A mesma hierarquia começava, então, nas ruas de Paris, pelas mãos de São Vicente de Paulo, uma obra semelhante: arrancar totalmente crianças cativas à morte, à morte temporal e eterna.
Vimos o faraó do Egito ordenar ao povo que afogasse nas águas do Nilo todos os meninos nascidos entre os hebreus. Conhecemos a legislação da Grécia e de Roma pagã, que não somente permitia, mas ordenava aos pais afogar, decapitar, matar de qualquer maneira, entre as crianças recém-nascidas, todos os meninos e meninas que lhes agradassem, sobretudo quando não lhes parecessem saudáveis ou robustos.
Numa palavra, vimos a legislação humana punir o assassínio do homem, que podia defender-se, mas permitir ou mesmo ordenar a morte da inocência, da fragilidade, do indefeso.
Na China idólatra, o pai e mãe atiravam o filho às imundícias da rua, no lamaçal vizinho ou no bebedouro dos porcos.
Não ouvimos porventura a deus feito homem, a Jesus, que foi criança? Traziam-lhe também meninos, para que os tocasse. Vendo isto, os discípulos repreendiam-nos. Jesus, porém, chamando-os a si, disse: “deixai vir a mim os meninos, e não os embaraceis, porque o reino de Deus é dos que se parecem com eles. Em verdade vos digo: o que não receber o reino de Deus como um menino, nele não entrará.
Antes de Jesus Cristo, as crianças abandonadas pelos pais eram crianças perdidas. Depois de Jesus Cristo, tornaram-se crianças encontradas, encontradas à porta das casas, das igrejas, dos hospitais, onde eram abandonadas pelo crime ou pela miséria, encontradas e adotadas pela caridade.
Acontecia, e não raro, que, depois de essas crianças encontradas serem adotadas por pessoas caridosas, por casais bem formados, que cuidavam dos pobres órfãozinhos com desvelos, como se foram seus próprios filhos, surgia o pai ou aparecia a mãe, reclamando-os. E àquela criança, que teria um futuro sorridente, faltariam os meios e o ambiente que lhe daria os pais adotivos.
Para por cobro a tudo isso, o primeiro imperador cristão declarou, por lei, que as crianças expostas pertenceriam a quem as encontrasse e delas cuidasse e nutrisse. Pertencer-lhe-iam como escravos ou como filhos.
Que fez o concílio de Vaison? Mais ou menos na metade do século V, renovou aquela mesma ordenação, confirmando-a.
Nas paróquias cristãs do campo não havia crianças encontradas, porque não havia criança abandonada nem perdida. Nas grandes cidades já não acontecia o mesmo, principalmente depois das revoluções que corrompiam a fé e os costumes dos povos.
Assim, em Paris, com a anarquia religiosa, intelectual e moral de Lutero e Calvino, as crianças expostas às portas das igrejas ou nas praças públicas eram em grande número. Comissários levavam-nas por ordem da polícia. Quantos deles não criaram, talvez, pobres enjeitadinhos? A maioria, porém, ia para a casa duma viúva que residia num casarão da rua de São Landri, e que, com duas criadas, se encarregava das crianças, vestindo-as, banhando-as, alimentado-as, cuidando de tudo.
Como, porém, grande era o número de crianças abandonadas e pequeno o número de caridosos, a viúva do casarão, por mais que fizesse, não vencia a avalancha e, pois, a morte por falta de trato, principalmente de alimentação, era inevitável. Que poderiam fazer três pessoas com uma multidão de crianças? Por mais que se desdobrassem, era humanamente impossível cumprir programas.
O mais deplorável era a morte sem o batismo. A viúva mesmo chegou a dizer que não fez batizar nem batizou qualquer criança.
Quanto às raras pessoas que a esta ou àquela criança levavam, para delas cuidar às vezes acabavam por se aborrecer e passá-las a outras, que por sua vez, dos pobrezinhos se desfaziam, devolvendo-os, ou abandonando-os à rua novamente.
Tal desordem tocava profundamente o coração imenso de São Vicente de Paulo. Convidando algumas senhoras para debater o caso, reuniu-as em sua casa: queria a todo transe resolver aquele problema ou então remediá-lo. Era um espetáculo deplorável o das mães a abandonar os filhos à morte.
- É lamentável, dizia, entristecido e abatido, mais lamentável, parece-me, que o massacre dos inocentes por Herodes.
Esmagadas por uma imensa compaixão, mas não podendo encarregar-se de toda a multidão de crianças, aquelas senhoras prometeram incumbir-se de doze. E, para honrar a Providência divina, da qual ignoravam os desígnios, resolveram tirar a sorte, ao invés de escolher esta ou aquela.
Em 1638, alugou-se uma casa à porta de São Vítor, para alojar os pobrezinhos. E a viúva Legras, com as irmãs da caridade, entrou a cuidar das crianças, alimentando-as com leite de vaca ou de cabra, mas logo passando à alimentação sólida.
Àquelas primeiras crianças, as virtuosas senhoras foram reunindo outras, segundo podiam arcar com a responsabilidade. E sempre tiravam a sorte.
Afinal, nos começos de 1640, houve uma assembléia geral para tratar do problema da criança abandonada. Nela, Vicente de Paulo louvou a abnegação das devotadas senhoras, que se debatiam com a questão de dinheiro. E conseguiu do rei uma verba de doze mil libras.
Com tal auxílio, a coragem das senhoras, ganhou mais alento e o vaivém na casa à porta de São Vítor continuou.
As vicissitudes pelas quais a Lorena passava, o temor de revolução no Estado, a Fronde, fez com que o número de crianças crescesse. E crescia, assustadoramente, dia a dia, tanto que a coragem das nobres damas foi amortecendo.
- Tal despesa, diziam, nervosas, está longe, bem longe de podermos sustentar.
Foi para não deixar de lado assunto tão importante que São Vicente de Paulo convocou, em 1648, outra assembléia geral. As senhoras de Marillac, de traversai, de Miramion, e outras de respeitável nomeada, compareceram. Debateu o santo o problema da continuação da grande obra começada. Fez desfilar as razões todas, os prós e os contras.
Dum lado, não havia qualquer compromisso, a assembléia era livre de estatuir aquilo que julgasse mais conveniente. Doutro lado, Vicente fez ver que, pelos desvelos caridosos, aquela mesma assembléia havia até aquela data conservado a vida dum grande número de crianças que, sem o socorro que vinham tendo, estariam perdidas talvez para a eternidade. Aquelas crianças, ao aprender a falar, a conhecer as coisas, não passavam a conhecer e a servir o Criador? E o santo, elevando um pouco a voz, terminou:
- Eia, pois, nobres senhoras! A compaixão e a caridade levaram-vos a adotar as crianças como vossos filhos. Fostes-lhes mães segundo a graça, depois que as verdadeiras mães, segundo a natureza, as abandonaram. Vede agora se ides abandoná-las também. Tais vidinhas estão em vossas mãos, ou a morte dos pobrezinhos de Deus, conforme agirdes, senhoras. Viverão todas se continuardes com vosso caridoso cuidado, morrerão e arruinar-se-ao infalivelmente se a todas abandonardes. A experiência não vos permitirá dúvidas...
Vicente pronunciou essas palavras com um tom de voz que fazia conhecer, e bem, qual lhe era o sentimento; as senhoras, tocadas, unanimemente concluíram ser necessário continuar sustentando a luta, a qualquer preço. E, entre elas, combinaram o que se havia de fazer.
Para a alojar as crianças, quando já desmamadas, conseguiram do rei o castelo de Bicetre. Como, porém, o clima ali lhes parecesse contrário à saúde, levaram-nas a São Lázaro, onde dez ou doze irmãs da caridade se encarregaram da educação dos órfãos. Com o tempo e a ajuda de Deus, outras casas foram surgindo. A obra de São Vicente de Paulo foi imitada em todos os países da Europa, passando à América. Quantas crianças foram salvas pelo santo, devendo-lhes a vida e a educação?
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