terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A identidade missionária do presbítero na Igreja - 2


2. Aspectos teológico-espirituais da missionariedade dos presbíteros

Não podemos considerar o aspecto missionário da teologia e da espiritualidade sacerdotal sem explicitar a relação com o mistério de Cristo. Como já destacamos no no 1, a Igreja encontra seu fundamento nas missões de Cristo e do Espírito Santo: assim, toda «missão» e a dimensão missionária da própria Igreja, intrínseca a sua natureza, se baseiam na participação da missão divina. O Senhor Jesus é, por antonomásia, o enviado do Pai. Com intensidade maior ou menor, todos os escritos neotestamentários dão esse testemunho.
No Evangelho de Lucas, Jesus apresenta a si mesmo como aquele que, consagrado com a unção do Espírito, foi enviado a anunciar a Boa Nova aos pobres (cf. Lc 4,18; Is 61,1-2). Nos três Evangelhos sinóticos, Jesus identifica a si mesmo com o filho amado que, na parábola dos vinhateiros homicidas, é enviado pelo senhor da vinha por último, depois dos servos (cf. Mc 12,1-12; Mt 21,33-46; Lc 20,9- 19); fala ainda em outros momentos de sua condição de enviado (cf. Mt 15,24). Em Paulo também aparece a idéia da missão de Cristo como enviado de Deus Pai (cf. Gl 4,4; Rm 8,3).
Mas é sobretudo nos textos joaninos que aparece, com maior frequência, a « missão » divina de Jesus. [4] 4 Ser « o enviado do Pai » pertence certamente à identidade de Jesus: Ele é aquele que o Pai consagrou e enviou ao mundo, e esse fato é expressão de sua irrepetível filiação divina (cf. Jo 10,36-38). Jesus levou a termo a Obra Salvífica, sempre, como enviado do Pai e como aquele que realiza as obras de quem o enviou, em obediência a sua vontade. Somente no cumprimento dessa vontade Jesus exerceu seu ministério de sacerdote, profeta e rei. Ao mesmo tempo é como enviado do Pai que ele, por sua vez, envia os discípulos. A missão, em todos os seus vários aspectos, tem seu fundamento na missão do Filho no mundo e na missão do Espírito Santo. [5]
Jesus é o enviado que, por sua vez, envia (cf. Jo 17,18). A «missionariedade » é, antes de mais nada, uma dimensão da vida e do ministério de Jesus e, por conseguinte, o é também da Igreja e de cada indivíduo cristão, de acordo com as exigências de sua vocação pessoal. Vemos como Jesus exerceu seu ministério salvífico, para o bem dos homens, nas dimensões do ensino, da santificação e do governo, intimamente ligadas; ou, em outros termos, mais propriamente bíblicos, enquanto profeta e revelador do Pai, enquanto sacerdote e enquanto Senhor, rei, pastor.
Embora Jesus, em sua proclamação do Reino e em sua função de revelador do Pai, tenha-se sentido especialmente enviado ao povo de Israel (cf. Mt 15,24; 10,5), não faltam diversos episódios em sua vida nos quais se manifesta o horizonte de universalidade de sua mensagem: Jesus não exclui os gentios da salvação, louva a fé de alguns deles, por exemplo a do centurião, e anuncia que os pagãos virão dos confins do mundo, para se sentar à mesa com os patriarcas de Israel (cf. Mt 8,10-12; Lc 7,9); igualmente, diz à mulher cananéia: « Mulher, grande é a tua fé! Seja feito como queres» (Mt 15,28; cf. Mc 7,29). Em continuidade com sua missão, Jesus ressuscitado envia seus discípulos a pregar o Evangelho a todas as nações, numa missão universal (cf. Jo 20,21-22; Mt 28,19-20; Mc 16,15; At 1,8). A revelação cristã se destina a todos os homens, sem distinções.
A revelação de Deus Pai, trazida por Jesus, baseia-se em sua união irrepetível com o Pai, em sua consciência filial; só a partir desta pode Jesus exercer sua função de revelador (cf. Mt 11,12-27; Lc 10,21-22; Jo 1,18; 14,6-9; 17,3.4.6). Dar a conhecer o Pai, com tudo o que esse conhecimento implica, é a finalidade última de todo o ensinamento de Jesus. Sua missão de revelador está tão arraigada no mistério de sua pessoa, que, mesmo na vida eterna, continuará sua revelação do Pai: «Eu lhes dei a conhecer o teu nome e lhes darei a conhecê-lo, a fim de que o amor com que me amaste esteja neles e eu neles» (Jo 17,26; cf. 17,24). Essa experiência da paternidade divina deve impelir os discípulos ao amor por todos, e nisso consistirá sua « perfeição » (cf. Mt 5,45-48; Lc 6,35-36).
