O TEMPO DA QUARESMA
Henrique Nogueira de Albuquerque
Assim como o Advento é o tempo de preparação para o Natal do Senhor, o tempo da Quaresma é o tempo de preparação para a Páscoa. Desta forma, os quarentas dias de penitência e busca de conversão que caracterizam este tempo quaresmal estão em função da celebração solene da Páscoa do Senhor.
O mistério Pascal – A Páscoa é o mistério por excelência do cristianismo e sua celebração é o ponto alto da vida da Igreja. A Páscoa celebra a Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor. No Antigo Testamento, a Páscoa era a festa judaica que fazia memória da libertação do povo hebreu do Egito (Ex 12,1-14). Foi no contexto de uma Ceia Pascal judaica que o Senhor Jesus instituiu a Eucaristia, antecipando sacramentalmente a sua entrega na Cruz (Lc 22,7-20). Assim, Jesus revela-se como o verdadeiro Cordeiro Pascal: é ele “que tira o pecado do mundo” (Jo 1,29), oferecendo-se no altar da Cruz e cujo sangue servirá para salvar o povo de Deus (cf. Hb 9,12). O sacrifício pascal de Cristo, realizado sacramentalmente na ceia pascal, é vivido cruentamente por Jesus no dia seguinte, no Calvário. Mas, no terceiro dia, o Pai O ressuscitará, enviando o seu Espírito divino para glorificar a humanidade de Jesus e derramando sobre nós, por meio do Filho, este mesmo Espírito que nos salva e diviniza (Jo 20,1-23).
A única salvação dos homens é o Cristo: Ele é o único Mediador entre Deus e os homens, o nosso Pontífice. E para entrar nessa mediação, para passarmos por esta Ponte até Deus, para sermos salvos, é preciso receber o Espírito de Cristo, o Espírito do Filho: é este Espírito que nos faz filhos no Filho e nos dá vida divina (cf. Rm 8,14-17). É pelo batismo que recebemos este Espírito, já que quando mergulhamos na água deixamos lá o homem velho, para que se erga o homem novo, vivificado, tornado à imagem do Filho (cf. Rm 6,3-4).
A Quaresma ontem e hoje – O tempo quaresmal surgiu, na Antiguidade, como o tempo em que os catecúmenos se preparavam com mais fervor para o batismo que iriam receber durante a solene Vigília Pascal. Ainda hoje, para os adultos que se preparam para o batismo, é no tempo da Quaresma que se executam gestos concretos para se preparar para receber o Sacramento batismal: há escrutínios, exorcismos e diversos outros ritos que o ajudam a tomar consciência daquilo que vai se realizar em breve em sua vida. Também as leituras do Evangelho durante os domingos da Quaresma ajudam muito os catecúmenos para a compreensão dos mistérios fundamentais de Cristo.
Acontece que também para os batizados a Quaresma é momento oportuno para a conversão e reavivamento da graça batismal recebida com vistas à solene renovação das promessas batismais durante a Vigília Pascal. Então, para a maioria dos cristãos, a Quaresma é um tempo de conversão e penitência através do qual o cristão pode se preparar dignamente para celebrar os santos mistérios pascais.
Tempo de conversão e combate aos inimigos da alma – A natureza humana decaída, marcada pelo pecado, é frágil e facilmente se inclina para o mal, que é o afastamento de Deus. Assim, o homem, mesmo batizado, tem de lutar continuamente para voltar para Deus, do qual se afasta pelo pecado. E como todos temos pecado, todos mais ou menos nos afastamos de Deus, temos necessidade de nos empenharmos nesta luta.
A Quaresma, tempo de conversão, é, portanto, tempo de luta, de combate espiritual (cf. Rm 13,11-14; Ef 6,10-18). Combate contra os três inimigos da alma: o diabo, o mundo e a carne.
O diabo. Segundo a Tradição cristã, o diabo (ou Satã, Satanás, Demônio) era o mais perfeito dos anjos criados por Deus. Por causa de seu orgulho de querer ser como Deus, afastou-se de seu Criador e levou consigo uma parte dos anjos. Ele vive no mundo espiritual tentando influenciar o homem para que este faça o mal, distanciando-se de Deus. Foi ele que tentou os primeiros seres humanos (cf. Gn 3,1-24) e fez com que estes pecassem; mas Jesus, que também se deixou ser tentado por ele, venceu-o e abriu o caminho para a vitória do homem sobre ele (cf. Mt 4,1-11).
