quarta-feira, 16 de setembro de 2009

O eu, os outros eus e as coisas do mundo

A consciência plenamente desenvolvida – que é, antes de mais nada, autoconsciência – percebe a realidade a partir de três perspectivas distintas mas intimamente relacionadas: a primeira, a partir da própria consciência, da própria individualidade; depois, como consciência do que está fora de si, do mundo, da realidade (da qual o eu autoconsciente é parte integrante); e, finalmente, a partir da consciência do eu do outro, que é um meio-termo entre o eu e o mundo, sendo semelhante em sua relação com o eu próprio e diferente deste mesmo eu próprio em sua relação como o mundo.
A autoconsciência é o anelo mais profundo do homem. Os Antigos atestavam esta realidade quando, em busca da sabedoria que conduz à felicidade, se deparavam com este imperativo: “Scitote teipsum”, conhece-te a ti mesmo. Dentro dessa perspectiva, um filósofo como Agostinho apontava para a interioridade do homem como o local onde se buscava e se achava a Verdade. Assim, o homem sábio e, consequentemente, feliz, é aquele que entra em si buscando achar a unidade de sua consciência, a verdade sobre si próprio.
Naturalmente, mesmo tomando como basilar o conhecimento de si mesmo para a formação da consciência e posse da sabedoria, nem Agostinho nem os Antigos negavam a realidade de que o mundo criado ou o mundo existente proporcionavam o conhecimento da Verdade, meta de toda sabedoria, de toda filosofia; pelo contrário, tanto na tradição greco-romana quanto na tradição judaico-cristã, o conhecimento do mundo é uma necessidade em vista da própria compreensibilidade do eu, que não é isolado deste mundo. De fato, como conhecer o próprio eu sem levar em conta o mundo que me circunda, as circunstâncias que me são estranhas e que fazem parte da estrutura da realidade fora de mim? “Eu sou eu e minhas circunstâncias”, já dizia Ortega y Gasset, ou seja, a formação da autoconsciência humana não pode prescindir dos elementos de experiência que se apresentam à consciência, elementos que estão fincados na realidade e na substancialidade do mundo.
O movimento para fora do eu – que, como já ressaltado, acaba sendo entrada no próprio eu por outra via – que acontece quando nos abrimos para a realidade das coisas criadas nos faz deparar com outros eus, outras substâncias que são semelhantes à nossa substância e que constituem uma só substância, a substância humana, na qual podemos enxergar-nos nos outros como num espelho. De fato, quando olhamos para fora de nós mesmos e vemos o outro, é como se víssemos a nós mesmos refletidos. Mas ao mesmo tempo em que a natureza do outro é a minha mesma natureza, a comparação de nós mesmos com os outros nos faz perceber a irrepetibilidade de cada eu autoconsciente. É esta consciência da singularidade do outro que é a base da tão afamada e ao mesmo tempo vilipendiada dignidade humana, dignidade que é reconhecida no amadurecer da personalidade, na tomada de posse de uma autoconsciência que é fundamento e base da vida humana.

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