O ministério sacerdotal de Jesus não pode ser entendido sem a perspectiva da universalidade. É clara, a partir dos textos neotestamentários, a consciência que Jesus tem de sua missão, que o leva a dar a vida por todos os homens (cf. Mc 10,45; Mt 20,28). Jesus, que não pecou, põe-se no lugar dos homens pecadores e, por eles, se oferece ao Pai. As palavras da instituição da Eucaristia testemunham a mesma consciência e a mesma atitude; Jesus oferece a própria vida no sacrifício da Nova Aliança em favor dos homens: « Isto é o meu sangue, o sangue da Aliança, que é derramado em favor de muitos» (Mc 14,24; cf. Mt 26,28; Lc 22,20; 1 Cor 11,24-25).
O sacerdócio de Cristo foi aprofundado, principalmente, na Carta aos Hebreus, em que é ressaltado que ele é o sacerdote eterno, que possui um sacerdócio que não tem ocaso (cf. Hb 7,24), é o sacerdote perfeito (cf. Hb 7,28). Diante da multiplicidade de sacerdotes e de sacrifícios antigos, Cristo ofereceu a si mesmo, uma só vez e de uma vez para sempre, mediante o sacrifício perfeito (cf. Hb 7,27; 9,12.28; 10,10; 1 Pd 3,18). Essa unicidade de sua pessoa e de seu sacrifício confere ao sacerdócio de Cristo o seu caráter único e universal; toda a sua pessoa e, concretamente, o sacrifício redentor que tem um valor para a eternidade, traz o signo do que não passa e é insuperável. Cristo, sumo e eterno sacerdote, continua ainda, em sua condição de glorificado, a interceder por nós junto do Pai (cf. Jo 14,16; Rm 8,32; Hb 7,25; 9,24; 10,12; 1 Jo 2,1).
Jesus, enviado pelo Pai, aparece também como Senhor no Novo Testamento (cf. At 2,36). É o evento da ressurreição que leva os cristãos a reconhecerem o domínio de Cristo. Nas primeiras confissões de fé, aparece esse título fundamental relacionado com a ressurreição (cf. Rm 10,9). Não falta a referência a Deus Pai em muitos dos textos que nos falam de Jesus como Senhor (cf. Fl 2,11). Por outro lado, Jesus, que anunciou o reino de Deus, especialmente ligado a sua pessoa, é rei, como ele mesmo indica no Evangelho de João (cf. Jo 18,33-37). E, no fim dos tempos, irá « entregar a realeza a seu Deus e Pai, depois de destruir todo Principado e toda Autoridade e poder » (1 Cor 15,24).
Naturalmente, o domínio de Cristo tem pouco a ver com o dos grandes da terra (cf. Lc 22,25-27; Mt 20,25-27; Mc 10,42-45), pois, como ele mesmo indica, seu reino não é deste mundo (cf. Jo 18,36). Por isso, o domínio de Cristo é o do bom pastor, que conhece todas as ovelhas, que oferece a vida por elas e quer reuni-las todas num só rebanho (cf. Jo 10,14-16). A parábola da ovelha perdida também fala, indiretamente, de Jesus bom pastor (cf. Mt 18,12-14; Lc 15,4-7). Jesus é, ainda, o « Supremo Pastor » (1 Pd 5,4).
Em Jesus se realiza, de modo eminente, o que a tradição veterotestamentária tinha dito sobre Deus pastor do povo de Israel: « Eu as apascentarei em viçosas pastagens, e no alto monte de Israel estará o seu curral. [...] Eu mesmo apascentarei minhas ovelhas e as farei repousar — oráculo do Senhor Deus. Procurarei a ovelha perdida, reconduzirei a desgarrada, enfaixarei a quebrada, fortalecerei a doente e vigiarei a ovelha gorda e forte. Vou apascentá-las conforme o direi- to » (Ez 34,14-16). E mais adiante acrescenta: « Estabelecerei sobre elas um único pastor, o meu servo Davi. Ele as apascentará e lhes servirá de pastor. Eu, o Senhor, serei o seu Deus... » (Ez 34,23-24; cf. Jr 23,1-4; Zc 11,15-17; Sl 23,1-6). [6]
Só a partir de Cristo tem sentido a reflexão tradicional sobre os tria munera que configuram o sagrado ministério dos Sacerdotes. Não podemos esquecer que Jesus se considera presente em seus enviados: «Quem recebe aquele que eu enviar, a mim recebe e quem me recebe, recebe aquele que me enviou» (Jo 13,20; cf. também Mt 10,40; Lc 10,16). Existe uma corrente de « missões », que tem sua origem no próprio mistério do Deus Uno e Trino, que deseja que todos os homens participem da sua vida. O enraizamento trinitário, cristológico [7] e eclesiológico do ministério dos Sacerdotes é o fundamento da identidade missionária. A vontade salvífica universal de Deus, a unicidade e a necessidade da mediação de Cristo (cf. 1 Tm 2,4-7; 4,10) não permitem traçar limites na obra de evangelização e santificação da Igreja. Toda a economia da salvação tem sua origem no desígnio do Pai de recapitular tudo em Cristo (cf. Ef 1,3-10) e na realização desse desígnio, que se realizará completamente na vinda do Senhor na glória.
O Concílio Vaticano II alude claramente ao exercício dos tria munera de Cristo, por parte dos presbíteros, como colaboradores da ordem episcopal: «Participantes, segundo o grau do seu ministério, da função de Cristo único mediador (1 Tm, 2,5), anunciam a todos a palavra de Deus. Mas é no culto eucarístico ou sinaxe que exercem principalmente o seu múnus sagrado; nela, atuando em nome de Cristo e proclamando o seu mistério, unem as preces dos fiéis ao sacrifício da cabeça e, no sacrifício da missa, fazem presente e aplicam, até à vinda do Senhor (cf. 1 Cor 11,26), o único sacrifício do Novo Testamento, ou seja, Cristo oferecendo-se, uma vez por todas, ao Pai, como hóstia imaculada (cf. Hb 9, 11-28). [...] Desempenhando, segundo a medida da autoridade que possuem, o múnus de Cristo pastor e cabeça, reúnem a família de Deus em fraternidade animada por um mesmo espírito e, por Cristo e no Espírito Santo, conduzem-na a Deus Pai. No meio do próprio rebanho adoram-nO em espírito e verdade (cf. Jo 4,24) ». [8]
Em virtude do sacramento da Ordem, que confere um caráter espiritual indelével, [9] 9 os presbíteros são consagrados, ou seja, tirados «do mundo» e entregues «ao Deus vivo», tomados «como sua propriedade, a fim de que, a partir d’Ele, possam desempenhar o serviço sacerdotal pelo mundo », para pregar o Evangelho, ser os pastores dos fiéis e celebrar o culto divino, como verdadeiros sacerdotes do Novo Testamento (cf. Hb 5,1). [10]
O Sumo Pontífice Bento XVI, na alocução que dirigiu aos participantes da Assembléia Plenária da Congregação para o Clero, afirmou que « a dimensão missionária do presbítero nasce da sua configuração sacramental com Cristo Cabeça: de consequência, ela comporta uma adesão cordial e total àquela que a tradição eclesial reconheceu como a apostólica vivendi forma. Esta consiste na participação numa «vida nova» espiritualmente falando, naquele «novo estilo de vida» que foi inaugurado pelo Senhor Jesus e assumido pelos Apóstolos. Pela imposição das mãos do Bispo e a oração consecratória da Igreja, os candidatos tornam-se homens novos, tornam-se « presbíteros ». Sob esta luz, vê-se claramente como os tria munera são, primeiro, um dom e, só depois, um ofício; primeiro, a participação numa vida, e por isso uma potestas ». [11]
O Decreto Presbyterorum ordinis, sobre o ministério e a vida sacerdotal, explica essa verdade quando se refere aos presbíteros como ministros da palavra de Deus, ministros da santificação por meio dos sacramentos e da eucaristia, guias e educadores do povo de Deus. A identidade missionária do presbítero, embora não apareça explicitamente muito desenvolvida, está claramente presente nesses textos. Neles é sublinhado expressamente o dever de anunciar a todos o Evangelho de Deus, correspondendo ao mandato do Senhor por meio da proclamação da mensagem evangélica, com uma referência expressa aos não crentes e uma chamada à fé e aos sacramentos. O sacerdote, « enviado », que participa da missão de Cristo enviado pelo Pai, encontra-se envolvido numa dinâmica missionária, sem a qual não pode realmente viver sua identidade. [12]
Também na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Pastores dabo vobis é afirmado que, mesmo inserido numa Igreja particular, o presbítero, em virtude de sua ordenação, recebeu um dom espiritual que o prepara para uma missão universal, até os confins da terra, pois «todo mi- nistério sacerdotal participa da mesma amplitude universal da missão confiada por Cristo aos apóstolos ». [13] Por isso, a vida espiritual do sacerdote deve ser caracterizada pelo impulso e dinamismo missionário: na esteira do Concílio Vaticano II, é indicado que os sacerdotes devem formar a comunidade que lhes foi confiada, para fazer dela uma comunidade autenticamente missionária. [14] A função de pastor exige que o impulso missionário seja vivido e comunicado, pois toda a Igreja é essencialmente missionária. Dessa dimensão da Igreja deriva de modo decisivo a identidade missionária do presbítero.