O mundo. Na Escritura, especialmente em São João, o termo “mundo” possui três acepções: primeiro, o mundo como criação de Deus (cf. Jo 17,5), que é boa (cf. Gn 1,31). Depois, o mundo como a parte da humanidade que espera a conversão pela pregação dos apóstolos (cf. Jo 17,21). Finalmente, o mundo em oposição ao Cristo e à Igreja (cf. Jo 17,9), no mesmo sentido de “Anticristo”. É nesse sentido que o mundo é inimigo da alma, sobretudo a “opinião” do mundo quando é oposta à fé, como frequentemente acontece com a dita “opinião pública” tantas vezes guiada pelo “politicamente correto”.
A carne. O terceiro inimigo da alma é a carne, significando a fraqueza da condição humana, suas paixões, vícios, más inclinações. É a tendência interior para o afastamento de Deus, consequência do pecado original.
As armas espirituais – Para o combate espiritual quaresmal, a Igreja propõe os remédios evangélicos do jejum, da esmola e da oração (cf. Mt 6,1-18).
O jejum. O primeiro significado do jejum é religioso: ao abster-se de parte de seu alimento cotidiano, a pessoa que jejua sente em seu próprio corpo a fragilidade que é própria do homem e o faz compreender sua situação precária de criatura, dando a Deus a primazia de Criador e Sustentador de todas as coisas. Além disso, o jejum espontâneo nos faz solidários com os pobres que fazem o jejum obrigatório, pois não têm o que comer. Na Quarta-feira de Cinzas e na Sexta-feira Santa, o jejum de alimento é obrigatório; nos demais dias da Quaresma, é recomendado (especialmente nas sextas-feiras). O jejum pode ser não só de alimentos, mas dos sentidos: jejum de conversas, jejum de músicas, da televisão etc; sobretudo, jejum do pecado.
A esmola. Antes de tudo, a esmola é uma atitude espiritual, pois ao dar daquilo que é nosso (e não apenas do supérfluo) exercitamos nossa generosidade e combatemos a avareza dos bens materiais. Dar esmola não significa apenas dar dinheiro, mas deve ser entendida como caridade fraterna: dar de comer a quem tem fome, de beber a quem tem sede, vestir o nu, visitar o doente e o prisioneiro (cf. Mt 25,31-46), consolar aquele que sofre, aconselhar quem vai no mau caminho... enfim, qualquer gesto de caridade para com o próximo, tendo em mente a asserção do Apóstolo São Pedro: “O amor cobre uma multidão de pecados” (1Pd 4,8)
A oração. O melhor meio de se aproximar de Deus é através da oração. Não pode se converter, ou seja, voltar para Deus, aquele que não estabelece com Ele uma relação pessoal, amorosa e íntima, e isso só é possível no diálogo da oração. E a oração, antes de mais nada, consiste na escuta atenta da voz de Deus que ressoa em Sua Palavra. Daí a necessidade de uma oração feita com a Escritura nas mãos (que a Tradição chama de Lectio Divina, a leitura orante da Escritura), brotando de um encontro com o Senhor na Sua Palavra. Deveríamos ficar atentos nos Evangelhos dos Domingos da Quaresma e meditá-los profundamente; também a leitura do livro do Êxodo, ou de um dos quatro Evangelhos pode nos ajudar neste itinerário.
Esses três remédios devem ser usados juntos, jamais separados; assim nos diz São Pedro Crisólogo: “O que a oração pede, o jejum alcança e a misericórdia [esmola] recebe. Oração, misericórdia, jejum: três coisas que são uma só e se vivificam reciprocamente”.
Além dessas armas, também são úteis duas outras práticas: a leitura espiritual de algum livro que ajude a orar. Há diversos livros de espiritualidade existentes nas livrarias católicas. Devemos escolher aqueles que são mais tradicionais e reconhecidos pela Igreja, e que nos movam realmente ao recolhimento interior e à oração: nada especulativo nem social demais; mas também nada piegas demais.
Também devemos concentrar o combate quaresmal em um dos vários vícios que temos: escolher um de nossos “pecados de estimação”, aqueles nos quais sempre caímos, para combater durante este tempo. A tradição nos dá uma lista deles, os mais graves e que originam outros, por isso chamados de capitais (do latim caput, cabeça): gula, luxúria, avareza, ira, tristeza, preguiça, vaidade. Estes pecados nos afastam de Deus e devemos combatê-los para buscar a salvação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário