sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

O descanso em Deus

O descanso em Deus

Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas coisas aos vossos filhos, quanto mais vosso Pai celestial dará o Espírito Santo aos que lho pedirem, diz Cristo no Evangelho (Lc 11,13). Deus é nosso Pai, um Pai extremoso que nos ama mais do que todos os pais e mães juntos. Ama-nos a tal ponto que entregou-nos o seu Filho Unigênito, para que, resgatados, pudéssemos ser amados com o mesmo amor com que Ele ama desde a eternidade a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, que se fez carne por nós. Deus ama-nos em Cristo, porque vê em nós um decalque, uma réplica, digamos assim, de Cristo. Ou a gozosa possibilidade de o sermos.
Que observamos em Jesus, sob o ângulo do nosso tema? Uma frase que pronunciou, com todo o ar de um testamento, pode encaminhar estas reflexões: Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz (Jo 14,27).
Deixa-nos a sua paz. De onde lhe vinha? Da sua permanente visão do Pai e da sua união com Ele: Eu e o Pai somos Um (Jo 10,30). Daí que dissesse: Aquele que me enviou está comigo; Ele não me deixou sozinho, porque faço sempre o que é do seu agrado (Jo 8,29). E no fim da sua vida terrena poderá dizer ao Pai: Completei a obra que me destes a fazer (Jo 17,4). Esse foi o sentido da sua vida entre nós, o elemento unificador de todos os seus trabalhos e vicissitudes. Não foi uma paz que lhe tivesse vindo de fora, pois a nada se poupou nem nada lhe foi poupado do que cansa um ser humano.

