segunda-feira, 3 de novembro de 2008

As bem-aventuranças - IV


Do Livro Jesus de Nazaré, de Bento XVI


Consideremos agora mais de perto cada um dos membros da série das bem-aventuranças. Encontramos logo em primeiro lugar a palavra extremamente enigmática acerca dos “pobres em espírito”. Esta palavra aparece nos documentos de Qumran, nos quais está a autocaracterização daquela comunidade. Os seus membros também se autodenominam “os pobres da graça”, “os pobres da tua redenção” ou simplesmente “os pobres”. A comunidade de Qumran exprime com esta autocaracterização a sua consciência de ser o verdadeiro Israel; ela se agarra assim na realidade a tradições que estão profundamente enraizadas na fé de Israel. No tempo da dominação da Judéia pela Babilônia, 90% dos judeus deviam ser contados entre os pobres; por causa da política dos impostos seguida pelos persas, depois do exílio ocorreu de novo uma dramática situação de pobreza. A antiga visão segundo a qual tudo corre bem para o justo, sendo a pobreza então conseqüência de uma má vida (a relação de causalidade entre ação e condição), deixou de se manter. Agora Israel se reconhece precisamente na sua pobreza como próximo de Deus, reconhece que justamente os pobres na sua humildade estão próximos do coração de Deus em oposição à soberba dos ricos, que apenas confiam em si mesmos.
Em muitos salmos exprime-se a piedade dos pobres, que assim cresceu; eles se reconhecem como o verdadeiro Israel. Na piedade destes salmos, na profunda orientação para a bondade de Deus, na humana bondade e humildade, que assim se modela, na procura esperançosa do amor redentor de Deus desenvolveu-se aquela abertura dos corações que abriu a porta para Cristo. Maria e José, Simeão e Ana, Zacarias e Isabel, os pastores de Belém, os doze chamados pelo Senhor para o mais íntimo discipulado: todos pertencem a estes círculos que se distinguem dos fariseus e dos saduceus, mas também, apesar de muita proximidade espiritual, de Qumran. São estes nos quais começa o Novo Testamento, que se sabe totalmente em união com a mais pura e mais madura fé de Israel.
Aqui, em surdina, amadureceu também aquela atitude perante Deus que S. Paulo desenvolveu na sua Teologia da justificação: são homens que não brilham com as suas capacidades. Não se apresentam diante de Deus como uma espécie de parceiros de negócios em pé de igualdade, que elevam os seus atos à pretensão de uma recompensa correspondente. São homens que se sabem também interiormente pobres, homens que amam, que simplesmente querem deixar-se oferecer por Deus e precisamente assim viver em interior concordância com o ser e a palavra de Deus. A palavra de Sta. Teresa de Lisieux – ela estaria perante Deus de mãos vazias e mantê-las-ia abertas para Ele – descreve o espírito destes pobres de Deus: eles vêm com mãos vazias, não com mãos que agarram e seguram, mas com mãos que se abrem e se oferecem e assim estão prontas para os dons que Deus oferece.

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