Da obra A Igreja dos Tempos Bárbaros, de Daniel-Rops
Em 26 de fevereiro de 398, na catedral de Constantinopla, havia sido entronizado bispo da capital um homem franzino, de aparência frágil, mas em cujo rosto brilhava a chama de Deus. Chamava-se João e tinha sido sacerdote em Antioquia. No seu país de origem, a Síria, esse homem havia adquirido uma imensa celebridade, tanto pelas suas virtudes, sabedoria e coragem, como pela eloquência dos seus sermões. Durante vinte anos, as multidões se tinham acotovelado para ouvir essa voz maravilhosa que lhes falava, numa linguagem de perfeição clássica, de temas concretos, vivos, dirigidos diretamente ao coração. Certo dia, explodira na cidade um grande motim, e fora somente por sua intervenção que se pudera restabelecer a calma. Chamavam-lhe “João da Boca de Ouro”. E fora precisamente esta celebridade que o fizera subir ao trono episcopal mais cobiçado do Oriente. Para dar brilho a esta sé – depois dos dezesseis anos pouco reluzentes do velho Nectário –, a eleição fora preparada por um verdadeiro partido dentro da corte, formado por um poderoso ministro, o eunuco Eutrópio, pela imperatriz Eudóxia e pelo clã dos burgueses ricos e de todos aqueles cuja intenção última era erigir a Nova Roma em rival da antiga, mesmo no plano cristão. João Crisóstomo foi raptado – literalmente, pois se receava que os fiéis de Antioquia não deixassem sair de lá o seu santo presbítero –, e vi-se sagrado bispo de Constantinopla sem o ter desejado. Este singular golpe do destino haveria, porém, de trazer-lhe mais preocupação do que felicidade.
Aqueles que se gabavam de ter trazido para o seu jogo o novo bispo em breve se desencantaram. João Crisóstomo era justamente o tipo desses cristãos que se recusam a aceitar conchavos. Mal se instalara na sua sé, avaliou imediatamente o valor exato dos autores da peça em que queriam dar-lhe um papel: Arcádio, o imperador, débil filho do grande Teodósio, era um homenzinho mirrado, de pele esverdeada e tez mortiça, dócil instrumento nas mãos rivais da sua mulher e dos seus sucessivos ministros; Eudóxia, uma ambiciosa sedenta de gloríolas; Eutrópio, um indivíduo suspeito, sem moral e de uma vaidade ilimitada; e, por último, nesses fiéis bem situados na vida que tanto haviam aclamado a sua chegada, descobria-se mais jactância do que moral, mais autocomplacência do que fé.
Com uma intransigência serena, sem se preocupar com agradar ou desagradar aos poderosos, João fez aquilo que a sua consciência – e somente a sua consciência – lhe ordenava. Começou por reformar a casa episcopal, desfazendo-se de todo o luxo. Ao contrário de Nectário, que comia sempre fora ou no Palácio, tomava as refeições sozinho e com a maior frugalidade; o clero, que se permitira certas liberdades em matéria de costumes, foi logo chamado à ordem, e os monges, demasiado habituados a perambular pela capital, foram convidados a recolher-se urgentemente às suas celas. Do alto da sede episcopal, o santo fazia ouvir a sua voz todos os domingos e as verdades caíam equitativamente repartidas da sua boca: quer se tratasse de um general godo ou de algum alto funcionário, todos os que o mereciam eram atingidos, porque o bispo fustigava os arianos do exército com a mesma tranquilidade com que verberava a miséria dourada da corte imperial. E o povo, que a princípio vira com frieza a eleição deste bispo trazido da Ásia por uma intriga de palácio, não tardou a amar com fanatismo esse apóstolo dos pobres, esse bispo de inesgotável caridade, esse homem franzino que dizia as verdades aos ricos e que não temia os poderosos.
Um incidente acabou por fixar posições. Eutrópio, o ministro todo-poderoso, caiu em desgraça; a bem dizer, a sua ambição e a sua vaidade haviam-no tornado intolerável para toda a gente, mesmo para Eudóxia, a quem, no entanto, tinha conduzido anos antes ao tálamo do imperador. De combinação com Gainas, o chefe dos aliados godos, a basilissa instigou o fraco marido contra o eunuco. Perseguido, Eutrópio refugiou-se em Santa Sofia, invocando o direito de asilo, um direito que – pormenor irônico – ele próprio tinha querido suprimir quando se encontrava no auge do poder. São João Crisóstomo, sem a menor hesitação, defendeu-o, acolheu-o e protegeu-o. Da mesma forma que tinha criticado livremente os excessos do ministro, empenhou-se agora em salvar o decaído. Na prática, isso não serviu para nada, a não ser para dar um belo testemunho da independência de uma consciência cristã. Pouco tempo depois, Gainas exigiu que o refugiado se entregasse, e o fantoche Arcádio mandou decapitar o seu favorito da véspera, à espera de que também Gainas, algum dia, por sua vez...
A partir desse momento, viraram-se contra Crisóstomo todos os que o tinham trazido para Constantinopla. Aquele que não deveria ser mais do que um político acabara por comportar-se como um cristão. Não era um descalabro? O alto clero, a quem o bispo incomodava na sua vida fácil; os monges que andavam rompidos com os seus conventos; as grandes damas que tinham ouvido, do alto da cátedra episcopal, transparentes alusões aos seus desvios morais acobertados por uma devoção bem apregoada; os pregadores da moda agora eclipsados; os godos arianos furiosos com o apoio dado a Eutrópio; os bispos da Ásia – incluídos alguns prelados certamente apreciadores da boa mesa e humilhados pela sóbria hospitalidade do seu colega de Bizâncio –, que São João Crisóstomo tinha acusado de simonia e obrigara a destituir, todos eles provocaram uma terrível perseguição contra o santo. Eudóxia fazia parte do conluio, desde que algumas boas almas lhe tinham dito que certo sermão sobre Jezabel era com certeza dirigido contra ela. E Arcádio, manejado sem dificuldade pelos que o rodeavam, persuadiu-se de que o santo intrigava contra ele.
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