Não teve “paz” do ponto de vista físico. Entregou-se a longas caminhadas no cumprimento da sua missão, passou fome e sede na sua vida pública, não teve um teto fixo onde reclinar com sossego a cabeça, e no fim da vida terrena enfrentou sem lamentos as chicotadas que lhe dilaceraram o corpo, o peso da cruz na subida do Calvário, os cravos com que o crucificaram.
Também não teve “paz” do ponto de vista psíquico: sofreu com a oposição dos que vinha salvar, com a ingratidão, com a traição, com a tergiversação das suas palavras e gestos. De que o acusaram? De comilão e bebedor, de suspeito de sonegar impostos, de mentiroso e embusteiro, de blasfemo, de aliado de Satanás... Tiraram-lhe não só a roupa do corpo, mas a honra, prendendo-o como a um ladrão, cobrindo-o de zombarias, fazendo-o morrer como se fosse um malfeitor, que isso eram os dois companheiros de suplício.
E, no entanto, pôde deixar-nos em herança a paz. Por quê? Porque a tinha no mais íntimo de si mesmo. Jamais perdeu a visão de seu Pai Deus, o colóquio filial com Ele, a alegria de estar cumprindo o desígnio divino. E se chegou ao cansaço e ao tédio no Horto das Oliveiras, a ponto de suar sangue, encontrou nessa Vontade do Pai a razão de ser, o motivo para a aceitação do sacrifício: Não se faça, todavia, a minha vontade, mas sim a tua (Lc 22,42).
E após longas horas de diálogo com Ele, saiu sereno e forte ao encontro dos que o vinham prender, mais preocupado com a sorte dos Apóstolos do que com a sua, curando a orelha de um soldado decepada por Pedro, e, mais adiante, consolando as filhas de Jerusalém: Não choreis por mim, mas por vós... (Lc 23,28). O seu próprio silêncio diante de Herodes, e depois no átrio de Pilatos ante a avalanche de acusações, denota uma assombrosa paz de espírito. Cristo não foi para a morte como um vencido mergulhado na exaustão, mas como vencedor. Havia nEle um sentido para tudo, e esse sentido guardou-o da angústia nos derradeiros instantes.
(...)
Não havia nEle o confronto entre a carne e o espírito, a razão e a sensibilidade, o dever e o comodismo e a arbitrariedade, o pecado e a virtude, o sadio amor próprio e o amor ao próximo. Havia a unidade da paz que resulta da existência de um sentido para a vida. Em nós, essa unidade quebrou-se a partir da queda original, e nos conflitos a que dá lugar encontra-se uma das maiores causas das nossas ansiedades e angústias. Cabe-nos recompor esses despedaçamentos, não só por meios humanos, sem dúvida convenientes, mas sobretudo pelo trato assíduo com Cristo: Ele é a nossa paz, diz São Paulo (Ef 2,14).
Não nos consta que Jesus tivesse ao longo da sua existência um estilo de vida como o de João Batista, que se vestia de pelos de camelo e se alimentava de gafanhotos e mel silvestre no deserto. Pelo contrário, teve uma infância e adolescência normais no aconchego da família de Nazaré.
Amou a natureza, a vida ao ar livre. Virá a falar da liberdade com que os pássaros voam, da maravilha dos lírios. Preferirá por cenário dos seus ensinamentos a montanha, o campo, o lago de Genesaré, não a sinagoga, onde também ensinava muitas vezes aos sábados, mas instituiu a Eucaristia e o sacerdócio na sala de uma casa de família. Nada que lembrasse a reclusão dos nossos escritórios e fábricas, que acabam por asfixiar e cansar.
Gostava de subir a um monte para orar, ia às praças, observava com interesse como cantava um grupo de meninos, cruzava as águas do Mar de Tiberíades, onde ensinou os Apóstolos a não ter medo, se não tirassem os olhos dEle.
Nos trinta anos de vida oculta, não se entregou apenas ao trabalho e à oração, a ler as Escrituras, que cita tantas vezes, mas esteve atento às realidades cotidianas. Foram tantas as coisas que reteve dos seus tempos de vida no lar! As aflições da dona de casa que perdeu uma moeda, os labores domésticos da elaboração do pão com um pouco de fermento, o crescimento das árvores a partir de uma semente minúscula, os cuidados do pastor com a ovelha tresmalhada, as construções que necessitam de alicerces sólidos... Era esse espírito de admiração contemplativa que nEle constituía um modo de louvar a obra criadora de seu Pai e em nós pode ser um meio de descansar vendo o dedo de Deus nas situações mais corriqueiras.
Jamais se preocupou com fazer boa figura, de ficar bem com os homens, de importar-se com o que pudessem pensar dEle os letrados dominados pela inveja e pelos juízos tortuosos. É para dar testemunho da verdade que nasci e vim ao mundo (Jo 18,37). Era isso o que lhe importava. E nada mais.
