Do livro Os Padres da Igreja de A. Hamman
De todos os filósofos cristãos do século II, Justino é o mais célebre e o maior. É também o que toca mais profundamente o íntimo do nosso ser. Este leigo, este intelectual, inicia o diálogo com os judeus e com os pagãos. Sua vida foi um alonga busca da verdade. De sua obra, escrita com rudeza e sem arte, desprende-se um testemunho cujo preço os séculos só fizeram valorizar cada vez mais. O cristianismo para ele não é, antes de tudo, uma doutrina, porém uma pessoa: o Verbo encarnado e crucificado em Jesus.
Neste homem, que viveu há dezoito séculos, percebemos o eco de nossos anseios, de nossas objeções, de nossas certezas. Descobrimos nele uma abertura de alma, uma possibilidade de acolhimento, uma vontade de diálogo, que desarmam e seduzem. Se muitas de suas obras estão hoje perdidas, as que nos restam fornecem-nos o diário íntimo desse cristão, e são suficientes para nos revelar a sua vida, desde o seu nascimento e a sua formação, até o seu martírio.
Vida intelectual no século II
Na época de Justino, os filósofos conquistaram o direito de cidadania em Rima. Vitoriosa em seus exércitos, Roma permanece vassala da cultura e da fermentação religiosa do Oriente. Os mestres do pensamento vêm da Ásia para ensinar em Roma. Os romanos foram tomados de excessiva admiração pela filosofia grega e pelas religiões mistéricas. Roma absorvera os impérios; restava-lhe abrir suas portas às divindades do Panteão.
Cansados de uma religião sem poesia e sem alma, os romanos voltaram-se para os filósofos. A filosofia transformara-se numa escola espiritual de paz e de serenidade, e o filósofo num diretor de consciência, num mestre interior, num guia. O próprio imperador Marco Aurélio reveste-se da moral do estoicismo.
No momento em que Justino se converte, a Igreja se acha em plena fermentação. O homem vindo de fora, o pagão de Roma ou de Éfeso, encontrava certa dificuldade para discernir a Igreja de Cristo, em meio às inúmeras escolas que já proliferavam em torno dela. Os falsos profetas criavam comunidades que se opunham à grande Igreja. Como distinguir o bom grão do joio? O pagão daquela época, como o descrente de hoje, não podia deixar de ficar desnorteado no meio desse formigamento de seitas que reclamavam para si o Cristo.
O ambiente cristão
Dentro da Igreja, não se fazem jogadas. A tradição mal acaba de nascer. Justino pôde ver homens que haviam conhecido Pedro e Paulo. Em Éfeso certamente encontrou cristãos que haviam ouvido João, o Vidente. Cem anos separam-no da vida de Jesus: a mesma distância que separa a nossa geração da do duque de Caxias.
Justino ingressa num cristianismo jovem, de fé ardente e contagiosa, que procura formular sua doutrina. O pensamento de Justino revela sua própria história; ele argumenta tal como raciocina. Seus escritos defendem a fé que ele escolheu.
Duas coisas mudaram: na época de Justino, a Igreja atinge o público culto: filósofos e patrícios pedem o batismo e tomam o lugar dos estivadores e dos escravos. A expansão cristã provoca críticas e gracejos por parte dos escritores pagãos e acusações caluniosas da multidão. A tais oposições os cristãos respondem com a juventude de sua fé: “Nada de literatura. O que vale é a vida”, dizia Minúcio Félix. Justino faz-lhe eco: “Atos e não palavras”.
O Evangelho ia de vento em popa. Para detê-lo, os mundanos espalhavam boatos em que o “zé-povinho”, sempre crédulo, acreditava. Os cristãos eram acusados de adorar um deus com cabeça de asno, de se entregarem à devassidão e de participar dos festins de antropófagos. Filósofos e retóricos lançavam o descrédito sobre esses concorrentes incômodos. Não se deveria de chofre tachar de hostilidade a resistência ao Evangelho. A oposição no século II, como a de todos os períodos da história religiosa, provém de preconceitos, de opções prévias, de ignorância e de mal-entendidos que os escritores cristãos vão esforçar-se por afastar, a fim de estabelecer o diálogo entre a fé o pensamento, entre a Igreja e o mundo. Justino será o homem do diálogo. Uma de suas principais obras intitular-se-á Diálogo com o judeu Trifão.

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