Quando se fala de missão, é preciso levar em consideração, necessariamente, que o enviado – o presbítero, nesse caso – encontra-se em relação tanto com quem o envia como com aqueles aos quais é enviado. Examinando sua relação com Cristo, o primeiro enviado do Pai, é preciso sublinhar o fato de que, conforme os textos do Novo Testamento, é o próprio Cristo que envia e constitui os ministros de sua Igreja, mediante o dom do Espírito Santo concedido na ordenação sacramental; eles não podem ser considerados simplesmente eleitos ou delegados da comunidade ou do povo sacerdotal. O envio vem de Cristo; os ministros da Igreja são instrumentos vivos de Cristo único mediador. « O presbítero encontra a verdade plena da sua identidade no fato de ser uma derivação, uma participação específica e uma continuação do próprio Cristo, sumo e único Sacerdote da nova e eterna Aliança: ele é uma imagem viva e transparente de Cristo Sacerdote ». [16]
Tomando como ponto de partida essa referência cristológica, aparece claramente a dimensão missionária da vida do sacerdote: Jesus morreu e ressuscitou por todos os homens que quer reunir num só rebanho; ele tinha de morrer para reunir todos os filhos de Deus que estavam dispersos (cf. Jo 11,52). Se todos morrem em Adão, em Jesus todos retornam à vida (cf. 1 Cor 15,20-22); em Jesus, Deus reconcilia o mundo consigo (cf. 2 Cor 5,19); assim, Jesus ordenou aos apóstolos que pregassem o Evangelho a todos os povos. Todo o Novo Testa- mento é atravessado pela idéia da universalidade da ação salvífica de Cristo e de sua única mediação. O presbítero, configurado a Cristo profeta, sacerdote e rei, não pode deixar de ter o coração aberto a todos os homens e – concretamente e sobretudo – àqueles que não conhecem Jesus e não receberam ainda a luz de sua Boa Nova.
No que diz respeito aos homens, a quem a Igreja deve anunciar o Evangelho, [17] e a quem, por conseguinte, o presbítero é enviado, é preciso evidenciar como o Concílio Vaticano II, repetidamente, falou da unidade da família humana, baseada na criação de todos à imagem e semelhança de Deus e na comunhão de destino em Cristo: « Os homens constituem todos uma só comunidade; todos têm a mesma origem, pois foi Deus quem fez habitar em toda a terra o inteiro gênero humano; têm também todos um só fim último, Deus, que a todos estende a sua providência, seus testemunhos de bondade e seus desígnios de salvação». [18] Essa unidade é chamada a alcançar seu ápice na recapitulação universal em Cristo (cf. Ef 1,10). [19]
A essa recapitulação final de tudo em Cristo, que constitui a salvação dos homens, dirige-se toda a ação pastoral da Igreja. Sendo todos os homens chamados à unidade em Cristo, ninguém pode ser excluído da solicitude do presbítero a Ele configurado. Todos esperam, mesmo que inconscientemente (cf. At 17,23-28), a salvação que só pode vir d’Ele: a salvação que é a inserção no Mistério Trinitário, na participação de sua filiação divina. Não podem ser feitas discriminações entre os homens, que têm todos a mesma origem e compartilham o mesmo destino e a única vocação em Cristo. Estabelecer limites à «caridade pastoral» do presbítero seria totalmente contraditório com a sua vocação, marcada pela peculiar configuração a Cristo, cabeça e pastor da Igreja e de todos os homens.
Os tria munera, exercidos pelos sacerdotes em seu ministério, não podem ser concebidos sem sua essencial relação com a pessoa de Cristo e com o dom do Espírito. O presbítero se configura a Cristo mediante o dom do Espírito recebido na ordenação. Uma vez que os tria munera, em Cristo, mostram-se essencialmente entrelaçados, não podendo assim ser separados de modo algum, e os três recebem luz da identidade filial de Jesus, o enviado do Pai, da mesma forma não podemos separar o exercício dessas três funções nos sacerdotes. [20]
O presbítero vive uma relação com a pessoa de Cristo, e não somente com suas funções, que brotam e adquirem pleno sentido da própria pessoa do Senhor. Isso significa que o sacerdote encontra a especificidade de sua vida e de sua vocação vivendo sua configuração pessoal a Cristo; é sempre um alter Christus. Na consciência de ser enviado por Cristo, como Cristo é enviado pelo Pai, para a salus animarum, o sacerdote experimentará a dimensão universal, e portanto missionária, de sua identidade mais profunda.

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