Pelo seu modo franco e cordial, atraiu as amizades, não só com os Apóstolos, a quem chamou amigos, mas com as criancinhas, a quem abraçou e abençoou na presença das mães; abriu-se ao convívio com os publicanos e pecadores, em ambientes distendidos como um banquete; manteve longas conversas com os que queriam conhecê-lo pessoalmente, como as que teve em sua casa com João e André, e com Nicodemos, membro do Sinédrio, que o visitou à noite para esclarecer as suas dúvidas, e que viria a cuidar do seu corpo morto como se cuida do de um velho amigo. Em Cristo, a amizade foi o alicerce humano sobre o qual construiu a sua Igreja e um dos meios que contribuíram para assegurar a fidelidade dos Apóstolos.
Entregue ao trabalho de dia e de noite, operando uma última conversão instantes antes de expirar, terá Cristo descansado? (...) se fez o que era do agrado do Pai – os dois eram um só –, não aceitou forçado, mas voluntariamente, a encarnação, a oposição e a morte na Cruz: tinha um único propósito, que era de amor, e o que se faz por amor não cansa. E se cansa, ama-se o cansaço, o que não é cansar-se.
Mas também não lhe foi alheio o descanso físico, além do sábado. Adormeceu ao atravessar as águas do Tiberíades ((...) permitiu-se uma “sesta” (...)). Depois de um dia exaustivo, que culminou com o milagre da multiplicação dos pães, retirou-se a um monte para descansar em diálogo com o Pai. Quando os seus discípulos regressaram da jornada em que estrearam a sua missão apostólica sem a presença do Mestre, convidou-os a repousar: Vinde à parte, para algum lugar ermo, e descansai um pouco (Mc 6,31). Se descansou, se convidou os discípulos a relaxar após as tensões que provoca algo que se faz pela primeira vez, não quererá que façamos o mesmo, depois de um trabalho intenso sob a pressão dos riscos e dos resultados? Poderia Ele contradizer-se e trabalhar cheio de pressa, sem parar, sem ter o suficiente descanso noturno que nEle era agradecimento tranquilo a Deus Pai?
E Cristo riu? Será que podemos imaginá-lo sério, sisudo, hirto, distante, se as crianças queriam aproximar-se dEle, se fez o seu primeiro milagre no ambiente festivo de umas bodas? E se revelou aos Apóstolos: Disse-vos estas coisas para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja completa (Jo 15,11)? Estar alegre e não rir? Se em Deus é um contrassenso, muito mais nAquele que, sendo perfeito Deus, é perfeito homem. Não é acidentalmente que o Livro dos Provérbios diz (8,31) que Deus [a Sabedoria] brincava sobre o globo da terra, achando as suas delícias em estar com os filhos dos homens. É só ver como brincam as crianças, como gritam e correm e riem e folgam umas com as outras.
E este pensamento sobre o mundo das crianças leva-nos a refletir sobre o que deve ser o mundo interior de um cristão: um mundo de alegria feliz, em que se brinca sob o olhar amoroso e vigilante de Deus Pai. (...)
As crianças não têm passado: logo se esquecem e se refazem de uma queda nos seus jogos, logo param de chorar depois de saírem mal de uma pequena briga, se os pais ao seu lado as beijam e consolam. Também não se preocupam com o futuro, que está nas mais do pai e da mãe, que sabem e lhe dão o que precisam, e, se alguma vez lhe dizem “não” ao que pedem, é porque lhe vão dar coisa melhor. Vivem sempre em presente, seguras, divertidas como que fazem naquele momento, sem inquietações, com a liberdade de movimentos de um “peixe em nenhuma rede”.
Temos de imitar as crianças: Se não vos transformardes e vos tornardes como criancinhas, não entrareis no Reino dos céus (Mt 18,3). Isto não é mimalhice nem utopia e irrealismo, mas confiança absoluta em que todas as coisas concorrem para o bem daqueles que amam a Deus (Rm 8,28), e, portanto, não há motivo nenhum para vivermos tensos, ansiosos, cansados, ou para nada fazermos por sair desses estados. Há situações difíceis na vida, sem dúvida, mas todas passam e, de uma maneira ou de outra, sempre se resolvem a nosso favor. Pode uma mulher esquecer-se daquele que amamenta? Não ter ternura pelo fruto de suas entranhas? E mesmo que ela o esquecesse, eu não te esqueceria nunca (Is 49,15).
Este é o motivo último para vivermos descontraídos, para nos repormos dos baques, e, por mais rugas que acumulemos na testa, sermos homens e mulheres joviais, otimistas, amantes do esporte, da leitura, da música, da natureza, do convívio com os amigos, das excursões e passeios de bicicleta. Tudo isso são ocasiões de encontrarmos e conversarmos com Deus, que nos vê e nos acompanha, “quer nos sentemos” para trabalhar com gosto, medida e paz, “quer nos levantemos” para nos distrair e descansar (cf. Sl 138). Afinal de contas, é a certeza do que diz o Salmo 22:

“O Senhor é meu pastor,
Nada me há de faltar.
Em verdes prados me faz descansar.
Conduz-me junto às águas refrescantes,
Restaura as forças da minha alma.
Por caminhos retos me conduz,
Por amor do seu nome”.

Por Emérico da Gama. In: Fernando Sarráis, Aprender a descansar, São Paulo, Quadrante, 2011, p. 76-83.

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