reino simplesmente através da palavra da paz... Só então compreendemos toda a amplitude do relato do Domingo de Ramos, compreendemos o que significa, quando S. Lucas (cf. 19,30) (e de um modo semelhante S. João) nos conta que Jesus manda que os discípulos lhe arranjem uma jumenta em vez do seu potro: Isso aconteceu para que assim se cumprisse o que fora dito pelos profetas: dizei à filha de Sião: eis que o teu rei vem ter contigo. Ele é manso e vem montado sobre uma jumenta (Mt 21,4s; Jo 12,15).
Infelizmente, a tradução alemã tornou irreconhecível esta relação, na medida em que para praus utiliza para cada caso outras palavras. No vasto arco destes textos – de Números, capítulo 12, passando por Zacarias, capítulo 9, até as bem-aventuranças e o relato do Domingo de Ramos –, torna-se reconhecível a visão de Jesus como rei da paz, de um mar a outro mar. Por meio da sua obediência, chama-nos para esta paz, implanta-a em nós. A palavra manso – humilde pertence, por um lado, ao vocabulário do povo de Deus, ao Israel que em Cristo envolve todo o mundo, mas é ao mesmo tempo uma palavra real, que nos revela a essência do novo Reino de Cristo. Neste sentido podemos dizer que é uma palavra tanto cristológica como eclesiológica; em todo caso, chama-nos para o seguimento daquele cuja entrada em Jerusalém montado sobre uma jumenta permite tornar visível toda a essência do seu império.

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