terça-feira, 28 de setembro de 2010

São Vicente de Paulo - O Apóstolo da Caridade - 2

O destino de Vicente começa a mudar

Quando estava para regressar, um gentil-homem de Languedoc, com o qual se alojara, propôs-lhe que, juntos, viajassem até Narbona. Era pelo mês de julho, a estação não podia ser mais bela e o tempo apropriadíssimo à navegação.
Vicente embarcou. O vento era favorável, e todos esperavam chegar a Narbona absolutamente no dia e hora estipulados.
O mercado de Beaucaire começava a funcionar ativamente; lá os ricaços do Oriente iam negociar com a Europa. Corsários, em busca de presas, cruzavam o golfo de Leão, em todos os sentidos.
Eis senão quando três bergantins turcos surgiram à proa do barco em que Vicente viajava. A abordagem não se fez esperar, e a luta que se travou, curta, pois os turcos eram em número muito superior, terminou pouco depois. Os corsários perderam um dos chefes e tiveram quatro ou cinco forçados mortos.
Vicente recebera uma flechada, o piloto fora feito em pedaços e os demais aprisionados, salvos os endinheirados que não opunham resistência. O barco foi saqueado e, em seguida, com os prisioneiros, transferiram-se os turcos para os próprios navios.
Mais tarde, numa carta a um amigo, uns dois anos depois, Vicente dizia:
“Fomos, então, em Tunis, postos à venda, depois duma descrição verbal sobre nossa captura, que, diziam, fora feita num barco espanhol. Tal mentira era necessária, porque, sem ela, seríamos libertados pelo cônsul que o rei tinha naquelas plagas. Fizeram com que todos rodássemos pela cidade, cinco ou seis vezes, de cadeias ao pescoço. Vestíamos calças grosseiras, um jaleco de linho e barrete. Metidos num dos bergantins, ficamos à espera dos compradores. Estes examinaram as feridas ganhas na luta, e viram que não eram graves nem mortais, apalparam-nos, mediram-nos, examinaram-nos os dentes, como se faz com cavalos. Fizeram-nos andar, observando os movimentos, os passos, e, em seguida, obrigaram-nos a correr. Passamos, afinal, à outra prova, qual seja a de carregar fardos. Por último, vieram as lutas, para que lhes mostrássemos a força que tínhamos. Foi um desfilar de brutalidades”.
Vicente foi vendido a um pescador. O pescador, afinal, vendo que o novo escravo não se dava com o ar do mar, acabou por passá-lo a um médico, já velho, que o Santo chamava “a quintessência do atirador, homem humaníssimo, tratabilíssimo, que dizia-me, havia trabalhado por cinqüenta anos à procura da pedra filosofal. Gostava muito de mim, e de discorrer, para mim, sobre a alquimia e suas leis, a ela esforçando-se tremendamente por me atrair, prometendo-me grandes riquezas e saber imenso”.
“Deus sempre operou em mim uma crença de libertação pelas assíduas orações que eu fazia à Virgem Maria, pela intercessão da qual creio firmemente ter-me livrado. E a esperança e a crença de que ia rever-vos, senhor, levaram-me a estar bastante atento com o nosso alquimista, procurando instruir-me sobre o modo de curar a gravela, pois que o via, diariamente, fazer maravilhas. Ensinou-me mesmo a preparar e misturar os ingredientes,  bem como a maneira de administrar a porção. Oh, quantas vezes desejei ter sido escravo bem antes da morte de teu irmão! Com o segredo que agora conheço, tenho certeza de que não teria morrido daquele mal”.
A carta, que é de 20 de julho de 1607, é a endereçada ao mais moço dos dois De Commet, do qual o Santo fora mestre.
Continua:
“Fiquei com o velho médico de setembro de 1605 até agosto de 1606, quando, então, foi ele preso e levado por homens do sultão, para trabalhar e servir o potentado, o que não aconteceu, porque morreu a caminho”.
“Quanto a mim, deixou-me com um sobrinho, verdadeiro antropomorfita, que me revendeu imediatamente após a morte do tio, porque ouvira dizer que Monsieur de Brèves, embaixador do rei na Turquia, vinha com boas e expressas patentes do Grão-Turco para recuperar os escravos cristãos”.
“Um renegado de Nice, comprou-me e levou comigo para o seu temat. Temat é o patrimônio do Grande Senhor, terras que o rendeiro lavra, porque lá o povo nada tem, porque tudo é do sultão. O temat daquele que assenhoreou de mim era na montanha, onde o país é extremamente quente e terrivelmente deserto”.
“Uma das três mulheres que tinha era grega cristã, mas cismática. Outra, era turca, que serviu de instrumento à imensa misericórdia de Deus para retirar o marido da apostasia, levá-lo ao grêmio da Igreja, e livrar-me da escravatura”.
“Interessante é que estava a par do nosso modo de viver. Vinha ver-me todos os dias, no campo onde eu estava a labutar, e fazia mil perguntas. Um dia, ordenou-me cantasse os louvores de Deus. À lembrança do Quomodo cantabimus in terra aliena, das crianças de Israel cativas na Babilônia, fez-me começar, de lágrimas nos olhos, o salmo Super flumina Babylonis, e depois o Salve Regina, e muitas outras coisas de que ela gostava”.
“Não deixou de contar ao marido, à noite, dizendo-lhe que havia errado ao mudar de religião: a católica, achava-a boníssima, porque eu lhe fizera um relato sobre nosso Deus e lhe cantara alguns louvores, quando comigo estivera a perguntar-me coisas. Dissera, então, ao marido que sentira tal alegria e satisfação tal, como jamais experimentara em toda a vida.”
“Essa mulher, como outro Caifás, ou como a jumenta de Balaão, tanto falou, que o marido, no dia seguinte, de manhã, disse-me que não tinha outro desejo senão o de nossa salvação, que nos daria tal remédio, e Deus, dentro de poucos dias, seria louvado”.
“Os poucos dias duraram dez meses, e eu vivia de esperanças. Um dia, porém, fizemo-nos ao mar e demos em Avinhão, onde Monsieur, o Vice-legado, recebeu publicamente o renegado, que vinha com lágrimas nos olhos e a soluçar, de coração contrito. Na igreja de São Pedro, honrando a Deus e edificando os assistentes, foi admitido”.
“Depois foi a ida a Roma, onde o Vice-legado prometeu ao penitente que faria com que pudesse ingressar no austero convento dos Fateben-Fratelli, onde agora está”.
Foi de Avinhão que São Vicente de Paulo escreveu tal carta ao antigo aluno.
Em Roma, Vicente permaneceu até 1608, pela assistência que recebeu do Vice-legado, que o hospedou e lhe proporcionou o que fazer. E lá estava Vicente, tocado até as lágrimas, por ver-se na cidade mestra da cristandade, onde o chefe da Igreja militante tem assento, onde os corpos de São Pedro e São Paulo repousam, bem como os de outros santos mártires e outras santas personagens.
Quando não se dava à devoção, empregava o tempo em repassar os estudos de teologia feitos em Toulouse. O Vice-legado apresentou-o ao embaixador da França, o Cardeal d’Ossat, e este o encarregou de missão importante e secreta junto a Henrique IV.

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